O mistério do silêncio

João Silvério Trevisan é muitos. Ele é escritor, ensaísta, roteirista, diretor de cinema, dramaturgo, coordenador de oficinas literárias, jornalista e tradutor. Paulista de Ribeirão Bonito, fez sua estreia na literatura em 1976, com o volume de contos Testamento de Jônatas Deixado a David. Vieram outros dez livros. O mais recente, Rei do Cheiro (Editora Record), trata, entre outros temas, da decadência de valores de uma emergente elite brasileira – e recebeu, no ano passado, o prêmio de melhor romance, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

O escritor foi agraciado com outros prêmios, como o Jabuti, e se viu contemplado com bolsas de estudo no Brasil e no exterior. Mesmo assim, permanece pouco divulgado na imprensa. Ele supõe ter encontrado um dos motivos: sua assumidíssima homossexualidade, que, segundo parte da crítica literária, o faz recorrer a obras de ficção em favor da militância.
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Esse preconceito vem ainda de 1978, quando, em plena ditadura militar, Trevisan foi um dos principais responsáveis pelo lançamento do corajoso jornal Lampião da Esquina – este sim de clara militância homossexual. Aos 65 anos, ele comenta, tranquilo, no apartamento em que vive, na Avenida São Luís, a mais novaiorquina das avenidas paulistanas: “Eu não tenho mais nenhuma esperança de pensar o mundo com aquela univocidade que a gente tinha quando se dizia revolucionário. Eu acho que hoje o mundo é feito de pequenas revoluções, de pequenas mudanças”.

Brasileiros – O que significa o título de seu livro mais recente, Rei do Cheiro?
João Silvério Trevisan –
Há várias interpretações possíveis. A mais imediata tem a ver com o nome da lojinha de perfumaria que o protagonista tem na rua 25 de Março, em São Paulo, e que, depois, se transforma em uma grande empresa. E há os sentidos paralelos. O personagem cheira cocaína e tem problema de sudorese. Consciente ou inconscientemente, busca criar um desodorante para acabar seu suor excessivo, que sempre o envergonhou.

Brasileiros – O livro foi pouco resenhado pela imprensa. A que se deve esse silêncio?
J.S.T. –
Não tenho a menor ideia. Mas não é meu primeiro livro a cair no silêncio. Meus três livros anteriores ganharam um silêncio absoluto. Saíram apenas notinhas na imprensa. Para mim, foi uma frustração muito dura. Todo escritor quer estabelecer um diálogo com o seu tempo e, supostamente, essa interlocução deve acontecer com os representantes mais significativos da área literária, que são os críticos. Não tenho tido muita sorte com eles. O retorno da crítica é muito importante, além dos leitores, obviamente.

Brasileiros – Você não tem nenhuma pista em relação a esse silêncio?
J.S.T. –
Em alguns casos, eu tenho, sim. É a minha homossexualidade, não tenho a menor dúvida. Ainda que as pessoas não digam “Ah, é livro de viado”, passam a ver esse escritor como um autor secundário, que escreve com cartas marcadas. Ou seja, escreve livro de viados para viados, não é? É claro que isso é dito de maneira cada vez menos explícita. Ao analisar o meu livro de contos Troços & Destroços, um crítico de um jornal importante, no Rio Grande do Sul, escreveu: “O problema da literatura de João Silvério Trevisan é saber onde termina o militante e onde começa o escritor”. Isso é uma maneira delicada entre aspas de me estigmatizar como viado. Mas quanto à militância, continuo fazendo.

Brasileiros – Há outros escritores brasileiros, como João Gilberto Noll e Marcelino Freire, que embora homossexuais assumidos não padecem, na mesma escala, desse problema com a crítica.
J.S.T. –
Não sei como é o caso desses escritores que você citou, mesmo o Caio Fernando Abreu, que era abertamente homossexual. No meu caso, há dois agravantes. Primeiro, sou fundador do movimento homossexual brasileiro. Tive uma militância de fato e acompanho a luta pelos direitos dos homossexuais. Além disso, faço questão de não esconder minha homossexualidade, porque não vejo motivo para esconder a minha forma de amar. Isso acaba me estigmatizando seriamente, talvez pelo provincianismo brasileiro e, eventualmente, de parte da crítica. Só entrei nas universidades, como objeto de estudo, com o livro Ana em Veneza e só comecei a receber prêmios, depois do meu primeiro livro de temática não homossexual, o O Livro do Avesso.

Brasileiros – Curioso, escritores estrangeiros abertamente homossexuais, como Gore Vidal, foram e são bem recebidos no Brasil.
J.S.T. –
Você conhece aquela história “Viado, tudo bem, mas não na minha família”? É isso. Houve uma badalação imensa, no passado, em torno do Gore Vidal. Antes dele, aconteceu com o Jean Genet, escritor extraordinário. Autores homossexuais mais recentes, como Michael Cunningham, também foram bem recebidos por aqui. Quando são publicados no Brasil, o fato de serem homossexuais ou tratarem dessa temática acaba sendo um fator atrativo, para apresentá-los ao público brasileiro. Se o escritor é brasileiro, ao contrário, é motivo para ser desconsiderado. E me incomoda muito que a minha homossexualidade seja tomada como sinônimo da minha personalidade. Entre os muitos componentes da minha personalidade está a minha homossexualidade.

Brasileiros – O que está sempre presente na sua obra?
J.S.T. –
A reinvenção. Gosto que Ana em Veneza seja um livro diferente de Vagas Notícias de Melinha Marchiotti, que, por sua vez, será diferentíssimo do O Livro do Avesso, que é muito diferente do Rei do Cheiro. A literatura tem esse compromisso, de se reinventar.

Brasileiros – Isso não dificulta classificar a sua obra?
J.S.T. –
Talvez dificulte um pouco. Mas acho que você pode encontrar na minha literatura um caminho muito claro, um caminho de busca, tanto do ponto de vista temático quanto da perspectiva de uma abordagem formal.

Brasileiros – Qual é o significado da sua literatura?
J.S.T. –
Minha obra é um instrumento de desvendamento pessoal. Claro que com isso, eu não quero me apresentar ao mundo apenas como a mim mesmo. Mas gostaria de me apresentar como estou me redescobrindo. O começo de O Livro do Avesso é exemplar desse movimento de autoconhecimento. Quando terminei o livro, fui lê-lo e fiquei muito assustado, porque eu tinha escrito o contrário do que eu imaginava ter escrito. Fui correndo ao meu analista, já que estava fazendo análise – o que foi muito importante para a confecção desse livro – e disse: “Jaime, eu enlouqueci. Olha o que escrevi”. De fato, ao entrar no santo do santo de mim mesmo, revelei o outro. E foi fantástico, porque esse é exatamente o princípio da identidade, um dos temas do livro. A identidade está baseada na mais absoluta impossibilidade de se identificar. Nosso interior é feito de inúmeras pessoas, inúmeras máscaras, uma quantidade imensa de personagens. É lá que o escritor bebe para criar. A gente não sabe, mas os personagens estão dentro de nós. O que a literatura propicia na verdade é isso: um encontro comigo mesmo. Se eu não tivesse recebido esse presente da vida, ou seja, de ter sido escritor, teria enlouquecido. A escrita é minha maneira de me comunicar com minhas contradições, meu mistério. A literatura supõe transfiguração. E toda literatura que se preze é epifânica.


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