A menos de 200 m da principal avenida da maior cidade da América do Sul, no subsolo de um prédio comercial da rua Pamplona, esconde-se um dos sujeitos mais divertidos – e talentosos – que as artes visuais desta metrópole viu nascer. Há mais de trinta anos, ele confunde, provoca, instiga e faz ver, nos objetos comuns que nos cercam, aquilo que o olhar estreito do cotidiano não nos permite enxergar. Esse é Guto Lacaz. Como artista, ele surgiu sem maiores pretensões. Criou uma obra bem-humorada e inconfundível, que apresenta soluções à primeira vista simples e óbvias, mas que envolvem conhecimentos que vão da arquitetura à eletrônica. “Não sou um artista plástico, mas um artista prático”, brinca.
Guto é celebrado por ideias absurdas. Algumas delas: radiografar a boneca Barbie, sugerir a fritura de um ovo na superfície de um ferro de passar roupa ou fazer uma lata de óleo zanzar em uma bandeja à procura de salada. Mas seu trabalho vai muito além disso, o que se constata nas séries Ideias Modernas, Coincidências Industriais e O Papel no Cotidiano. Tais obras, somadas a esculturas, instalações, objetos e performances, estão agora reunidas para uma avaliação geral com a chegada às livrarias de omemhobjeto. Editada pela Décor Books, a obra de 320 páginas passa a limpo – e em grande estilo – três décadas de intensa produção desse artista singular que, frequentemente, é chamado de Professor Pardal, mas prefere ser comparado ao Bolinha, o personagem afeito a comilança e traquinagens, dublê de cientista e detetive – sob a alcunha de Aranha – e que, como não bastasse, conversa com marcianos. Guto tem 61 anos, mas é justamente sobre o universo infantil que iniciamos nosso bate-papo.
Brasileiros – Você teve uma infância muito rica. Repleta de brincadeiras e jogos lúdicos. Acha que ainda há espaço para a imaginação na infância de hoje?
Guto Lacaz – Acho que a infância vai ser sempre infância. Tenho nostalgia da minha, mas acho que um garoto de hoje, quando tiver o neto dele, vai ter nostalgia do playstation. Vejo pela minha filha, Nina. Ela adora o Orkut, mas gosta também de construir, de desenhar. Essas brincadeiras não morrem. A infância é isso: um período em que a pessoa está sempre buscando, se enfiando em armários, embaixo de mesas, fazendo cabana. Isso nunca vai acabar. Esse período especulativo, lúdico, e às vezes perverso, está mais na cabeça das crianças do que nos brinquedos que elas têm à mão.
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Brasileiros – E como você vê, hoje, as reprovações que teve na escola? Tinha problemas de disciplina? Lidava com ambientes muito rígidos?
G.L. – Nunca tive problemas com disciplina. Sempre fui tímido e era muito disperso. Repeti o terceiro ano primário e, depois, o primeiro ano ginasial. Foi quando entrei para o Colégio Dante Alighieri e achei tudo aquilo horrível. Uma vez, um menino da classe fez uma malcriação qualquer e, logo, veio o diretor. Parecia o Mussolini: “Se ninguém vai dedar e ninguém vai se entregar, todo mundo vai passar o recreio inteiro em formação no corredor”. Nós ali, em fila, obrigados a ficar de cabeça baixa. Pensei: “Caceta, olha onde eu caí!”. Em seis meses, já estava condenado!
Brasileiros – Foi então que sua mãe descobriu o Liceu Eduardo Prado que, além das disciplinas convencionais, ensinava eletricidade, desenho, trabalhos manuais, eletrônica. Enfim, as coisas que te interessavam. Foi aí que se encontrou?
G.L. – Com o detalhe que no Liceu não havia notas, só conceitos! Foi lá que encontrei meu primeiro ecossistema. Chegava pros amigos e dizia, envergonhado: “Pôxa, eu repeti dois anos”. E eles diziam: “Ah, eu repeti cinco!”. Era o lugar dos casos perdidos e aí eu me encontrei.
Brasileiros – Quando você ingressou na Faculdade de Arquitetura de São José dos Campos (SP), teve uma rica experiência acadêmica e, a partir do segundo ano, foi morar em uma república. Como foram esses anos de liberação?
G.L. – Sou de família católica, não muito radical, mas católica. Na infância e adolescência, não podia fazer nada. Você olhava para uma mulher na rua e era repreendido: “Não pode olhar, é pecado!”. Tudo era pecado. Fui morar em São José somente no segundo ano. Logo concluí que tinha perdido um ano. Aí, me livrei de um monte de coisas que minha família e a moral da época tinham colocado na minha cabeça. E fui fazer de tudo. Uma época curiosa, durante a ditadura Médici – que foi a mais pesada. Ainda havia muitos ecos do Woodsotck e a coisa hippie estava comendo solta. Então, de um lado, tinha essa coisa de estar sempre alerta, tudo era proibido, você podia ser preso e, por outro, essa coisa de: “Que é isso? Manda ver, pode tudo!”.
Brasileiros – Você teve uma curta experiência como arquiteto. Trabalha profissionalmente com design, mas se diz salvo pela arte. Como é que você se descobriu artista plástico?
G.L. – Eu criava objetos com as habilidades que aprendia por pura chacota, para divertir as pessoas, e eles iam se acumulando em casa. Até que um dia, vi o anúncio: “Primeira Mostra do Móvel e Objeto Inusitado do MIS” (Museu da Imagem e do Som). Daí, pensei: “Ah, acho que o que tenho em casa é isso aí”. Foi bárbaro! Podia mandar quantos objetos quisesse e enviei quase vinte. Dias depois, o arquiteto Ennes da Silveira (pai do designer Ricardo Van Steen) me ligou e disse: “Guto, aqui é o Ennes. Fui membro do júri e você ganhou dez prêmios. Parabéns!”. Era prêmio em dinheiro, fiquei doido! Descobri que aquilo que eu fazia, sem pretensão, tinha status, era um produto cultural e podia entrar na tradição de trabalhos de artes plásticas.
Brasileiros – A partir daí você rapidamente trafegou por galerias, museus, bienais e foi bem recebido pela crítica. O mercado de arte daquele período difere muito do de hoje?
G.L. – Na década de 1980, havia menos curadores e mais artistas. Hoje, vejo que as exposições são mais de curadores. O curador inventa o assunto e convida os artistas. O artista cede as obras, mas todo o dinheiro que rola raramente chega às mãos dele. Acho que os curadores têm um papel importante, mas tomaram muito o lugar do artista, que deveria estar sempre acima de tudo.
Brasileiros – Então, mudou muito o mercado?
G.L. – Seria necessária uma distribuição mais coerente. Em São Paulo, o MASP, a Pinacoteca e o Museu Afro-Brasileiro são espaços públicos, a serem ocupados por artistas. Mas a Pinacoteca esquenta a coleção particular dos bancos. São exposições legítimas, mas se o Banco ‘X’ tem uma bela coleção, ok, vamos lá ver esse acervo, mas não na Pinacoteca! Os bancos têm muito dinheiro e podem construir seu próprio espaço para expor sua coleção e não ficar invadindo espaço público, que é território da gente.
Brasileiros – Como você passou a se interessar pelas performances?
G.L. – O José Roberto Aguilar (artista multimídia) certa vez me mostrou uma foto, não entendi necas do que era aquilo, e ele falou: “Pô, Guto, isso é uma performance, passa lá em casa, vá ver uns vídeos”. Um deles mostrava o Aguilar na Pinacoteca, tocando piano com luva de boxe. No outro, ele usava um cabo de vassoura para rasgar a palavra “arte”, recortada com isopor. Falei: “Nossa, quer dizer que se pode destruir a arte? Posso tocar piano – que era um instrumento sagrado – com luva de boxe?”. Era uma profanação maravilhosa e me enlouqueceu.
Brasileiros – Mais um meio para expressar sua arte?
G.L. – Sim. Em 1983, eu já estava com um espetáculo com 25 cenas, chamado Eletro Performance. Fechei uma temporada na casa noturna Radar Tantã e foi superlegal. Naquele mesmo ano, fiz uma pequena temporada na Sala Guiomar Novaes, da Funarte. Depois, a Sheila Lerner, que era curadora da Bienal de 1985, me convidou para levar a Performance para lá.
Brasileiros – Além das performances, você costuma dialogar com outras expressões artísticas. Como surgiu a ideia de homenagear o Arrigo Barnabé com a obra Fuscão Preto no Acapulco Drive-In?
G.L. – No começo da década de 1980, era comum ver cartazes lambe-lambes espalhados pela cidade com o nome: Arrigo Barnabé. Um dia, no Jornal Hoje, uma repórter entra no ar para dar a agenda cultural e pergunta: “E aí, Arrigo, qual a novidade desse show?”. E ele, com aquele cabelo de Mozart: “A novidade é esta: Acapulco!!!” (imita um gesto agressivo sobre o teclado do piano). Daí, as backing vocals dele respondiam: “Drive-in!”. Pensei: “Putz, então isso é que é o tal Arrigo Barnabé?”. Fui correndo pra Funarte assistir. Música dodecafônica, tremenda performance da banda. Saí de lá babando. Achei que as artes plásticas estavam muito aquém daquilo tudo. Tentei fazer alguma coisa nessa frequência e, à época, fazia muito sucesso a música Fuscão Preto, do Almir Rogério. Comprei um fuscão de plástico, pintei de preto, fiz a maquete do drive-in e dei o nome Fuscão Preto no Acapulco Drive-In, que era pra fazer um jogo entre a música popular e a música de vanguarda.
Brasileiros – Na 18ª Bienal, de 1985, incumbido de monitorar o funcionamento de suas obras, você teve grande contato com o público. Que conclusões tirou dessa experiência?
G.L. – Ali, percebi o grande desconforto e mal-estar que a arte contemporânea provoca nas pessoas. Elas me viam encostado nas pilastras, achavam que eu era o guarda, e diziam: “Por que é que eu estou aqui? Vim de Belo Horizonte pra ver isso!”. Aquilo que deixava a gente fascinado, provocava ira nas pessoas. As três perguntas que eu mais escutei: “O que isso significa? Será que o que eu estou pensando é isso mesmo? O que o artista quis dizer com isso?”. Aí, eu explicava: “Essas obras, são obras abertas, o artista espera que você dê a sua interpretação a elas. O que ele quis dizer importa, mas não é o mais importante; o que importa, de fato, é o que você vai dizer”. Aí, então, me perguntavam: “Ah, então se eu achar que esse monitor parece a janela da casa da minha avó, posso dizer que é, simplesmente, isso?”. E eu respondia: “Mas, é claro! É a janela da casa da sua avó! É a própria”. Só aí a pessoa relaxava e começava a se divertir.
Brasileiros – Uma arte que mais oprime que encanta. Grande ironia, não?
G.L. – Pois é! Tenho uma outra história engraçada dessa Bienal. Quando vi que não sabia bem o que ia expor, uma das coisas que fiz foi pintar uma vaca, toda realista, em uma parede. Havia muito aparato técnico e a vaca criava um contraste. Minha sala ficava no terceiro andar, tinha uma porta grande e quem vinha do corredor conseguia ver a vaca do lado de fora. Uma senhora estava chegando, já de saco cheio de ver tanta arte contemporânea. Ela estacionou, olhou pro desenho, deu um suspiro profundo e falou: “Ai, meu Deus, que bom: uma vaca!”. Acho que, de metro em metro, nos museus de arte contemporânea, deveria ter uma vaca, uma galinha, um vaso de flores, para as pessoas se sentirem mais aliviadas.
Brasileiros – Você acha que esse problema de diálogo com o público está sendo superado?
G.L. – Tem muita obra metida. Tem certos artistas que se acham. Vem um crítico amigo deles e faz um manual, que ensina como ver aquilo. Mas esqueça o artista, esqueça o manual do crítico, pois a obra é sempre você e ela, e se ela for ruim, arrogante, você tem de olhar e concluir, sem pudor: “Grande merda, já vi coisa muito melhor!”. Alguns artistas são bem ligados aos críticos e, muitas vezes, o mercado precisa de alguém que os endosse. São valores de mercado, mas tua relação com a obra de arte é pessoal e independe de tudo. Basta apenas um momento seu com aquilo. Ninguém te tira isso
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