O mostrengo e seus estragos

Os navegadores portugueses que se aventuravam por mares desconhecidos na virada do século XV muitas vezes acordavam aterrorizados, suando frio nos seus beliches improvisados, quando a madeira das naus rangia mais forte. Tinham medo do “mostrengo”, a figura assustadora dos poemas de Fernando Pessoa: “O mostrengo que está no fim do mar / Na noite de breu ergueu-se a voar / À roda da nau voou três vezes / (…) / Três vezes rodou, imundo e grosso (…)”.

Há um mostrengo sobrevoando o espaço aéreo brasileiro e que deveria fazer os responsáveis pela aviação civil acordarem à noite suando frio.
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Como os mostrengos do poeta das navegações lusitanas, esse mostrengo não aparece nítido e claro no horizonte. Aparece (ou melhor, não aparece) por entre a bruma. Vindo de onde? Ninguém sabe. Mas especula-se. Especula-se, procuram-se os culpados pela assustadora aparição, mas o que se vê é apenas a mais completa escuridão.

Os usuários dos aviões continuam a empurrar seus carrinhos de bagagem pelos corredores apinhados dos aeroportos. Antes, as despedidas eventuais eram, na sua maioria, “tchaus” leves e alegres. Mesmo os abraços fundos, carregados da emoção que marca as grandes separações, traziam embutida a certeza da volta.

Tudo isso acontecia nos saguões dos aeroportos. Acontece ainda, mas agora, se calhar, em meio a gritos histéricos, troca de tapas no check-in entre passageiros e recepcionistas, grupos improvisados cantando o Hino Nacional sem talento e sem maestro, desordem pura, lágrimas, indagações perplexas – onde eu vou dormir? -, televisões em cima, tentando captar a melhor imagem e “fechando” na dona-de-casa urbana, classe média assumida, exibindo um nariz de palhaço.

Como se diz na linguagem do momento, “ninguém merece”. Menos ainda os quase 80 milhões de passageiros que pagaram para voar, muitos dos quais não conseguem por causa do “apagão aéreo”, o primeiro que assolou o Brasil desde que o cidadão comum, e não apenas a elite, começou a usar o avião como meio de transporte.

Quando o raro prazer de voar deixou de ser prazer para se transformar em martírio?

Tudo parece ter acontecido do dia para a noite. Mas é claro que não foi assim. A atual crise no sistema aeroportuário tem múltiplas origens, algumas bastante antigas. Mas é a única na história que teve dia, hora, minuto, até segundo para vir à tona, desabrochar e finalmente ser percebida.

Foi num fim de tarde ensolarado, quando o céu estava limpo e claro, o famoso céu de brigadeiro. Às 16h48min do dia 29 de setembro do ano passado, um Boeing da empresa Gol desapareceu do radar.

Levava 154 pessoas a bordo, o que transformou o acidente naquele que fez mais vítimas na história da aviação brasileira. O Gol, que fazia a rota Manaus-Brasília, colidiu, exatamente às 16h56min54s, com um jato executivo Legacy, uma obra-prima da engenharia nacional em aviões dessa classe, fabricado pela Empresa Brasileira de Aeronáutica S/A (Embraer).

O célebre transponder
A colisão se deu a 37 mil pés de altitude (flight level 370), a aproximadamente 11,2 mil metros acima do nível do mar, na via aérea UZ6 (como na terra, o espaço tem suas rotas bem demarcadas).

A UZ6 é uma aerovia de mão dupla. As altitudes pares (34, 36, 38 mil pés) são destinadas ao tráfego no sentido Brasília-Manaus. As altitudes ímpares (37 e 39 mil pés) são reservadas para o sentido Manaus-Brasília. O Legacy foi pego na contramão. Voava de Brasília para Manaus na faixa ímpar, a 37 mil pés.

As duas aeronaves dispunham de um sistema anticolisão, o hoje conhecidíssimo, quase célebre, transponder. Há quem diga que o equipamento não funcionou ou que os pilotos estavam distraídos. Ainda não existe uma versão definitiva. É bastante provável a de que os dois pilotos norte-americanos não dominassem por completo o instrumental que lhes fora colocado na mão em São José dos Campos para ser levado a Houston, no Texas.

Afinal o Legacy era recém-saído da linha de montagem. Não é impossível que um dos pilotos, por equívoco, tenha desligado o transponder imaginando que estivesse apenas sintonizando o radiocomunicador. Acidentes aéreos muitas vezes têm causas prosaicas. Em geral mais de uma, combinadas entre si pelo imponderável. Por isso as investigações costumam ser demoradas e sigilosas. Pelo menos era assim.

A imprensa divulgou que existiriam “áreas de silêncio” na região da Serra do Cachimbo, onde caiu o Gol, versão reforçada pelo depoimento dos pilotos do Legacy de que tentaram várias vezes em vão contatar a torre de Brasília – especulação logo desmentida pela Aeronáutica, mas sem muita convicção.

Possivelmente seja verdade. O Sistema de Controle do Espaço Aéreo Brasileiro (Sisceab) não escapou da prática usual do contingenciamento de verbas previamente alocadas pelo orçamento da União. E não é improvável que tenha ocorrido algum problema com equipamentos e faltado recursos financeiros para repará-los. Algum dos 143 radares espalhados pelo território nacional, por exemplo, pode ter apresentado um defeito. Alguns desses radares já são peças de museu. Movidas a gerador.

O acidente do vôo da Gol deixou expostas várias fraturas do organismo da aviação comercial brasileira. Foi como um mergulhador que, depois de vasculhar o fundo de um rio, sobe à tona rebocando toneladas de lixo. Esse lixo foi espalhado pelos aeroportos de todo o País, provocando mal-estar generalizado, frases tolas e atitudes pouco racionais por parte de vários dos agentes envolvidos. Desde passageiros revoltados, funcionários de empresas aéreas que perderam o controle, os controladores propriamente ditos, os responsáveis pelas empresas, até o presidente da República, que acabou sendo empurrado para dentro dessa enxurrada de problemas. O tema do momento passou a ser o “apagão aéreo”. Pauta obrigatória, quase diária, da mídia. O assunto levou até à instalação de uma dupla CPI no Congresso.

Braços cruzados
Passaram-se dez longos meses, acusações e denúncias se sucederam, sem que nenhuma providência visível fosse tomada, exceto a prisão de um grupo de sargentos da Aeronáutica acusados de motim por cruzarem os braços em sinal de protesto em razão das condições precárias a que estavam submetidos no seu estressante dia-a-dia.

Até que, num início de noite invernal tipicamente paulistano, com frio e chuva, uma explosão com chamas acompanhada de fumaça preta e densa surgiu junto à cabeceira da pista de Congonhas, o aeroporto mais movimentado do País. O mostrengo voltara a atacar, desta vez com fúria redobrada.

Ocorrido em plena disputa dos Jogos Pan-Americanos, no Rio, o acidente com o Airbus A320 da TAM quebrou novamente o recorde brasileiro: 199 mortos, entre passageiros e pessoas que estavam nas instalações atingidas pela derrapagem do gigante voador, a maior parte delas, numa cruel coincidência, funcionários do depósito de encomendas da própria TAM.

O impacto foi tão forte que a parte dianteira da aeronave ficou soterrada em toneladas de escombros e praticamente desapareceu. Uma semana havia se passado e os bombeiros ainda não tinham chegado à cabine de comando para tentar retirar o que sobrara – se é que sobrara algo – do piloto e co-piloto. Do lado de fora, à vista de todos, apenas a cauda do aparelho com a marca TAM, de um vermelho vivo, acusador, como que cobrando responsabilidades pela tragédia.

Do Palácio do Planalto não veio um ruído, uma explicação, sequer uma nota lamentando o ocorrido. O governo como um todo, o Ministério da Defesa, a Aeronáutica, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), supostamente encarregada da regulamentação do setor e que na verdade desregulamentou o que já existia – perceberam que nada tinham a dizer, já que nada fora feito desde o acidente da Gol.

O que poderia dizer o presidente Lula diante da nova aparição do mostrengo dos ares?

As próprias empresas se calaram, como caladas estavam desde o início do “apagão”. Limitaram-se a dizer que a pista de Congonhas sofrera as reformas sugeridas e fora liberada pelas autoridades responsáveis, que, a partir do início do caos aéreo, ninguém mais sabe quem são, se a Infraero, a Anac, a Aeronáutica ou o Ministério da Defesa.

E as especulações em torno das causas do acidente do Airbus passaram a ser o assunto do dia em São Paulo e no Brasil. Nas conversas, o tal transponder foi substituído pelo reverso. Há os que defendem o uso do reverso. Há os que dizem, com certa razão, que é melhor voar com o reverso “pinado”, ou seja, desligado. E olhem, essa dúvida não se restringia a discussões entre técnicos. Virou assunto de mesa de bar, de conversa familiar durante o jantar logo após o Jornal Nacional.

Já no sábado, quatro dias depois do desastre, o Cindacta IV, que cobre toda a região amazônica, deixou de operar misteriosamente.
E vôos continuaram sendo cancelados, como já é rotina, assim como atrasos de horas e até de dias.

Isso é a caixa-preta?
A polícia teve de intervir para evitar que passageiros irados continuassem atirando objetos dos mais variados nos funcionários protegidos atrás dos balcões de check-in. Em Brasília, uma senhora desmaiou depois de uma discussão com um funcionário, e um herói anônimo salvou-a. Arrancou a camisa e fez respiração boca a boca. Em Belo Horizonte, um passageiro chamou a aeromoça para dizer que os fones de ouvido não estavam funcionando. Diante de uma resposta enviesada, resolveu indagar se pelo menos os freios do avião estavam em ordem, uma clara alusão ao problema da derrapagem em Congonhas. Foi o bastante para a aeromoça ser tomada de histeria, para o comandante chamar a Polícia Federal e para o passageiro e sua senhora serem retirados à força da aeronave.

A sucessão de vexames que já envolvia o governo – como a “brincadeirinha” da ministra do Turismo, Marta Suplicy, e seu histórico e inesquecível “relaxa e goza” – e as afirmações seguidas de que tudo estaria normalizado em questão de horas, ou simplesmente que não havia problema algum nos céus do Brasil, seriam enriquecidas por episódios cômicos, não fossem trágicos.

Por exemplo, a chegada, em grande estilo, do presidente da TAM ao hotel onde a empresa reunira as famílias das vítimas, praxe em todo acidente de proporções. Supondo, quem sabe, que lidava com traficantes de drogas e não com pessoas que precisavam ser consoladas após perdas terríveis, o presidente da companhia desceu dos ares (chegou de helicóptero) e permaneceu o tempo todo rodeado por seguranças armados. Uma vergonha.

No âmbito da Força Aérea Brasileira (FAB), foram várias as “gafes”. Primeiro, o envio para os Estados Unidos de um emaranhado de ferragem retorcida pelo incêndio como se aquilo fosse a “caixa-preta” do Airbus. Falha só constatada quando os bombeiros localizaram a caixa verdadeira, intacta.

No dia em que o Cindacta IV “apagou”, a FAB imediatamente cogitou na hipótese de sabotagem dos controladores. Estes responderam à altura. Publicaram nota em que diziam: “nós não somos terroristas”. Poucas horas depois, a Aeronáutica, meio sem jeito, anunciava que a pane no amazônico sistema do Cindacta IV fora provocada por uma barbeiragem de um eletricista.

Isso para não mencionarmos o “top-top” palaciano nem um pouco respeitoso do assessor especial para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia. Ou a falta de sensibilidade do governo que, na semana da tragédia do Airbus, distribuiu, em solenidade tipicamente brasiliense, medalhas da Ordem do Mérito Aeronáutico para um punhado de dirigentes da Infraero e da Anac, entre eles o senhor Milton Zuanazzi, escolhido para o cargo por ser “assim” com a ministra Dilma e com a famosa fumadora de charutos Cohiba, Dona Denise Abreu, vice-presidente da empresa. Por serviços prestados à aviação brasileira.

A verdade é que os equívocos e erros de avaliação deste governo no caso dos acidentes da Gol e do Airbus têm suas origens lá atrás, num passado distante. Os problemas de Congonhas são conhecidos há décadas.

Entre eles um, gravíssimo: uma pista muito curta, de 1.900 metros, numa região densamente povoada, sem área de escape e sem espaço disponível para mais um metro sequer de pista. Pousar em Congonhas equivale a descer num porta-aviões.
Um erro de cálculo, por menor que seja, é fatal.

Os desmandos administrativos da Infraero, as concorrências superfaturadas etc. são apenas mais um dado, talvez o menos importante, da “crise do apagão”.
Essa crise surgiu de um somatório de circunstâncias que provocaram o desgaste de todo o organismo da aviação civil brasileira. Todo organismo é composto por órgãos. Uma definição digna do Conselheiro Acácio (personagem de Eça de Queirós em O Primo Basílio), mas necessária ao nosso raciocínio.

Retirar órgãos do organismo é como retirar órgãos do corpo humano. Até mesmo a substituição de órgãos oferece riscos.

Pode ocorrer o fenômeno da rejeição. É o que parece estar acontecendo com a Anac, criada em substituição ao Departamento de Aviação Civil (DAC). Congonhas, por sua vez, é um aeroporto condenado desde 1982. Naquele ano, a Câmara Municipal de São Paulo concluiu pela necessidade de construir um aeroporto decente para a cidade que explodia de saúde e vigor econômico.

Havia os que defendiam um trem rápido ligando Viracopos ao Centro. Outros propunham a construção de um aeroporto inteiramente novo. Outros ainda defendiam a expansão de Cumbica, em Guarulhos. Inclusive a Aeronáutica, que via no aeroporto a valorização da antiga Base Aérea instalada ali.

É interessante lembrar que a palavra “cumbica” em tupi significa “nuvem baixa”. Mas que importância teriam essas nuvens baixas nestes tempos de modernidade? Afinal todo mundo estava cansado de assistir na TV a aviões pousando nos EUA com visibilidade zero graças a uma maquininha maravilhosa chamada ILS (Instrumental Landing System). Esqueceram que o ILS norte-americano funciona durante todo o inverno. O de Cumbica, quase sem serventia, tornou-se obsoleto e foi abandonado.

O debate, reaberto agora, depois do desastre do Airbus, perdurou até os idos de 1990, quando o intrépido e nunca assaz louvado comandante Rolim, dono da então pequenina Táxi Aéreo Marília, decidiu invadir o mercado dominado pela Varig, pela Transbrasil e pela Vasp e criou a TAM.

Rolim percebeu a importância dos city airports (aeroportos centrais) e trouxe para o Brasil os então moderníssimos Fokkers 100, aviões a jato capazes de pousar em pistas curtas e com razoável autonomia.

Conseguir que o DAC (o antigo Departamento de Aviação Civil) liberasse Congonhas para pousar os Fokkers 100 exigiu do comandante muito esforço, apoios políticos e, provavelmente, alguns malabarismos financeiros.

Até a chegada do primeiro Fokker 100 da TAM, Congonhas era cenário para passeios dominicais dos paulistanos que iam tomar café no aeroporto e ver, de hora em hora, um Electra II da Varig decolar para o Rio de Janeiro com sua eterna dignidade de melhor turboélice da história da aviação. Cada um levando apenas 50 passageiros.

De aeroporto romântico e charmoso, Congonhas passaria rapidamente a ser o mais movimentado do País. Sim, porque atrás dos Fokkers 100 viriam sucessivamente os Boeings 500 da Varig, os similares da Transbrasil, da Vasp etc. Era inevitável que assim fosse. Voar havia deixado de ser um prazer. Passara a ser uma necessidade para os modernos executivos, que logo não dispensariam seus celulares e laptops abertos sobre os joelhos enquanto aguardam a chamada do vôo.

Quem poderia exigir que os negociantes da aviação comercial abrissem mão da comodidade de ter um aeroporto praticamente no centro de uma cidade como São Paulo? E quem poderia impedir que esse aeroporto tão bem localizado se transformasse num dos dois principais “hubs” (pontos de conexão) do País?

Nos tempos da fúria privatista tucana, Congonhas se agigantou. Superou a marca dos 7 milhões de passageiros/ano. Para atenderem à demanda, e faturarem mais, as companhias aéreas trouxeram aeronaves maiores e cada vez mais pesadas. O importante era faturar. A segurança foi sendo deixada de lado. Até o layout interno dos aviões começou a sofrer alterações. Menos espaço entre as fileiras de poltronas. Menos conforto para os passageiros, mas mais dinheiro no caixa das empresas.

Resultado: hoje Congonhas, com seus escassos 1.900 metros de pista, ultrapassou a cifra dos 16 milhões de passageiros/ano quando no máximo deveria estar recebendo 8 milhões. E o que é pior (ou seria melhor?), a “clientela” de Congonhas não quer saber de mudar de aeroporto. Motivo? Fica perto de tudo. Pelo menos até a terça-feira do acidente do Airbus.

A reação a outro acidente, o de 1996, quando um Fokker 100 se estatelou assim que alçou vôo na direção do Jabaquara, foi igualmente dramática, mas logo assimilado como simples fatalidade.

No íntimo, apenas no íntimo, quem embarcava em Congonhas talvez conjeturasse: e se o desastre acontecesse na outra ponta do aeroporto? Se o avião caísse, por exemplo, em cima do Shopping Ibirapuera, sobrevoado diariamente a poucos metros de altura pelos vôos que saem em direção contrária?

Não, não faltaram alertas. O livro de ocorrências do DAC em Congonhas possui todo tipo de incidente que se possa imaginar. Só que ao lado do aeroporto implantaram-se grandes redes de hotéis. Construiu-se no raro sistema das Parcerias Público-Privadas (PPP) um imenso estacionamento operado pela empresa Camargo Corrêa, que investiu os tubos e está ávida para recuperar o que gastou. A Brasif abriu em Congonhas uma loja de produtos importados, uma das maiores vitrines do varejo aeroportuário do mundo. E a Infraero, do alto da sua competência, iria dar um jeitinho de faturar uns trocados.

A confusão em Congonhas chegou a tal ponto que ocorreu um fenômeno insólito: o atropelamento de um passageiro por um ônibus em plena pista de taxiamento. Não há registro de tamanha calamidade nem mesmo nos aeroportos da Royal Air Force durante a invasão da Normandia, em junho de 1944.

O condenado aeroporto de Congonhas recebeu no governo Lula investimentos da ordem de R$ 530 milhões. Construiu-se uma nova ala de embarque e nada menos do que 12 pontes de acesso às aeronaves, os chamados “fingers”. Tudo feito com o aeroporto em operação para alegria dos contadores das companhias aéreas e demais interessados.

A capacidade do aeroporto foi aumentando sempre de acordo com esses interesses: 8, 10, 12, 16 milhões de passageiros/ano. Nada menos do que 650 operações/dia durante 17 horas.

A Anac ainda tentou transferir pelo menos 40% dos vôos de Congonhas para outros aeroportos. As companhias aéreas chiaram e a Anac recuou. Agora se fala em medidas drásticas, em investimentos milionários em Cumbica e Viracopos, na colocação das ranhuras que não foram instaladas na pista principal de Congonhas por falta de tempo e porque os sindicatos das empresas exigiram que elas fossem reabertas antes da temporada de férias, como de fato foram.

Algumas perguntas serão respondidas pela consolidação das duas caixas-pretas, de vozes e de dados, que foram examinadas nos Estados Unidos. Contra todas as recomendações internacionais e ante o constrangimento do brigadeiro-do-ar Jorge Kersul Filho, chefe do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, o conteúdo dos diálogos na cabine foi revelado para a imprensa e para o público em um lamentável espetáculo na CPI do Apagão Aéreo da Câmara dos Deputados.

E é provável que a “culpa” seja atribuída principalmente a uma falha humana, um erro, ou distração do comandante. Ou que se levantem tantas hipóteses que a responsabilidade seja diluída entre a chuva fina que caía na hora, a falta de aderência do concreto recém-instalado na pista e o peso excessivo da aeronave.

O que é certo é que se o Airbus tivesse pousado em Cumbica ou em Viracopos, o máximo que os passageiros sofreriam seria um susto e um solavanco. O próprio manual do Airbus recomenda pistas de 2.500 metros. Mas trata-se apenas de uma recomendação, dizem alguns especialistas, nunca de uma restrição taxativa a pistas menores.

MASSIFICAÇÃO E REDUÇÃO DA FROTA
Uma razão “acaciana” para a atual crise do setor foi o crescimento do número de passageiros. Entre 2000 e 2006, esse número saltou de 41,7 milhões para 57,6 milhões, enquanto a frota de aeronaves despencava de 366 para 230. Uma queda de 37%. Só a Varig, entre 2005 e 2006, viu sua frota ser reduzida em 73 aviões e chegou a operar precariamente com apenas 15. Isso para não falar na Transbrasil e na Vasp, completamente desativadas.

Com o mercado que era de várias empresas restrito praticamente ao duopólio TAM-Gol, essas duas empresas chegaram a auferir lucros de 15%, no caso da supercompetitiva Gol, e de 7,6% na TAM, mais conservadora. As empresas que mais prosperam são as mais rápidas na adoção de novos procedimentos, como foi no Brasil a introdução do e-ticket, que praticamente decretou a morte da “loja de vendas” tradicional. Ou as que conseguem diminuir seus custos e assim adotam tarifas reduzidas ou mesmo promocionais. Tem sido assim no mundo inteiro. Por que seria diferente aqui?

Lá fora as empresas se chamam Southwest, JetBlue, Ryanair, EasyJet, Virgin. No Brasil, Gol, BRA etc. Só que há uma diferença essencial. As tarifas promocionais jamais são oferecidas nos casos de vôos para os aeroportos principais. Muito menos para os chamados city airports.

A concentração dos “hubs” em São Paulo e, num segundo momento, em Brasília, também contribuiu, e muito, para a situação de caos aéreo. Brasília, pela posição geográfica e pela importância como capital, passou a ser o ponto ideal para receber e redistribuir passageiros por todo o País. Com isso, as empresas do duopólio TAM-Gol praticamente abandonaram outras possibilidades.

Poderiam ter feito um “hub” específico para a região Norte-Nordeste, que seria implantado em qualquer dos novos e modernos (alguns reformados) aeroportos daquela região. Só para citar algumas possibilidades, poderíamos mencionar João Pessoa, Recife – cujo aeroporto, por razões que só a política explica, já foi inaugurado seis vezes -, Natal e eventualmente Fortaleza. Isso desafogaria Brasília. Ou manter São Paulo como “hub” para o Sul, mas nunca em Congonhas.

Outra opção, essa já iniciada pela Infraero, seria resgatar o Galeão, abandonado, quase esquecido pela concorrência do Santos Dumont, quase tão caótico como Congonhas.

O uso intensivo de Brasília como único “hub” da TAM e da Gol acabaria “estressando” o aeroporto. Seu terminal foi previsto para receber até 9 milhões de passageiros/ano. Está recebendo 14 milhões.

O “estresse” brasiliense logo desceu para a região habitada pelos controladores de vôo. Cerca de 80% deles são sargentos “especialistas” da Força Aérea Brasileira, remunerados precariamente como simples sargentos “especialistas”. Eles têm uma única possibilidade de promoção – a suboficial. Mas aí já é preciso deixar de ser controlador para assumir maiores responsabilidades. Como se existisse maior responsabilidade do que administrar vidas humanas no espaço.

A mera insinuação de que a culpa pelo acidente do Gol 1907 poderia estar numa falha dos controladores acendeu o estopim do que se chamaria, primeiro, “operação padrão”, depois “greve” e, finalmente, “motim”. Militar não faz greve. Se se rebela, é um “amotinado”.

Na teoria, um controlador de vôo deveria, pelas recomendações internacionais, ter sob sua responsabilidade no máximo 14 aeronaves. Mas como me disse um controlador, “tudo é muito relativo”.

Ele explica sua teoria da relatividade: “Nós trabalhamos em dupla, por setor. Meu setor tem 14 aviões. Mas isso não significa que eu tenha de controlar sempre 14. Se minha freqüência não estiver boa, eu tenho de reduzir. E a verdade é que tem controlador com 20. Quer saber de uma coisa? A gente está carregando o sistema nas costas há anos. Pra quê? Pra que o fluxo ande”.

E vem o desabafo: “A Aeronáutica e a população acham ruim quando você trabalha da forma correta, mais segura. Eles querem é fluxo. Então, tome fluxo!”.

Isso é o que interessa no big business que é a aviação hoje em dia. Dizem até que, por trás dos “amotinados”, o que existe realmente é o desejo de alguns especialistas em big business de, quem sabe, um dia, o governo brasileiro privatizar o controle aéreo.

Seria um big business de fazer inveja para o mundo.


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