Sem Remetente é o primeiro romance de Neta Mello, autora pós-graduada em História. A obra oferece uma trama envolvente, a partir de uma perspectiva não tão comum na literatura brasileira contemporânea. Trata-se de uma intrincada história familiar, contada sob o ponto de vista de tradicionais fazendeiros paulistas – tema que era caro ao dramaturgo Jorge Andrade. O romance estabelece uma ponte entre a década de 1930 – quando o poder político e econômico desses fazendeiros entrou em declínio – e o ano de 2008.
A narrativa desven-da os costumes e a mentalidade que preponderaram décadas a fio e mostra suas reverberações nos dias de hoje. Tudo isso, permeado pelas relações conflitantes do Estado de São Paulo com um Brasil bem mais amplo que o horizonte dos fazendeiros.
Esse contexto social e econômico vai despontando nas preocupações dos proprietários rurais, nos hábitos familiares, nas casas, nos móveis e nos objetos. São vidas em ação na “enorme sala de tábuas largas que parece escura depois da claridade do terraço. Um rangido a cada passo, o som que se repete no eco das paredes com pratos pendurados e dois retratos emoldurados dos pais de Elvira”. É todo um passado contado em meio a “bolos de fubá, pão de ló, gemas separadas das claras, doces de abóbora, doces de leite cortadinhos, goiabadas, pamonhas, tigelas cheias de jabuticaba para fazer geleia, colheres de pau para serem lambidas, suspiros melados, balas de coco antes de cortar em pedaços”.
Acompanhamos, assim, as vidas de personagens que, em dias de calor nas fazendas, propriedades geralmente batizadas com nomes de santos, passeiam a cavalo, se entretêm com jogos de salão e conversam, no terraço ou no pomar. São nessas conversas, em aparente tom de passatempo, que as estruturas familiares se consolidam ainda mais e a autoridade dos chamados chefes de família se impõe, diante do silêncio constrangido de suas mulheres. Os segredos, no entanto, são fielmente guardados.
Sem Remetente flagra exatamente esses (quase) não ditos. Eles vão deixando marcas profundas em todos os membros da “família conservadora em que os valores não podem ser rompidos”. A aparência, a quem não vive ali, de um ambiente de plena harmonia oculta cartas comprometedoras e paixões rigorosamente proibidas. Nas situações em que a defesa da moral dos senhores do campo exige encobrimento, a Europa entra sempre como aliada distante e silenciosa. O que sobra é a culpa. Depois, as tentativas de expiá-la, que ocorrem, normalmente, próximo à morte. As confissões talvez tragam a esperança para cada membro da família de que tudo foi feito para deixar um legado digno de orgulho mesmo que, para seus descendentes, ele se torne só lembrança. A pergunta que fica sempre é o que as próximas gerações vão fazer com toda essa carga de emoções, depositada nos momentos de revelação.
Para tecer essa história, Neta Mello vai desvendando, em linguagem familiar, essa espécie de rede de intrigas, feita da tensão entre o encobrir e o descobrir. Ela sabe lançar mão do recurso de cartas para compor a narrativa. Boa contadora de histórias, consegue nos fazer sentir que o clima de revelações de passados familiares é pesado e ritualístico. E ele permanece assim, mesmo nos tempos dos e-mails e celulares e ainda que os segredos revelados às novas gerações tenham, nos dias de hoje, outra intensidade. É a história da “nossa” família.
“Quando meu pai descobriu o que tinha acontecido entre mim e Luca, ficou descontrolado, enlouquecido mesmo. Acho que Eduardo puxou dele o gênio estourado! No carro para São Paulo, carregava uma arma no cinto da calça. Ameaçou matar Luca, repetia que iria até o inferno para acabar com a vida dele. Tio Otávio tentou convencê-lo a empregar Luca e deixar que nos casássemos. Afinal, ele era um rapaz estudioso, educado. Mas era um carcamano para meu pai, uma raça de segunda linha. Ainda se fosse um quatrocentão, filho de algum colega da faculdade de Direito. Ele não aprovaria o pai de vocês que também era neto de italianos! Júlia sorri. E isso foi antes de saber que eu estava grávida. A filha mais velha perder a virgindade era o fim do mundo! Sabe o que ele fez? Expulsou Tio Otávio da fazenda com André e Arnaldo. Proibiu a visita dos meninos em nossa casa e na fazenda. Helena e Elisa sofreram com minha partida, ou expulsão, e com a perda dos primos quase nossos irmãos. Acho que meu pai imaginou que uma delas ou as duas pudessem se apaixonar por eles. Isso é mais absurdo ainda! Eduardo volta com o olhar baixo. Você falou exatamente as palavras que seu pai usou quando soube. Ele sabia de tudo mesmo? Sabia. Mais um motivo para você ter confiado nos filhos. Você teve vergonha, admita. Não me julgue, filho, seu pai nunca me julgou. Tem certeza? Quando começamos a namorar e ele disse que queria casar e ter filhos, resolvi contar tudo. Ele nunca duvidou do meu amor, nunca falou do Luca com ciúmes. “
Deixe um comentário