O navio da boiada

No cais de Puerto Cabello, em Barquisimeto, cidade venezuelana de 1,5 milhão de habitantes, André Avelino da Costa Nunes Neto, que se apresenta como “velho comuna”, já estava à sua espera e comemorou discretamente uma vitória pessoal. Foi ele quem, só com a cara e a coragem, viajou à Venezuela no começo do ano para abrir este novo mercado de exportação de gado vivo.
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, o bom-dia deles, é uma das poucas palavras que aprendeu nas viagens. O café da manhã é reforçado: pão árabe, pasta de grão-de-bico (homus) e queijo branco, azeitonas, coalhada, tudo com fartura.

Sua primeira tarefa é pegar os medicamentos e o laço para vistoriar o gado distribuído em baias nos 14 deques do navio. “A gente tem um bom relacionamento com os árabes. Eles são gente simples, muito bons de lidar”, conta o vaqueiro. “Como só tem homem no navio, falam em mulher o tempo todo…”
Quando termina de percorrer o navio, já está na hora do almoço e ele não tem queixas da comida. “Até quibe cru já aprendi a comer.” Só sente falta de uma cervejinha porque bebida alcoólica é expressamente proibida no navio. À tarde, depois de duas horas de descanso, repete a mesma operação da manhã. “Não dá muito problema de saúde no navio. O problema é mais psicológico, sabe, até os bois se acostumarem com a viagem em alto-mar.”

E quando morre um animal no navio, o que acontece? Os bois são sangrados e lançados ao mar, menos no estreito de Gibraltar, onde essa prática é proibida. Nesse caso, os animais mortos seguem no navio até Beirute. Numa viagem ao Líbano, a perda pode chegar a 2% dos animais embarcados. Para a Venezuela, viagem que dura de três a quatro dias, não há registro de óbitos.

O que dá mais trabalho é reagrupar os animais nas baias, pois os maiores tomam conta dos coxos e não deixam os menores chegarem perto. É o trabalho que ele chama de “padronização da boiada”. Para se entenderem, os tripulantes árabes e os vaqueiros brasileiros falam uma língua própria que lembra vagamente o inglês, “more or less”.

O jantar é servido pontualmente às seis da tarde e, em seguida, todos vão para o salão de vídeo, onde passam todo dia os mesmos filmes, com as mesmas moças executando a dança do ventre, sem nada de sexo explícito. Lula prefere ir para o camarote que divide com um ajudante e seu aparelho de som, em que só toca música brega ou sertaneja. Nessas horas bate a saudade, mas ele nem sabe direito de quem. “Não sei o que é… Não sei se não acho a mulher certa ou se eu que estou errado, mas agora mesmo estou sem nenhuma…” Às nove da noite é hora de dormir no navio boiadeiro.

Numa das viagens à Venezuela, Lula até já arrumou uma namorada por lá, mas não é fácil. O maior drama do vaqueiro galante é o cheiro de boi, que fica impregnado no corpo após as viagens (as roupas, por imprestáveis, são simplesmente jogadas fora). Leva pelo menos uma semana para o fedor sair do corpo depois de voltar para casa. No navio, para suportarem o cheiro de amônia exalado pela urina do gado, todos trabalham com máscaras.

Na viagem de volta, quando foi a primeira vez ao Líbano, no ano passado, as duas moças que se sentaram ao lado de Lula no avião viravam a cara cada vez que ele olhava para elas. “A gente acostuma com o cheiro, até esquece, mas os outros não… Só quando cheguei em casa é que me falaram como eu estava fedendo…”

Descendente de libaneses, Eduardo Salles, 52 anos, o dono do gado que Lula está levando da Fazenda K-9 para Beirute, não conhece a terra dos seus antepassados, mas é muito grato a eles neste momento. “Esta exportação para o Líbano foi a salvação da lavoura para nós”, comemora o pecuarista, que consegue lá fora um preço 20% maior nas exportações do que aqui dentro.

O avô paterno tinha o sobrenome Salleh, mas virou Salles quando veio para o Brasil, instalando-se em Itacoatiara, no Amazonas, há 80 anos. Eduardo nasceu no Acre, cria gado há 30 anos e hoje é dono de outras seis fazendas com mais de 3 mil cabeças de gado zebu. Como seus colegas donos de terra e gado, ele diz que estava quebrando por causa dos preços baixos no mercado interno. “Só agora, com a exportação, começou a animar de novo, é o que salva a gente.”

A carreta carregada de bois levanta poeira ao deixar a K-9 em direção à Belém-Brasília para pegar o rumo de Santa Isabel, onde é recebida por Márcio Santos Reis, 29 anos, gerente da Fazenda Aroeira, uma central de confinamento que fica a meio caminho do Porto de Vila do Conde. Com uma área total construída de 22 mil metros quadrados, em apenas 60 dias foram erguidos ali três galpões, com capacidade para abrigar 3,5 mil cabeças cada um.

Dia e noite, caminhões carregados de gado entram e saem da fazenda de 200 hectares criada há dois anos e meio para preparar as boiadas antes do embarque no navio. Como a maioria desses animais é criada solta no pasto, é preciso habituá-los ao ambiente de confinamento no navio. Ao mesmo tempo, como sempre perdem peso nas longas viagens pelas estradas do Pará e do Maranhão até chegar à Aroeira, os bois recebem uma alimentação reforçada de feno e ração – a mesma que terão no navio, cerca de 18 quilos por dia.

Formado em Pedagogia, Administração e Língua Portuguesa, o “xerife” Márcio, que vive na fazenda, é de pouca conversa. “Aqui não tem história, só tem trabalho”, justifica, enquanto controla a entrada e saída dos caminhões que fazem a conexão dos pastos amazônicos com os navios em que Lula leva o boi em pé para o Líbano, aonde chegará daqui a duas semanas. Na volta de Beirute, como ninguém é de ferro, fará uma conexão em Paris, antes de seguir novamente para os pastos da vida.

PROSTITUTAS DELIVERY
No Porto de Vila do Conde, pequena comunidade do município de Barcarena, que sobrevive da pesca artesanal, barqueiros cobram 20 dólares por garota levada para os tripulantes nos navios. Os moradores reclamam do mau cheiro provocado durante o embarque dos animais nos navios-gaiola, que espanta os fregueses dos restaurantes da praia. O recente vazamento de toneladas de caulim nos igarapés e rios da vila está provocando a morte de peixes na região.


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