Falar com ele para combinar a matéria até que foi fácil. Em seu estilo objetivo e direto, deu o endereço de onde mora e avisou:
– Então, na quarta-feira, espero vocês lá em casa. Às 5 da matina.
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Tão cedo não havia nem porteiro na área social. Para subir ao apartamento do nosso personagem, foi preciso descer até a garagem do velho prédio da Avenida Higienópolis, encostado no Pacaembu, um clássico dos anos 1950 com pastilhas na fachada, que já abrigou a aristocracia paulistana.
No horário combinado, ele apareceu todo lépido e sorridente, ainda ajeitando a gravata, na sala de visitas. Ao ver a nossa cara derrubada naquela hora precoce da manhã, os dois em pé admirando uma imagem de Buda que domina o ambiente, ele achou graça.
– Pensei que vocês tivessem desistido…
Ainda estava em tempo, até pensei nisso, mas valia a pena encarar o desafio de acompanhar um dia na vida dessa figura incomum no jornalismo brasileiro para tentar desvendar um mistério.
Como ele agüenta esta rotina, que começa no estúdio do Jornal da CBN, às 6 da manhã, e só vai terminar lá pelas 11 da noite, quando volta para casa depois de apresentar o Jornal da Cultura do outro lado da cidade?
Para encontrar a resposta, só seguindo seus passos. Nas quase 10 mil citações do seu nome no Google não achei a receita. Com seu portal temporariamente fora do ar (ele nem sabia disso) para “mudança do layout do site”, encontrei apenas uma enxurrada de referências aos seus livros e entrevistas que estudantes fizeram com ele sobre o seu trabalho verdadeiramente full-time.
Nas horas vagas (?), fiquei sabendo que acha tempo para fazer palestras, escrever livros e colunas para jornais e revistas e colaborar em projetos sociais, mas guardou na gaveta seu brevê de piloto. Nada encontrei, porém, que esclarecesse o mistério.
Como ele agüenta?
Na cozinha, a também jornalista Walkiria dos Santos, 48, a ex-aluna com quem Heródoto Barbeiro, 62, está casado há 23 anos, termina de preparar o café-da-manhã: suco, iogurte, queijo branco, um pedaço de mamão. A outra moradora, Porã, uma cachorra da raça são-bernardo, ainda dorme no quarto do casal. Os dois filhos do primeiro casamento de Heródoto não seguiram jornalismo: Maurício, 28, é dono de loja de roupas em Santos e Guilherme, 27, está tirando o brevê de piloto de helicóptero.
O barulho do espremedor deve acordar o prédio inteiro, mas os vizinhos já estão acostumados. Walkiria também já se habituou a acordar cedo para preparar o café do marido. “É a única hora que nós temos para conversar um pouco. À noite, quando chega, ele nem janta. Toma um banho e vai dormir direto.”
Em todos os dias úteis da semana, há 15 anos, o despertador do rádio-relógio sintonizado na CBN toca notícia antes das 5 da manhã, quando ainda está escuro em São Paulo. Antes de sair de casa, Walkiria, que também é sua sócia na HW Serviços de Comunicação, empresa criada para cuidar de contratos e palestras, vem-lhe trazer o passaporte para ver se está em dia.
Nessa quarta-feira carrancuda de fevereiro, ameaçando chuva, dia seguinte à renúncia de Fidel Castro, Heródoto, precavido, acha melhor levar o passaporte no bolso. A qualquer momento poderia ser mandado para fazer a cobertura em Cuba. Como aqueles jornalistas de antigamente, ele sempre sabe como o dia começa, mas nunca como e onde termina.
No caminho para o trabalho, falou do pai, Augusto, que era dono de bar no Parque Dom Pedro II, no centro velho, onde nasceu e foi atropelado por um bonde (sim, ainda havia bondes na sua infância…), quando tinha 6 anos. Se não fosse o motorneiro que o salvou, não estaríamos aqui contando esta história.
Estudou em diferentes colégios da região central, todos públicos. Depois que o bar do pai virou oficina, começou a trabalhar como ajudante de mecânico e borracheiro. Foi também office-boy de comerciantes da região, antes de se tornar professor ainda muito jovem, ofício que exerceu por mais de 20 anos. Caso raríssimo, só iniciaria sua carreira de jornalista depois dos 40, já formado em direito, além de história.
Heródoto não é do tipo autobiográfico. Só fala dele mesmo quando questionado. Com o distanciamento de quem está traçando o perfil de outra pessoa, não tem nenhum cacoete de famoso. “Meu pai cismou de colocar nomes gregos nos cinco filhos. Por coincidência, fui ser professor de história, mas meu irmão Hipócrates não é médico. O médico da família é o Aristóteles…”
Até recentemente, ele ia a pé para a sede da emissora, na Rua das Palmeiras, em Santa Cecília, a umas dez quadras de casa. Mas, como agora os bares da região permanecem abertos a noite toda, a barra pesou e ele passou a ir de carro, um Fiat Palio. No banco de trás, leva sempre uma sacola com material de atleta. Duas ou três vezes por semana, troca o almoço por ginástica ou natação no Sesc da Rua Vila Nova. Dependendo do dia, vai ao trabalho na sua Kombi branca movida a gás, novinha em folha, que usa para ir ao seu sítio em Taiaçupeba, distrito de Mogi das Cruzes, no Alto Tietê. Uma das suas manias é essa: já teve bem meia dúzia desses furgões pré-históricos desde o tempo em que era pobre.
Às 5h35, Heródoto já está reunido em sua sala com a equipe que passou a noite e a madrugada preparando o principal jornal da Rede CBN – são três horas e meia de notícias sem parar no horário nobre do rádio. A placa afixada na porta da sala informa que ali trabalha não só o âncora, que há 15 anos é marca registrada da CBN, mas também o gerente nacional de jornalismo da emissora – dois dos muitos papéis que os Heródotos exercem conforme a hora do dia.
Por isso, os colegas, que só se referem a ele como “mestre” e “professor”, costumam dizer que Heródoto Barbeiro não é um só, são vários que atendem pelo mesmo nome. Numa coluna na entrada da redação, um desses Heródotos mandou colocar o cartaz com a célebre frase de Cláudio Abramo:
O jornalismo é o exercício diário da inteligência e a prática cotidiana do caráter.
“É bom deixar aí pra gente lembrar disso todo dia”, ensina o jornalista, que, de fato, não perdeu os ares de professor. Sobre o armário da sala do âncora-gerente, vê-se apenas uma imagem de Buda (sempre ele…), o boneco de borracha de um periquito, que usa para fazer vodu quando o Palmeiras joga contra o seu Corinthians, e um dos muitos troféus que ganhou ao longo da carreira, o capacete dado aos vencedores do Grande Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo de 2002.
Clésio Botelho, 44, o chefe de produção do jornal, que entrou às 2h30 da madrugada e trabalha com Heródoto há nove anos, passa rapidamente o cardápio das principais notícias ao chefe – são mais de 20 assuntos, que vão da repercussão da renúncia de Fidel Castro até a discussão sobre o celibato dos padres e a mudança das regras na demissão por justa causa, passando pela inevitável CPI dos Cartões, o futebol, o trânsito, o tempo, os acidentes do dia e o barril de petróleo a US$ 100.
Para tratar desses temas, são chamados até oito entrevistados por dia pelos cinco jornalistas que cuidam da retaguarda na redação e movimentam as equipes espalhadas pelas ruas de São Paulo, Rio e Brasília, além de acertar as entradas dos comentaristas. Entram em rede as 25 emissoras da CBN espalhadas por todo o país. A grande dúvida até agora é sobre a entrevista de José Dirceu comentando a renúncia de Fidel. Um assessor dele confirmou sua participação, mas não quis dar o telefone de onde o ex-ministro se encontra.
“Queres abordar isso?”, pergunta Clésio com seu forte sotaque gaúcho, passando-lhe a informação de que um deputado carioca pretende declarar o símbolo do Bope, uma caveira, patrimônio cultural do Rio de Janeiro. Heródoto checa tudo com as laudas que trouxe do noticiário do Jornal da Cultura da noite anterior, da mesma forma como faz ao sair da rádio e levar as notícias da manhã ao seguir para a televisão à tarde.
É como se a informação na cabeça dele funcionasse num sistema de moto-contínuo em que apenas é atualizada de um veículo para o outro. Dá ainda uma rápida passada d´olhos nos jornais, pesca alguma coisa na internet, permite-se um delicado tapa na mesa e ordena para ele mesmo: “Vamos, que está na hora!”.
Sobe correndo dois lances de escada e, faltando um minuto para as 6 da manhã, lá está ele em pé, de gravata, mas sem paletó, atrás da bancada no estúdio, onde vai passar os próximos 210 minutos. O tempo é militarmente cronometrado por José Paschoal Júnior, 42, um misto de operador de áudio, contra-regra e animador de auditório, que saiu de Mogi das Cruzes, a 50 quilômetros de São Paulo, antes das 5 da manhã e já está a mil por hora.
“Agora, são 6 horas. Temperatura oscilando entre 19 e 20 graus. Está no ar o Jornal da CBN – as notícias que podem mudar o seu dia”, solta a voz o jovem Tiago Barbosa, 26, locutor do noticiário quente que vai chegando enquanto o programa está no ar e é também o stand-by de Heródoto para alguma emergência. Nesta última função, porém, quase não tem chance. Clésio, o produtor, nem se lembra qual foi a última vez que o chefe chegou atrasado ou faltou sem avisar na véspera.
Mas todos se lembram do susto que levaram em dezembro de 2006, pouco antes do Natal, quando Walkiria ligou à noite para avisar que o marido não poderia apresentar o jornal no dia seguinte. Ao sair para jantar na casa do seu colega Carlos Alberto Sardemberg, âncora do jornal da hora do almoço, Heródoto sentiu um estranho mal-estar com dores no peito. Resolveu dar uma passada no Hospital Samaritano, ao lado do prédio onde mora, para ver o que era.
Era um quadro de pré-enfarte, com a obstrução de uma artéria que irriga o coração. Só saiu de lá depois das festas do ano-novo, com uma ponte de mamária. Como não bebe, não fuma e não joga, faz exercícios físicos regularmente, não come gordura e tem pressão normal, sem antecedentes familiares, os médicos até hoje não sabem o que aconteceu. “Foi um acidente”, resume ele, que em nada alterou seus hábitos de vida após o susto.
Cercado por dois monitores de computador, uma pilha de jornais sobre a bancada, com o fone de ouvido acoplado a um microfone chamado de “Madonna”, Heródoto, sempre em pé, esfregando as mãos, gesticula e mexe o corpo todo feito um maestro de orquestra alemã para ler as notícias que não param de chegar. Não usa óculos.
Rosângela Silva, 26, a estagiária assistente de Clésio Botelho, que começou a trabalhar no jornal nesta semana, olha ainda um pouco assustada para aquele mito que agora é seu colega e se diverte com os malabarismos do operador Paschoal Júnior, comandando uma bateria de computadores em volta da mesa de áudio de 22 canais que mais parece um painel de Boeing.
Heródoto também se diverte com os e-mails que recebe de todo o país da sua rede de ouvintes fiéis que fazem comentários sobre os comentários dele. Um deles escreve de Araraquara sobre as estranhas imagens de plantações que apareceram nos últimos dias na televisão, sugerindo que havia pousado um disco voador no município. Tratava-se, na verdade, explica o ouvinte, de uma campanha publicitária para o lançamento de um produto. O âncora aproveita o gancho para chamar Mônica Poker, a repórter do trânsito:
– E aí, Mônica, você viu algum disco voador passando na Avenida Paulista?
– Olha, Heródoto, avisa os ETs para tomar cuidado porque temos muita nebulosidade na Paulista neste momento…
Enquanto Paschoal desfaz a rede nacional para uma “janela” de cinco minutos reservados aos comerciais e ao noticiário local, Tiago sai voando para apresentar de outro estúdio o noticiário transmitido para as cidades menores que fazem parte da rede. Heródoto aproveita para fazer alongamento atrás da bancada, cena que já assustou muitos ouvintes que acompanham o jornal transmitido por vídeo na internet e ligam para saber o que aconteceu.
Para cronometrar o tempo de cada “janela” e a entrada dos repórteres, a equipe conta com dois grandes relógios digitais que marcam até os segundos. Diante de Heródoto, outro aparelho digital indica a temperatura, que no momento é de 22 graus.
Como ele agüenta?
Clésio e Paschoal dão brevíssimas saídas do estúdio para pitar meio cigarro no fumódromo improvisado ao lado da escada de incêndio, Rosângela sai uma vez para ir ao banheiro, mas Heródoto nem isso. É um entra-e-sai de produtores trazendo informações da redação que o âncora afixa e lê no seu monitor, um improvisado teleprompter radiofônico. Tiago lê as notícias do Repórter CBN, que entra de meia em meia hora, enquanto Heródoto dá uma olhada nos jornais do Rio que acabaram de chegar.
Continua a novela sobre a participação ou não de José Dirceu. É preciso esperar por uma ligação dele porque o assessor não deixou nenhum telefone. Surge a informação de que o ex-ministro está em viagem para a Europa, mas o vôo se encontra atrasado (no dia seguinte, eu ficaria sabendo que Dirceu estava no Brasil). Alguém sugere que se tente contatar o jornalista Ruy Mesquita, do Estadão, para entrar em seu lugar.
É este o maior drama de quem produz o Jornal da CBN: encontrar gente para entrevistar ao vivo a esta hora, antes das 7 da manhã. As empregadas têm receio de acordar os patrões e, muitas vezes, quando eles próprios atendem, simplesmente não funcionam. “Tem gente que está acostumada a acordar mais tarde e não consegue render uma boa entrevista a essa hora”, explica Clésio, que vai passando tarefas para a estagiária Rosângela, encarregada de fazer as ligações.
Às 6h45, Paschoal deixa um repórter falando sobre o acidente com a turbina que caiu de uma carreta na Marginal Tietê e liga para pedir pão e margarina na padaria. É a “hora do desjejum”, como ele anuncia com pompa.
Na volta para Heródoto, o âncora fala do projeto do novo estádio do seu Corinthians. Torcedor daqueles doentes, ele comenta que “o nosso novo estádio vai colocar o Morumbi no bolso”, referindo-se ao estádio do São Paulo. Paschoal completa: “É… vai ser maior do que o Carandiru…”, fazendo troça com o presídio desativado, mas o comentário dele não vai para o ar.
Fiscais do Ibama são feitos reféns numa serraria do Pará, presidente da OAB protesta contra prisão de “flanelinhas” em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, reforma tributária está enguiçada – Heródoto vai enfileirando os assuntos e entrevistados, quando finalmente se ouve uma boa notícia, às 7h34: “Paschoal, chegou a margarina!”, avisa a bela assistente Rosângela.
Preocupado em manter a boa forma, Heródoto sai do estúdio pela primeira e última vez, desce os dois lances de escada e vai até a sua sala para buscar três barrinhas de cereal, dessas de passageiro da Gol. Surge a opção de ouvir o professor Cândido Mendes sobre Cuba, mas logo em seguida chega o aviso da redação de que José Dirceu já está na linha. Lucia Hippolito faz mais um comentário sobre cartões corporativos, depois é a vez de Arnaldo Jabor dar uma paulada em Fidel e no regime cubano. Clésio aproveita a deixa e sugere: “Então vamos falar logo na seqüência com o Zé Dirceu para dar o outro lado…”. Heródoto concorda.
Às 8h07, começa a entrevista.
– Bom dia, José Dirceu.
– Bom dia, Heródoto.
Como faz com todos os entrevistados, Heródoto vai direto ao assunto, sem muitos prolegômenos.
– O senhor acha que com a renúncia de Fidel pode estar caindo o último bastião do mundo comunista, já que a China….
José Dirceu nem ouve o final da pergunta e faz uma veemente defesa de Fidel, do regime e do povo cubanos, como era de esperar. A entrevista dura uns cinco minutos e logo em seguida Heródoto já está falando de uma notícia de O Globo sobre a prática de exercícios para idosos na China, mostrando os cinco passos para chegar aos 90 anos.
Se depender dessa receita, o nosso personagem chega lá: “Não fumar, controlar a pressão e o peso, evitar o diabetes e praticar exercícios”. Paschoal faz um sinal esticando o braço para Heródoto e dá o comando.
– Atenção, rede. Voltamos em um minuto com Míriam Leitão.
Heródoto procura alternar assuntos pesados com outros mais amenos, faz brincadeiras com colegas da rádio, levanta a bola para os comentaristas, improvisa em cima de notícias que acabam de chegar e sempre abre espaço para a informação de última hora. Sem bom humor, explica, certamente ninguém agüentaria essa maratona – nem o ouvinte, nem ele.
No computador de Heródoto chega uma mensagem: “Céus, entra ano, sai ano, e o José Dirceu não consegue achar o R do pRoblema. Abs., Neuza”.
No estúdio, o e-mail é comentado e alguém diz, fora do ar: ” O Cony, que é o Cony, não consegue falar aeroporto. Só sai aereoporto”.
Entre 9h e 9h30, na última meia hora do programa, o ouvinte fica sabendo que o vice-presidente José Alencar foi novamente internado no Hospital Sírio-Libanês, como informa o repórter Paulo Henrique Souza. Morreu o senador Jonas Pinheiro. Cientistas criam um supercurativo inspirado em pata de lagartixa e cresce a crise entre agentes e delegados federais.
O professor e ex-ministro Francisco Weffort também é ouvido sobre a renúncia de Fidel Castro. Diz que ele só será absolvido pela história se ela for escrita pelo presidente venezuelano Hugo Chávez.
Manoel Santos, um produtor cego que cuida do atendimento ao ouvinte, vem fazer sua visita habitual ao estúdio e é recebido com festa. “Eu trabalho aqui como funcionário há nove anos”, conta, mostrando com orgulho o crachá. “Mas antes eu já trabalhava como clandestino no programa do Paulo Lopes…”.
A temperatura sobe para 28 graus, o trânsito continua com problemas na Marginal Tietê e o colunista Sergio Abranches comenta o aumento do uso de energias alternativas.
O jornal está chegando ao final de mais uma edição, sem que o âncora tivesse sentado uma única vez na sua cadeira. Em compensação fez uma variada série de alongamentos. Antes, porém, toda a equipe corre para posar com Heródoto diante da bancada. Parecem felizes.
Como ele agüenta?
Às 9h30, sem fazer nenhuma escala no banheiro, enquanto o apresentador Milton Jung assume o microfone, Heródoto segue a passos rápidos para um outro estúdio, onde já o aguarda o operador de áudio Ernesto Promissão, que trabalha há seis anos com ele. Juntos, já gravaram mais de 500 entrevistas para o programa Mundo Corporativo, que vai ao ar nos finais de semana.
“Como você quer que eu te apresente?”, pergunta, antes de iniciar a gravação, ao entrevistado do dia, Henrique Szklo, autor do livro O Grande Milk-shake e os Canudinhos Mentais, que é escritor, professor, publicitário e palestrante. “Sou que nem pato, que anda, nada e voa, e não faz nada direito…”, brinca Szklo. A entrevista de meia hora gira em torno do tema criatividade. Heródoto olha fixamente para o autor do livro, mostra-se muito interessado no que ele fala e emenda uma pergunta na outra como se tivesse lido o livro todo e fosse um especialista no assunto (só lê os resumos que os autores lhe mandam, conta-me depois).
Toda vez que Promissão lhe faz o sinal para chamar o intervalo comercial, Heródoto respira fundo, conta até cinco e recomeça exatamente onde parou, repetindo a pergunta com as mesmas palavras como se fosse uma gravação. Na seqüência, já grava as passagens (ligação entre os blocos) e as chamadas do programa, tudo sem fazer nenhuma anotação. “O Heródoto é diferente dos outros porque parece que ele está prestando atenção no que você está falando. Nem sei se está mesmo, mas faz bem esse papel…”, comenta o entrevistado comigo ao se despedir.
Outra vez sem escalas, Heródoto volta para a sua sala, onde já o aguarda o inseparável Clésio, carregando um monte de laudas na mão com as sugestões de pauta para o programa do dia seguinte. “Fidel já deu, né?”, concordam logo os dois, que preferem programar um assunto mais prosaico: o prefeito de Londres pediu à população que passasse a beber água de torneira em lugar de água mineral. Quem poderia falar sobre isso? Em poucos minutos, eles fazem uma lista de possíveis entrevistados para esse e outros assuntos. Às quartas-feiras, nesse horário, Heródoto costuma participar da reunião de gerentes com Mariza Tavares, a diretora-executiva da CBN. Mas como ela está de férias, então aproveito essa breve pausa para lhe fazer pela primeira vez a pergunta inevitável.
Como ele agüenta?
“Eu agüento porque meu trabalho o dia inteiro é um só, tanto na rádio como na televisão, uma coisa é ligada na outra. Só faço isso. Não conseguiria mais dar aulas, por exemplo, teria de preparar e não tenho condições”, tenta explicar, mas não convence nem a ele mesmo. Além do que, não é bem verdade. E as palestras? “Ah, mas eu só faço palestras sobre jornalismo…”. E os livros?
Foi só tocar no assunto que ele se empolga ao falar do seu novo projeto: um almanaque sobre os presidentes da República escrito ao contrário, de frente para trás, em parceria com a professora Bruna Canteli, que já fez a pesquisa histórica. A idéia inicial do projeto do livro a ser lançado pela Ediouro era que ele fizesse apenas um artigo jornalístico crítico sobre cada um, começando por Lula e indo para trás, até Deodoro. Mas já mudou. Agora ele vai cuidar também da parte histórica de Lula até João Goulart e a professora cuidará dos demais até chegar ao primeiro.
Heródoto é autor de 12 ou 13 livros, nem ele sabe direito, que tratam de temas tão diversos como história, a CIA, o velho centro de São Paulo, manuais de jornalismo de rádio e televisão (estes em parceria com Paulo Rodolfo, seu colega da CBN), Buda (sempre ele…). Aos poucos ele vai dando algumas pistas. Por exemplo, conta que é capaz de tocar o livro em qualquer brecha do seu trabalho na rádio ou na TV. Da mesma forma, garante que não leva os problemas de uma emissora para a outra, nem para casa (só as notícias, claro).
“Ah, também procuro aproveitar os buracos do dia para meditar. Depois do almoço, quando dá, tiro um cochilo de meia hora…”.
Percebe-se que Heródoto não gosta de falar sobre ele mesmo e estranha a insistência do repórter na pergunta, pois deve achar que a vida que leva é a coisa mais normal do mundo. Gosta mesmo é de falar do seu trabalho na rádio, embora faça a ressalva: “Jornalismo é jornalismo, não importa a plataforma. Costumo dizer que aqui nós não fazemos rádio, fazemos jornalismo”.
Não é para menos. Heródoto, que já fazia sucesso na Jovem Pan, depois de trocar as aulas no cursinho do Objetivo pelo rádio e cursar jornalismo na Cásper Líbero, foi contratado pelo Sistema Globo de Rádio para participar do projeto da CBN bem antes que a emissora fosse para o ar, há 15 anos. Tem orgulho da separação entre o editorial e o comercial na emissora, o que lhe dá total autonomia de trabalho para fazer o que gosta.
O resultado disso é uma audiência recorde de 160 mil ouvintes/minuto em média numa emissora só de notícias. Foi ele quem mais brigou durante os primeiros cinco anos para colocar a CBN, antes só sintonizada na AM, também na FM (70% dos ouvintes sintonizam a emissora no carro). “Nós criamos um paradigma. Antes se dizia que jovem não ouvia notícia porque FM é só para tocar música. Não ouviam notícias antes porque não tinha, agora tem…”.
De repente, irrompe em sua sala o amigo Mário Ronchi, 60, um piloto de testes da Fiat aposentado, seu vizinho de fim de semana em Taiaçupeba. Faz mais de 30 anos que Heródoto comprou lá um pedaço de terra de 25 alqueires, onde já se dedicou à apicultura, mas, agora, está mais preocupado em preservar a mata nativa, razão da visita do obsessivo Ronchi, que só fala nisso – e fala alto – o tempo todo. “Nem consigo mais dormir, já perdi até a minha mulher, eles estão acabando com a mata!”, desabafa para nós, enquanto Heródoto vai dar uma volta.
Os dois são ativos militantes da Sociedade Amigos de Taiaçupeba, onde Heródoto é uma espécie de assessor de imprensa honorário para abrir as portas de empresas e autoridades em busca de ajuda em defesa do que restou da Mata Atlântica ameaçada por lenhadores e loteadores, mais ou menos como acontece na Amazônia, só que a menos de uma hora de carro da Praça da Sé.
Para tratar desse assunto, eles marcaram para hoje um almoço com o prefeito Marcelo Cândido, do PT, que também é o presidente da Sociedade dos Municípios do Alto Tietê, no restaurante Jardim de Napoli, na Martinico Prado, bem perto de onde Heródoto mora. Enquanto todos devoram o famoso polpettone com macarrão, tentam convencer o prefeito e seus três assessores a colocar o poder público a serviço da causa.
O almoço termina pouco depois das 2 da tarde e Heródoto resolve ir descansar um pouco em casa. Mas, ao pegar seu carro no estacionamento, encontra o velho amigo Antonio Buonerba, 68, dono do Jardim de Napoli, que mantém nos fundos do terreno um boteco privê que é seu escritório. Uma placa colocada na entrada não é muito convidativa. Embora escrita em espanhol, dá para entender do que se trata:
Si entrar por esta puerta te mato.
É uma brincadeira, claro, um presente que ganhou do jornalista gastronômico Dias Lopes. O Boteco do Tonico foi montado “só para os amigos” e Heródoto é um deles. Como se estivessem em Taiaçupeba ou no centro velho de São Paulo de antigamente, os dois ficam ali proseando sobre um novo forno de pizza e uma ferida no pé de Tonico que está demorando a sarar. Combinam de fazer uma pizza juntos em breve – quer dizer, sabe-se lá quando. Minha mulher já me ligou duas vezes para perguntar como eu estou agüentando o tranco depois de ter acordado às 4 da manhã. Bem, se ele, que é mais velho, agüenta fazer isso todos os dias, tenho de resistir a pelo menos uma dessas maratonas.
Como ele agüenta?
Com cara de quem está começando o dia, Heródoto chega à TV Cultura para sua segunda jornada de trabalho às 17h20, depois de dormir uma hora em casa, dar alguns telefonemas e conversar com os filhos. De roupa esporte, vai sendo parado no caminho até chegar à sua mesa nos fundos da redação, como faz há 13 anos. Brinca com todo mundo e sempre nega as histórias que os colegas contam dele. Também aqui chamado de “mestre”, Heródoto virou uma lenda viva e fica difícil saber o que é verdade ou mentira nas histórias que circulam na redação.
Insisto em saber qual é o milagre, a receita para se manter sempre zen, sorridente e bem disposto em suas múltiplas atividades. Como o dia está calmo de notícias, antes de se reunir com o editor-chefe do Jornal da Cultura, Ricardo Taira, ele decide me contar a verdadeira história do seu personagem oculto, que pouca gente conhece: o monge Gento Ryotetsu, nome de um patriarca budista que adotou quando passou a freqüentar o templo dessa religião na Rua São Joaquim, na Liberdade.
Ainda muito moço, com 20 e poucos anos, estudava história na USP. Foi lá que conheceu Ricardo Mário Gonçalves, professor do curso optativo de História Oriental, que lhe perguntou se ele não queria dar aulas de inglês para uma senhora japonesa convidada a ensinar ikebana para a mulher do cônsul da Inglaterra.
“Estava precisando de uma graninha, então aceitei, mas não deu certo. A mulher não falava português e eu não falava japonês…”, vai contando e se divertindo com a própria história. Lembra que estava parado diante de uma estátua grande e dourada no meio da sala, quando perguntou ao professor Gonçalves:
– Quem é esse cara?
– É o Buda.
– Como funciona isso aqui?
– Vem aqui no sábado. Tem meditação.
Foi. Havia poucas pessoas não japonesas entre umas 30 que estavam participando do ritual. A partir daí, sua vida começou a mudar. Eles se encontravam nesse dia num templo da Soto, uma das várias escolas zen-budistas. Heródoto achou estranho ficar sentado virado para a parede na posição de meditação. Meditar sobre o quê?, queria saber. O seu professor de História Oriental, que já era monge, andava de um lado para o outro dando pequenas pancadas com um bastão comprido chamado kyosaco. “Parecia negócio de doido, não sabia por que estava meditando e ainda aquele bastão batendo na gente…”.
Num intervalo, enquanto tomavam chá verde, Heródoto perguntou o sentido de tudo aquilo ao seu professor e se não podia lhe fornecer alguma literatura em português para se informar melhor sobre o budismo. Ficou sabendo que nessa escola zen não se transmite conhecimento por escrito nem oralmente. Como assim? Esse é o mistério, explicou-lhe o professor. “Precisa brotar de dentro, a partir de um conhecimento intuitivo que toda pessoa tem.”
“Para mim, foi uma paulada na cabeça. Comecei a freqüentar o templo aos poucos. A prática da meditação começou a despertar em mim uma consciência racional que eu não conhecia.” Quando foi ver, já tinha se transformado no monge Gento Ryotetsu, na época em que ainda dava aulas no curso de madureza do Colégio Santa Inês, no mesmo Parque Dom Pedro II onde havia nascido.
Com muita paciência, Heródoto vai-me explicando o que faz um monge. “É aquele que dedica parte do seu tempo à prática do budismo. Não tem ordenamento como acontece com os sacerdotes na Igreja Católica. E também não é para sempre. Você pode deixar de ser monge quando quiser. Esta medalha aqui que eu carrego no pescoço é para me lembrar a todo instante de que estou vivendo o darma, a doutrina histórica do budismo.”
Na sua rotina do dia-a-dia, ele procura “colocar a mente em repouso” sempre que possível, buscando o equilíbrio psicofísico. “O mais importante é o equilíbrio psíquico, conseguir acabar com os conflitos que todos os seres humanos têm. Isso me ajuda muito no jornalismo porque o budismo é o caminho do meio, o caminho do equilíbrio para dominar a paixão e ser capaz de ouvir igualmente todos os lados envolvidos.”
Muito bem, finalmente entendi como ele agüenta essa roda-viva diária, mas agora está na hora de ele trabalhar novamente. Ao telefone, faz uma reunião de pauta com Michelle Trombelli, uma das produtoras do Jornal da CBN, que lhe adianta o cardápio do jornal do dia seguinte. Ao mesmo tempo em que fala ao telefone, corre os olhos pelas manchetes da tarde nos principais sites e ainda arrisca uma espiada no monitor de TV ligado no jogo Arsenal x Milan.
Do rádio para a televisão, na seqüência ele troca rapidamente algumas idéias sobre as chamadas do telejornal com o editor-chefe Taira. São 18h30, ainda faltam três horas e meia para o programa entrar no ar, mas Heródoto já segue para o ritual diário na maquiagem, também conhecida como “sala dos milagres” porque faz feio virar bonito e velho sair moço. “Quanto mais velho, mais tempo demora na maquiagem…”, conforma-se, apressando o passo porque às 7 em ponto precisa gravar as primeiras chamadas do telejornal.
As operações são simultâneas. Enquanto Wellington Carvalho ajeita o cabelo, Heródoto faz ele mesmo a barba com um aparelho elétrico que a emissora comprou especialmente para o apresentador. Várias pessoas tinham me pedido para perguntar a ele sobre a tintura que usa no cabelo, coisa que não tive coragem de fazer durante todo o dia, mas arrisquei indagar ao cabeleireiro, que entregou o ouro de bandeja. “É uma mistura que ele mesmo criou com marrom dourado e castanho natural, não ficou bom?”
Três profissionais, sob o comando de dona Terezinha, cuidam do visual capilar de Heródoto: um faz a cor, outro, o corte, e Wellington só cuida do acabamento, como ele mesmo explica.
No mesmo corredor da maquiagem, onde ficam os camarins dos artistas e apresentadores, Heródoto agora entra numa saleta de 2 por 2, com um espelho, uma pia e uma cadeira. “Aqui é o lugar onde eu sento para dar uma meditada. Apago a luz e desligo”, segreda, sem se importar com o fotógrafo que continua fazendo seu trabalho e o repórter que não pára de perguntar. Agora entendi por que, na véspera, o jornalista Paulo Markun (presidente da Fundação Padre Anchieta, a mantenedora da TV Cultura), com quem ele divide o camarim, tinha me alertado para esse hábito de Heródoto “dormir um pouco no camarim antes de apresentar o jornal”. É assim que surgem as lendas…
“Fala, são-paulino!”, provoca ao entrar no estúdio do telejornal, onde umas 15 pessoas já o aguardam para gravar as chamadas, às 18h55. Enquanto os técnicos fazem o ajuste da câmera, Heródoto dá mais uma passada nos textos, acerta uma aposta para o próximo jogo do Corinthians contra o Palmeiras e colabora para uma lista de casamento. “Ele comprou a Kombi só para entregar as cervejas que perde nas apostas…”, vinga-se o são-paulino.
– Atenção! Vamos gravar! Silêncio!
A voz do diretor de estúdio impõe respeito no recinto e Heródoto manda ver:
– Daqui a pouco, no Jornal da Cultura…
Os telespectadores ficam sabendo que o telejornal vai tratar de Cuba pós-Fidel, do aumento do número de mulheres trabalhando na construção civil, da quantidade exagerada de sal que estão colocando nas pizzas congeladas e de uma olimpíada estudantil de língua portuguesa. Gravadas as chamadas, o monge da notícia agora segue para fazer sua refeição noturna: uma xícara de chá e um pedaço de bolo.
Agradecemos sua atenção, desejamos-lhe boa sorte e nos despedimos, mesmo sabendo que a sua jornada ainda vai se prolongar até depois das 11 da noite, horário em que costuma chegar em casa. Esclarecido o mistério, missão cumprida, fomos tomar um chope no Bar do Alemão, como fazem os jornalistas normais que não se tornaram monges.
Só ele mesmo agüenta levar uma vida de Heródoto Barbeiro, quer dizer, Gento Ryotetsu.
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