O mundo inteiro na seca

Em toda a extensão do globo, simplesmente não há como se abrigar dos efeitos do sol que castiga o meio oeste dos Estados Unidos, região conhecida como Corn Belt ou cinturão do milho. É lá que está concentrada a maior produção mundial de milho, um dos grãos mais importantes para a alimentação humana, base para a produção de rações para aves e suínos. A quebra da safra deste ano, equivalente a mais de um terço de uma colheita que deveria ser a maior da história, elevou as cotações das principais commodities agrícolas para níveis nunca atingidos antes. Os Red Necks, como são chamados os trabalhadores rurais americanos, também respondem por boa parte da produção mundial de produtos como soja e trigo, é bom lembrar.

Foi quase como se o Brasil, dono da segunda maior lavoura de milho e maior produtor de soja e de carne, estivesse também exposto às temperaturas recordes do verão do Hemisfério Norte. Como a cotação do milho disparou no mercado internacional, as exportações ganharam um apelo quase irresistível, afetando a oferta doméstica. Entre os derivados que tiveram os preços elevados, talvez o principal seja o farelo, usado como ração nas granjas, de forma que o kg do frango e da carne de porco também encareceu. Em agosto, produtores de Santa Catarina chegaram a ser flagrados jogando fora pintinhos vivos para não ter de arcar com os altos custos da alimentação dos animais. Era o início de uma reação em cadeia que se somou a fatores climáticos adversos no Brasil – responsáveis pela alta de outros produtos, a exemplo do tomate – e culminou com fortes pressões sobre os índices de inflação.

Ainda assim, é injusto remeter aos céus toda a culpa e deixar de fora alguns fatores de ordem estrutural. A quebra de safra foi real, mas ninguém nega que as bolsas de mercadorias agrícolas estão cada vez mais sensíveis a surtos de pânico – nem sempre justificáveis – e sujeitas a movimentos de manada alimentados mais pelas expectativas do que pela realidade. Segundo o Banco Mundial, o montante financeiro aplicado em fundos atrelados a índices de commodities agrícolas subiu de US$ 45 bilhões para US$ 250 bilhões entre 2005 e 2008. Naquela época, os grandes administradores de recursos estavam traumatizados pela crise das hipotecas subprime, que transformou em pó, do dia para a noite, os ativos atrelados ao mercado imobiliário americano. Todos buscaram refúgio nas commodities e, ao que tudo indica, gostaram do jogo. Ainda hoje, estima-se que o equivalente a toda safra mundial de trigo troque de mãos a cada dia, na forma de títulos financeiros.

Em visita ao Brasil, para participar do Global Agribusiness Forum, realizado no final de setembro em São Paulo, o ex-vice-presidente americano Al Gore, que ganhou o Nobel da Paz por seu ativismo contra o aquecimento global, afirmou que a produtividade das lavouras de milho e soja decai exponencialmente quando a temperatura se mantém acima de determinados níveis – 29 ˚C, no caso do milho, e 31 ˚C para a soja. E mostrou um estudo que comprova que, em 30 anos, as chances de ocorrerem ondas de calor extremo durante o ano subiram de 0,1% para 10%. “Os fazendeiros sabem, nos EUA e no Brasil, que o aquecimento global é uma realidade, embora as grandes empresas banquem estudos para criar dúvida e dizer que 98% é um grau baixo de certeza”, afirmou. “O fato é que os alimentos registraram dois picos de preços nos últimos dois anos. E, se nada for feito, a situação só vai piorar.”

Se sabemos que o mundo está tão refém de impactos climáticos adversos, o reforço às estruturas internacionais de armazenagem de alimentos seria uma atitude quase lógica. Mesmo assim, os estoques mundiais de alimentos poucas vezes estiveram em níveis tão baixos. De acordo com o professor Renato Maluf, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, é o resultado de décadas de transferência da responsabilidade pela gestão de estoques de alimentos das mãos dos governos para as da agroindústria. Em vez de manter caríssimas estruturas de armazenamento, as multinacionais produzem em várias regiões, o que garante não só proteção contra as oscilações de preços, como até um ganho extra nos momentos mais críticos para os países.

“Os estoques privados de alimentos não são regulados, e nem transparentes”, afirma Maluf, que já presidiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea). Segundo o professor, há muito tempo os preços dos produtos agrícolas sobem, em todo o mundo, acima da inflação, e as explicações vão além das oscilações do mercado, do clima ou da falta de estoques. “Há o impacto do petróleo sobre os transportes, o custo do desperdício, as barreiras comerciais e, sobretudo, a política de preços dos oligopólios de distribuição, que não permitem que o valor final das massas e pães caia proporcionalmente quando a cotação do trigo recua.”

O sócio-diretor da consultoria MB Agro, José Carlos Hausknecht, prevê que, dado o tamanho da quebra de safra e a importância dos EUA na produção agrícola mundial, deverá ser preciso esperar de dois a três anos até que os patamares de preços retornem aos níveis anteriores aos de 2012. “Em 2008, tínhamos uma crise de demanda, porque os mercados esperavam que a necessidade de alimentos fosse superar muito em breve a oferta, por conta do crescimento acelerado da China e dos países emergentes. Hoje, é uma crise de oferta, uma situação localizada que tende a se normalizar”, explica. Mas a pergunta fica em aberto: há garantia de que não vão ocorrer outras catástrofes climáticas antes que os mercados tenham chance de se recuperar?

O próprio uso da palavra crise para descrever o status atual da segurança alimentar no mundo permanece controverso. Em entrevista à Brasileiros, o diretor-geral do órgão das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), José Graziano, descartou que o mundo esteja diante de uma situação como a de 2008, quando os preços mundiais dos principais alimentos subiram 50% no intervalo de 12 meses. “Eu resumo a situação atual da seguinte maneira: não estamos numa crise, mas precisamos seguir alertas”, adverte. Graziano destaca a criação de mecanismos de coordenação internacional como o Sistema de Informações de Mercados Agrícolas (SIMA), criado pelo G20 no ano passado, com a participação dos principais exportadores e consumidores de milho, trigo, soja e arroz. “O SIMA permite maior troca de informações, o que dá mais transparência aos mercados, e tem também um Foro de Resposta Rápida para que os países possam coordenar respostas em vez de agir unilateralmente, como acontecia no passado.”

Renato Maluf, que hoje também integra o Painel de Alto Nível de Especialistas do Comitê de Segurança Alimentar da FAO, garante que a fragilidade demonstrada pelo sistema de produção e distribuição de alimentos nos últimos anos é o bastante para configurar a existência de uma crise – e de natureza sistêmica, não conjuntural. “Ainda não está claro se o problema atual está restrito ao milho, que ganha evidência por ser uma espécie de petróleo da alimentação. Mas o preço da soja não chegou sequer a voltar aos níveis anteriores aos de 2008”, afirma.

O papel do setor privado na solução dos problemas alimentares do mundo constitui outra fonte de controvérsia. Também presente ao Global Agribusiness Forum, o diretor-executivo do Centro para o Desenvolvimento Agrícola e Rural da Universidade de Iowa (EUA), Bruce Babcock, garantiu à Brasileiros que as novas variedades de sementes transgênicas resistentes à seca foram responsáveis por elevar sensivelmente os tetos de temperatura para as lavouras citados por Al Gore. “O declínio da produção, desta vez, foi menor do que em outras secas”, afirmou. Ele transfere parte da responsabilidade pela alta dos preços às duas maiores nações emergentes. “Se China e Índia, que decidiram manter os maiores estoques mundiais de grãos, decidirem liberar parte do que mantêm armazenado, são capazes de fazer os preços recuarem.”

Após convocar o setor privado a trabalhar com os governos no combate à insegurança alimentar, em um artigo publicado recentemente no The Wall Street Journal, o diretor da FAO recebeu duras críticas de movimentos sociais ligados ao campo, que o acusaram de deixar de lado a bandeira da agricultura familiar. Em resposta, a agência informou que “a luta contra a fome, que atinge cerca de 900 milhões de seres humanos, não pode desperdiçar nenhum recurso, escala ou aliado”.

Graziano lembra que, no Brasil, 70% dos alimentos são produzidos pelos pequenos produtores. E acrescenta que a alta de preços pode ser uma oportunidade: “Se eles tiverem condições para aproveitar esse incentivo”. Acesso a mercados, disponibilidade de recursos naturais, insumos de qualidade e crédito seriam fatores necessários para elevar os ganhos dos agricultores familiares.

De acordo com a presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), Maria Emília Lisboa Pacheco, os caminhos para a solução da crise alimentar passam por políticas que garantam mercado para a agricultura familiar, sobretudo a baseada em culturas regionais, capazes de reduzir a dependência das commodities tradicionais. “Os pequenos produtores se veem diante da necessidade de pagar royalties pelas sementes e ficam presos a um esquema centralizado de distribuição. Tudo isso dificulta a diversificação da produção, que é uma das soluções no longo prazo para a insegurança alimentar, e destrói o principal legado que podemos deixar para o futuro.”


Comentários

Uma resposta para “O mundo inteiro na seca”

  1. Avatar de DANILO DA SILVA MOTA
    DANILO DA SILVA MOTA

    cascola tradicional faz chover. leve pra onde ha seca.

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