Jorge Caldeira, possível afirmar, é obstinado em contar a história do Brasil por meio de personagens quase incógnitos. Foi ele quem jogou luz sobre Guilherme Pompeu de Almeida, o padre que deixou a batina para fazer fortuna financiando o ciclo da mineração no século 17, em O Banqueiro do Sertão (Mameluco Editora), lançado em 2006, 350 anos depois do nascimento do ex-religioso. É de Caldeira também Mauá – Empresário do Império (Companhia das Letras), leitura fundamental para entender o passado do País pela trajetória do empresário Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, empreendedor que montou a primeira indústria brasileira, a primeira estrada de ferro, o primeiro banco a operar em grande escala no País e no exterior, sócio de milionários ingleses, nobres franceses e capitalistas norte-americanos.
Mauá foi tão poderoso que assustou seus contemporâneos e teve de enfrentar governos e governantes, ataques pessoais e pânico entre seus clientes do banco. Morreu em 21 de outubro de 1889, depois de ter liquidado suas empresas, porém ainda rico. Ironicamente, partiu sem glórias, dias antes do tão esperado Baile da Ilha Fiscal, o primeiro promovido oficialmente pelo Estado brasileiro e a última grande festa da monarquia antes da República. Mauá – Empresário do Império, lançado em 1995, já teve mais de 50 edições e foi traduzido para o espanhol.
Agora, depois de mais de uma década de intensa pesquisa, Caldeira apresenta outro brasileiro que contribuiu para a consolidação do Brasil moderno. Trata-se de Júlio Mesquita, advogado formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que pouco exerceu a advocacia. Um dos mais radicais abolicionistas de São Paulo, amigo do jornalista e escritor Luís Gama – filho de pai alemão e mãe negra livre, que foi vendido como escravo pelo próprio pai –, Mesquita teve a sensibilidade de mandar Euclides da Cunha acompanhar de perto a Guerra de Canudos, ocorrida entre 1896-97, no interior da Bahia. O resultado dessa experiência foi o clássico Os Sertões. Essas e outras muitas histórias estão em Júlio Mesquita e seu Tempo, que sai este mês pela Editora Mameluco.
Um ano antes da Proclamação da República, Júlio Mesquita, aos 26 anos, passou a ocupar o cargo de gerente do então A Província de São Paulo, jornal do Partido Republicano paulista, uma sociedade anônima com 50 acionistas, todos partidários do republicanismo – assim como os demais jornais da época, A Província também funcionava a serviço de algum partido. Como gerente, Caldeira conta, Mesquita acumulou lucro exponencial, pois, desde sua fundação, em 1875, o jornal distribuía lucro entre diretores e funcionários.
Quando veio a República, em 1889, Mesquita entregou a representação do Partido Republicano para o concorrente Correio Paulistano. “Ele não queria que o jornal fosse partidário. Os que pretendiam fazer carreira política usando o jornal começaram a vender ações, a deixar o negócio, e Mesquita foi comprando essas ações.” Assim, em 1901, ele se tornou dono do jornal. Sob seu controle, A Província virou O Estado de S. Paulo e passou a praticar as bases do jornalismo tal qual se fez até há pouco: independência da imprensa em relação ao governo, publicação de editoriais com a opinião do jornal, e não de um único jornalista, pluralidade de coberturas, e até fundamentos técnicos, como envio de correspondentes, formas de títulos, fotografias, mapas e infográficos. “Hoje, a gente acha essa dinâmica trivial, mas na época dele não era automático. Júlio Mesquita inventou o jornal moderno no Brasil”, diz Caldeira. E aponta: “Euclides da Cunha era editorialista do jornal, mas quando foi cobrir a Guerra de Canudos, por ideia de Mesquita, começou a mandar notícias de repórter, contando histórias de crianças que tinham perdido suas famílias”. O jornal chegava e as pessoas queriam ler as notícias. “Foram vendidos 17 mil exemplares, era um negócio inimaginável”, afirma Caldeira.
Ele cita ainda o fato de Júlio Mesquita ter vivido uma evolução ao fazer parte do poder republicano e, no comando de um jornal, conseguir observar que a cidadania era importante para o desenvolvimento do País. “Essa mentalidade cresce a ponto de ele fazer as duas campanhas de Ruy Barbosa para a Presidência do País. Ou seja, Mesquita era um sujeito com posição política.”
Outro episódio marcante foi a greve geral de 1917, que acabou sendo resolvida na redação do jornal por intervenção direta de Mesquita. À época, um conflito entre manifestantes que defendiam uma paralisação e a cavalaria da polícia, nos portões de uma fábrica na Mooca, zona leste paulistana, acabou com vários feridos e a morte do sapateiro espanhol José Iñeguez Martínez, que tinha 21 anos. No dia seguinte, não apenas os operários, mas também os donos de carroças e caminhões de São Paulo cruzaram os braços. Foi a primeira greve da história de São Paulo. “O jornal percebeu que os trabalhadores tinham razão e resolveu a situação dentro do jornal, ouvindo todos os lados. Ninguém queria ir ao palácio dos Campos Elíseos, sede do governo paulista.”
Apesar de ter desempenhado papel importante na política (foi vereador, deputado, liderou o Partido Republicano paulista e foi secretário do governador de São Paulo, Cerqueira César, em 1891), Júlio Mesquita dedicou sua vida à redação de seu jornal. Quando decidiu encerrar a carreira e entregar o comando de O Estado de S. Paulo a um dos seus filhos, Júlio de Mesquita Filho, em 1921, já tinha uma ideia planejada sobre o que iria fazer com o restante de seus dias: voltar para Campinas, no interior paulista onde nasceu, e passar a maior parte do tempo bebendo com colegas de boteco. Viúvo e cansado da correria da redação, ele viveu mais seis anos em um hotel qualquer da cidade, que tinha a “virtude” de ficar ao lado de um bar.
Júlio Mesquita e seu Tempo está dividido em quatro volumes: “O jornal de prelo – locomotores e República (1862-97)”, “O jornal de rotativas – dança e democracia (1897-1908)”, “O jornal moderno – sertão e capitalismo (1908-1927)” e “O tempo econômico”. Este último, que não está diretamente ligado à história de Mesquita, traz dados importantes sobre a economia do País, especialmente de São Paulo, durante todo o período estudado. “As pessoas não têm ideia de que essa foi a época de maior crescimento da história do Brasil. Muito mais do que milagre brasileiro’’, explica Caldeira.
Toda essa história é resultado de uma pesquisa iniciada por Caldeira em 1999 para a digitalização do acervo de O Estado de S. Paulo, mas o texto começou a ser escrito há quatro anos. Ocupante da cadeira número 18 da Academia Paulista de Letras, o autor carrega outras credenciais importantes: é doutor em Ciência Política e mestre em Sociologia. Além disso, passou por várias redações editoriais – foi publisher da extinta revista Bravo!, editor da Ilustrada, na Folha de S. Paulo, de Economia, na IstoÉ, e da revista do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Com este lançamento, Caldeira, que é sócio fundador da Editora Mameluco, soma 13 livros de sua autoria. A seguir, o capítulo 1 do primeiro volume de Júlio Mesquita e seu Tempo, que Caldeira disponibilizou, com exclusividade, para a Brasileiros.
Leia com exclusividade o primeiro capítulo do primeiro volume de “Julio Mesquita e seu Tempo”
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