O naufrágio de Orson Welles

Os jangadeiros do Ceará, aqueles homens fortes e valentes que encantaram Orson Welles há exatos 70 anos, estão em extinção. Duas décadas atrás, cerca de 80 mil deles navegavam pelos 573 km da costa cearense. Hoje, não chegam a 30 mil. Por outro lado, persistem as más condições de vida desses trabalhadores – mais de 80% ainda vivem com menos de um salário mínimo por mês.

Esses homens de pele grossa tostada pelo sol trazem todos os anos do mar algo em torno de 18 mil toneladas de pescado na mais completa informalidade. Quando ficam doentes, por exemplo, recolhem as velas e simplesmente encostam a jangada. O máximo que alguns conseguem é uma minguada aposentadoria.

Na praia do Mucuripe, vila que já foi o paraíso de pescadores e hoje está tomada pela especulação imobiliária, localizada ao leste do centro de Ceará, os jangadeiros se reúnem todas as tardes em uma espécie de bolsa do pescado. Ali, descarregam o peixe capturado durante a noite e às primeiras horas do dia, para oferecer seus produtos. Os atravessadores dão seus lances, sempre querendo pagar menos pelos cestos abarrotados.

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No local, também se reúnem ex-pescadores que, por algum motivo, ainda se sentem atraídos por aquela atmosfera. “Em mais de 50 anos de pesca, não arranjei nada na vida”, diz Lourival Basílio, 77 anos, que conheceu pessoalmente Manuel Olímpio Meira, o jangadeiro Jacaré, que se tornou personagem do filme inacabado It’s All True, do americano Orson Welles.

Jacaré, que nasceu na antiga comunidade Praia do Peixe, hoje Praia de Iracema, em Fortaleza, tornou-se herói depois de uma séria aventura: em 1941, ele e os jangadeiros Manuel Pereira da Silva (Mané Preto), Jerônimo André de Souza (Mestre Jerônimo) e Raimundo Correia Lima (Tatá) saíram de Fortaleza até o Rio de Janeiro de jangada, sem bússola ou carta náutica. A ideia era chamar a atenção do então presidente Getulio Vargas para o estado de abandono em que os pescadores viviam – os benefícios sociais obtidos pelos trabalhadores na gestão do presidente não chegavam aos jangadeiros. No entendimento dos quatro homens do mar, Vargas precisava saber da situação.

No dia 14 de setembro de 1941, guiados apenas pelas estrelas, eles partiram em direção ao Rio de Janeiro, a então capital do País, onde ficava Vargas. Depois de 61 dias, em 15 de novembro, concluíram o percurso de 2.500 km. Ao chegarem à Baía da Guanabara, foram recebidos como heróis. Vargas os recebeu e, só depois de conseguirem a promessa do presidente em ampará-los – eles obtiveram a extensão dos direitos trabalhistas à classe dos pescadores – , voltaram para o Ceará em um bimotor da Navegação Aérea Brasileira.

Em dezembro de 1941, a revista Time reproduziu a odisseia de Jacaré e seus amigos. No ano seguinte, Orson Welles, autor do clássico Cidadão Kane (1941), embarcava para o Brasil. Ele havia sido convidado pelo governo norte-americano para realizar um filme oficial sobre o País. O projeto fazia parte da política de boa vizinhança, levada a cabo pelo governo do presidente Roosevelt para o continente latino-americano. O mundo combatia o nazifascismo e, já mergulhada na Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos pretendiam unir os países do continente americano contra o inimigo. O filme de Welles, em quatro episódios, seria, então, uma peça do plano de aproximação.

It’s All True focaria, além da aventura dos pescadores cearenses, o carnaval carioca e uma história ambientada no México. Mas, na manhã de 19 de maio de 1942, 15 dias depois de iniciadas as filmagens com os jangadeiros, a agitação do mar virou a embarcação em que estavam e jogou os quatro homens no mar. Jerônimo, Tatá e Preto se salvaram, mas Jacaré, o líder, desapareceu. Seu corpo jamais foi encontrado. O filme de Welles ficou inacabado e só redescoberto em 1982.

Perigo no mar

Dos cinco filhos de Lourival Basílio, nenhum quis enfrentar o dia a dia de um jangadeiro. “Um deles chegou a tentar, mas não tinha jeito pra a coisa”, diz o velho pescador, em um final de tarde a caminho de seu quartinho que fica em uma área alagadiça nas imediações do Mucuripe. “Na primeira saída, ele ficou enjoado com a maré e não parava de vomitar.”

“Melhor assim”, diz Lourival, “porque a situação atual é ainda pior. Vivi muita crise nessa vida de pescador. Na época da guerra, por exemplo, era perigoso pescar porque tinha submarino inimigo rondando nossa costa, mas tinha muito peixe”, salientando que hoje a pesca predatória e a poluição afastam os animais marinhos das águas cearenses.

Um estudo da Universidade Federal do Ceará (UFC) mostra que a produção pesqueira marinha caiu cerca de 30% nas últimas três décadas no Estado. Aliás, a maior parte dos peixes encontrada em mercados e restaurantes de Fortaleza chega de outros Estados, como Pará e Maranhão. Uma lista do Ibama aponta 21 espécies de peixes marinhos em extinção no Ceará. Nela, figuram os peixes serra, badejo, lambaru, cioba, garoupa, camurim, xeréu, bonito, beijipirá, piramutaba, caranha e pargo.

Aos pescadores artesanais, que não têm outra alternativa de subsistência, resta a possibilidade de se arriscar em jangadas em águas cada vez mais profundas, em busca de cardumes que ainda resistem. “A pesca está cada vez mais perigosa”, afirma Lourival. Os acidentes em mar aberto não param de acontecer. Em fevereiro, três pescadores saíram da Praia das Balsas, no município de Camocim, ao norte de Fortaleza, e apenas o corpo de um deles, Francisco de Assis Cruz, foi encontrado cinco dias depois em uma praia do Maranhão. Outra embarcação desapareceu na mesma região em novembro passado, com quatro pescadores. Ninguém foi localizado.

Possidônio Soares Filho, presidente da Colônia de Pesca Z-8 e responsável por todos os pescadores de Fortaleza, engrossa o coro das reclamações da categoria. “Além dos riscos naturais da profissão, a maioria dos jangadeiros é muito pobre, ainda vive na miséria, em casas simples e com muitas doenças.” A história se repete: muitos pescadores artesanais não conseguem adquirir embarcação própria e ainda prestam serviço a terceiros. As dificuldades para conseguir o instrumento de trabalho são enormes, a começar pelo preço das jangadas. As embarcações de maior porte chegam a custar, em média, R$ 10 mil. Os motores, que facilitam a pesca, sobretudo em período de vento forte (entre julho e novembro), valem em torno de R$ 7,5 mil.

Além disso, os pescadores ainda enfrentam burocracia para a liberação de financiamentos bancários, único meio que têm de comprar uma embarcação. As dificuldades passam também pelas taxas de obtenção da licença para navegar, fornecida pela Capitania dos Portos, e a autorização para pescar, dada pelo Ministério da Pesca. Quanto maior a embarcação, mais elevado é o valor da licença.

Com menos de 5 m e sem motor, ainda é possível obter autorização por meio da Colônia de Pescadores. O problema é que, quando o trabalho é terceirizado, o chamado “pescar de canto”, a pesca é dividida meio a meio entre o pescador e o dono do barco. E sobra muito pouco para quem se arrisca no dia a dia da profissão. “Se o pescador quer prosperar, vai juntando o dinheiro para comprar a embarcação própria. Mas, para ter um barco, é preciso arcar com uma série de encargos e despesas”, diz Soares Filho.

Ele acredita que o financiamento para pescadores deveria ser mais facilitado. Para conseguir um empréstimo bancário, hoje, o trabalhador da pesca deve pedir uma declaração à Colônia de Pescadores, atestando que a pessoa é filiada à entidade e está em plena atividade. Precisa ainda apresentar uma série de documentos que provem sua condição de arcar com a dívida. Para completar, os juros são desestimuladores.

No Mucuripe, a maioria dos pescadores com embarcação própria tem jangadas de pequeno porte e sem motor – embora o trabalho seja mais penoso, é melhor que ser terceirizado. José Pereira de Oliveira, 86 anos, é um dos que nunca conseguiram realizar o sonho da jangada própria. Trabalhou durante 35 anos como pescador sem nunca possuir embarcação. Acabou desistindo da profissão e tornou-se um dos artesãos mais conhecidos do Ceará, produzindo réplicas em miniatura de jangadas. Oliveira ganhou o título de “mestre da cultura popular do Ceará” e vive com mais sossego em uma praia do extremo leste de Fortaleza. Vai ao Mucuripe só para matar a saudade. “No mar não consegui nada. A sorte é que descobri outro jeito de ganhar a vida.”

Paulo da Silva, 74 anos, é outro veterano das águas cearenses que também pode ser visto diariamente no Mucuripe. Ele trabalhou uma década em jangadas de outros, até conseguir dinheiro para comprar sua embarcação. “Aí, a vida melhorou um pouco. O pouco que ganho dá para viver. Mas o melhor de tudo é que hoje meu patrão é o vento.”


Comentários

Uma resposta para “O naufrágio de Orson Welles”

  1. Olá, meu nome é Lucas, moro no Rio de Janeiro e curso Cinema na Estácio do Campus Tom Jobim. Estou fazendo um minidocumentario sobre o trabalho e vida de Orson Welles para a faculdade, e junto ao meu grupo precisava entrevistar pessoas que fosse do meio da comunicação (teórico, formando, crítico, diretor, professor, produtor…) e que conhecessem o trabalho de Orson e que estivessem disponibilidade a nos ceder uma entrevista. Conto com vocês!

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