A chegada de um envelope amarelo entre as encomendas daquele dia comum de setembro no escritório da Editora LeYa, em São Paulo, fez o editor Pascoal Soto chorar. O conteúdo, um conjunto de folhas soltas escritas a lápis com letra nanica, foi lido e relido por Pascoal: “Editores ainda choram”. A correspondência vinha de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Assinava como remetente o poeta Manoel de Barros, 95 anos. No envelope, ele depositou o original de seu mais novo livro, Escritos em Verbal de Ave, o sétimo editado por Pascoal. Todos chegam da mesma maneira: sem aviso, pelo correio e acompanhados da expressão: “Vê se presta”.
Naquela última carta, um ano depois da anterior, um verso no baralho de folhas apertava o coração do editor: “Deixamos Bernardo de manhã/em sua sepultura/De tarde o deserto já estava em nós”. Bernardo é o personagem mais recorrente e emblemático nos escritos de Manoel de Barros. É quem ele gostaria de ser, como já assumido muitas vezes. Bernardo é um tonto, um ser desconectado de julgamentos morais e entregue à natureza como parte dela. Desde Livro de Pré-Coisas, de 1985, em que é apresentado como um personagem “pronto a poema”, ele é citado em dez livros do poeta, de um total de 18 editados a partir daí, coincidindo com a fase mais produtiva de Manoel – antes, ele havia publicado sete livros.
Primitivo, das origens, Bernardo encarna o “outro” mais potente entre os muitos que desfilam na poesia do autor. Ora é andarilho que vem do “oco do mundo”, ora é filho da velha Honória, a que se transformou em serpente. Ou é aquele definido como “quase árvore”. Seus cabelos são nascedouros de pregos primaveris e seu luxo é ser ninguém. Apropriando-se da voz de Bernardo, Manoel realiza fantasias e casamentos linguísticos inusitados que simbolizam o espírito de sua poesia. São escritos alucinados por uma aparente ingenuidade em busca de um registro original, exaltando para isso elementos mínimos da natureza, ciscos, restos e pessoas fora do padrão.
Pascoal Soto conheceu Manoel em 1993, quando o primeiro, então com 27 anos e assistente editorial da Editora Moderna, escreveu ao poeta declarando sua admiração e convidando-o para compor um livro infantil, que chegou seis anos depois (Exercícios de Ser Criança). Dez anos atrás, Pascoal sondou Manoel sobre a possibilidade de escrever a biografia de Bernardo, ao que ele respondeu que, se um dia o fizesse, morreria. No livro novo, apresentado como uma coleção de versos deixados por Bernardo, a primeira expressão é “uma desbiografia” grafada com letras maiúsculas.
A conversa antiga emergiu na memória de Pascoal quando ele leu a descrição do personagem na sepultura, inesperada por partir de um poeta mais ligado à alegria e às brincadeiras com a língua do que à tristeza. A passagem, que o editor de fala cadenciada e clara achou por bem inserir na contracapa do último livro, ainda desafia sua compreensão. “Eu confesso que fiquei tocado porque, no meu íntimo, entendi que era um sinal de que o Manoel não fosse escrever mais. Fiquei tentando entender se aquilo era uma despedida. Mas prefiro acreditar que não, porque sei que ele não para de escrever. Acho que o próximo livro de Manoel, se houver, pode trazer uma surpresa que pode até ser Bernardo voltando, sem considerar o que ele falou”, disse Pascoal, por telefone.
O verso inflama a curiosidade de quem conhece o poeta, como se houvesse ali um mistério. Amiga de Manoel desde os anos 1980, a pesquisadora Lúcia Castello Branco não duvida de que é a morte que está sendo tratada na passagem. Mas, raciocina, ela não foi sempre presente na obra do poeta, mesmo que ele não seja melancólico? “Não acho que esse verso seja mais aproximado da morte do que um poema do tipo ‘Sobre meu corpo se deitou a noite. Mas eu não sou um lugar de paina’, que termina com ‘Eu não sou digno de receber no meu corpo os orvalhos da manhã’. Para mim, o sujeito que escreve isso está morto, como se fosse um cadáver dizendo: ‘Não sou ente que se preze, nem posso receber os orvalhos da manhã. A morte está ali’”. Mais revelador para Lúcia é o desenho central de Escritos em Verbal de Ave, traço do próprio Manoel. Folheando o livro em sua sala na Escola de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, ela mostra o homem voando com braços abertos, pés juntos para o alto, cabeça mergulhando na borda inferior da página. “Ele está planando, caindo. Outra imagem desse tonto tão frequente na obra do Manoel é o anjo decaído. O anjo que cai na terra e fala: ‘O que vou fazer aqui?’. Acho que é um autorretrato, mais pensando nesse momento do homem velho.” A professora codirigiu o filme Língua de Brincar, de 2006, sobre o autor. Nos anos de amizade, trocou mais de 90 cartas com ele.
Sentado com as pernas cruzadas em um sofá, na confortável sala dupla de sua casa no bairro Piratininga, em Campo Grande, de costas para uma porta de vidro que dá para um jardim de inverno com trepadeiras e beija-flores, Manoel de Barros fala de si com fluência e disposição, mas não entrega a chave do aparente enigma. Não é o caso de pedir ao poeta o significado de seu poema, mas quero que ele fale sobre a imagem de Bernardo na sepultura. Ele olha para o livro de capa laranja na minha mão e justifica a morte sem explicar bem suas motivações. “O verso é mais ou menos recente. Veio em consequência da morte dele. É uma coisa que vem, sou muito imaginativo.” Teria sido em um dia como qualquer outro no lugar de ser inútil, nome que Manoel dá ao escritório que tem em casa, que lhe veio a configuração do tal verso. Todos os dias o poeta acorda às 5 horas, toma seu café e sobe devagar os dois lances longos de escada que ligam a sala ao pequeno escritório.
Imaginação e suavidade
Subindo os degraus com ele, o observador vê um homem magro de movimentos lentos se segurando no corrimão, íntegro na postura, elegante até com sua blusa branca de abotoar solta sobre a calça azul. No escritório, Manoel lê, escreve, responde a cartas e ouve música clássica com um fone de ouvido, presente da filha Martha, que mora no Rio de Janeiro, mas está sempre em Campo Grande. “Tem que dar trabalho para a imaginação para produzir. Não é só memória, não. A minha, então… É a imaginação. A imaginação é viva, é a libido, o desejo do ser humano. O poeta tem de desejar alguma coisa dentro da imaginação dele. E eu até hoje penso que não tenha perdido nada. Acho que minha imaginação está é modificada porque está ficando um pouco louca”, diz o poeta.
De luxo em seu ambiente de trabalho, um banheiro e ar condicionado. Ao lado da cadeira de balanço, a estante alta expõe as obras de autores que gosta de consultar: Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, James Joyce, Euclides da Cunha, a Bíblia, gramáticas, enciclopédias, dicionários. Seu preferido, padre Antonio Vieira, por quem revela ser fanático, está à mão em uma coleção de capa azul.
Em meados de março, cerca de 50 correspondências aguardavam leitura sobre a escrivaninha. Em uma delas, uma mulher de Cuiabá começa: “Amado poeta Manoel de Barros”. É uma carta digitada, de três páginas. Há ainda livros novos. “O Brasil tem mais poeta do que mosca”, afirma ele, ao comentar que quase todos os dias recebe um livro. Quero saber se algum novato o agrada e ele fica em silêncio. Manoel acende uma luminária para apresentar seu espaço mais íntimo de burilar ideias poéticas: “Não tem segredo nenhum”. Sua mesa é ocupada também por uma coleção de tocos de lápis e por caderninhos com capa colorida, feitos por ele mesmo com folhas grampeadas. O poeta diz ter mais de 200, alguns sob a guarda de Martha, que é artista plástica e ilustra alguns de seus livros. “Tem muita bobagem aí”, avisa. Uma das “bobagens” estava escrita no bloquinho cuja capa é uma reprodução do poeta Arthur Rimbaud fumando: “Era um menino bem descomparado./Só tinha competência para ímpar./ Seu olho era vazado em vagalumes./Ouvia enviezado de neblinas./E as aves para ele eram cheirosas”.
Dali, Manoel só sai às 11 horas. Desce para a sala, toma uma dose de uísque Dimple e aguarda o chamado para o almoço. Como no dia do nosso encontro não houve expediente, ele oferta à visitante, no meio da manhã, uma dosinha de uísque, a única bebida alcoólica, garante, liberada pelo médico.
Fora dos livros, existiu um Bernardo na vida de Manoel. Um empregado de sua fazenda no Pantanal, incorporado à rotina da família desde que o rapaz tinha 18 anos. A morte poética decorrente da morte real seria uma boa justificativa, não fosse a distância entre as duas, quase dez anos. O Bernardo de carne e osso foi enterrado em 2003, mas continuou visitando os livros do poeta lançados depois. Ele é citado em Cantigas por um Passarinho à Toa (2003), Menino do Mato (2010) e Escritos em Verbal de Ave (2011). Entre Manoel e o Bernardo do Pantanal há o Bernardo poético, que é um pouco dos dois sem ser nenhum deles. É uma espécie de aventura poética repetida e cultivada.
O encontro com Bernardo
Manoel gosta de falar do Bernardo de sua convivência no Pantanal. Narra com riso aberto detalhes do relacionamento dele com as pessoas da casa e cenas com os bichos da fazenda Santa Cruz. O rapaz desconhecido chegou à casa da família paterna de Manoel em Cuiabá pedindo comida. Foi alimentado e convidado para assumir os cuidados de uma tia do poeta, a mais velha entre 16 irmãos. Tomada por louca, ela vivia isolada, trancada em um quarto com grades e só permitia a aproximação de um gato e um cachorro. “Ela era irada, brava mesmo. Bernardo tinha uma inocência animal que era uma coisa impressionante, ele entrou lá e ela o aceitou imediatamente.”
Quatro anos depois, a tia louca morreu e Bernardo foi levado para a fazenda da família na Nhecolândia, trecho do Pantanal de Corumbá. Foi lá que Manoel passou a infância, dos 2 meses aos 8 anos, só saindo para estudar em colégio interno, primeiro em Campos Grande e, mais tarde, no Rio de Janeiro.
Na planície verde e povoada de bichos, Bernardo ficou muito à vontade. Manoel, na época criança, se ligou fortemente a ele. Entre um gole e outro de suco de laranja com mamão, o dono da casa vai relembrando com entusiasmo de Bernardo. “Cabrito, porco encostavam, ele coçava, brincava. Galinha, que é bicho que não aceita fácil, ficava perto e ele acariciava. O mais surpreendente eram os passarinhos. Pousavam no ombro dele, faziam ninho no chapéu dele.”
O Bernardo poético permanece como um ente misterioso que Manoel prefere tratar só nos versos. Quando pergunto se é alterego, ele diz não gostar da palavra, mas concorda que é algo assim, como outro eu. À questão sobre o sentido do deserto descrito no poema, fala que se trata de um verso bonito e revela que o livro é uma homenagem ao amigo. “Não era pseudônimo ou coisa parecida. Era amigo especial. Não era ser humano comum.” Fluente em outras respostas, nesta ele se restringe ao essencial. Admite que Bernardo é responsável pela infantilização de suas palavras, o que dá uma importância grande ao personagem.
A poesia de Manoel de Barros está ancorada na infância. Ele expressa em versos o desejo de chegar ao “criançamento das palavras, lá onde elas ainda urinam na perna”. O tema é perseguido em sua literatura como temática e inspiração estilística. “Bernardo transmitiu à minha poesia, às minhas palavras a inocência dele. Até hoje tenho as raízes da minha infância muito fortalecidas por causa dele. Ele era muito importante para minha poesia. Eu conseguia sair de dentro de mim e entrar na infância porque a presença dele em cima da minha palavra era uma presença muito forte.
A vida com Stella
O poeta conserva o raciocínio apurado e o olho vivo e focado de um bom interlocutor. Os anos reduziram sua audição, o que o leva a aceitar poucas ocasiões de entrevista, como foi mais ou menos durante a vida toda, mesmo quando a escuta era perfeita. Falar ao telefone só com pessoas selecionadas. Quando está em boa maré, como expressa a bem-humorada mulher, Stella, a conversa pode ser marcada, de preferência, nos finais de semana. A nossa foi iniciada em uma manhã de sábado, quando a previsão do tempo em Campo Grande anunciava máximas de 35 oC. Stella me aconselha a sentar em um sofá ao lado do que ele ocupa, perto de seu lado direito para ter chance de ser melhor ouvido.
Casada com ele há 64 anos e hoje com 90, a mineira Stella caminha por toda a casa com apoio de uma bengala, observando se tudo está em ordem, regando as plantas, dando palpites para o almoço ou a caminho de uma das muitas cadeiras confortáveis espalhadas pelos cômodos nas quais gosta de se sentar para ler algum trecho de Clarice Lispector, uma de suas prediletas. À vontade no papel de mulher do artista, combina os horários de visita, avisa sobre o estado de saúde dele e, sem deixar de ser carinhosa, dá um toque sutil quando percebe que ele está cansado.
Stella faz-se seguir atravessando o quarto do casal, mobiliado com uma cama de madeira escura coberta por lençóis brancos e uma cômoda grande com uma televisão em cima – ao lado, uma garrafa de Dimple. A passagem por ali é para chegar à área de cimento com muro de tijolinho onde está o pé de jabuticaba que ela mesma plantou. “Você sabe que todo mineiro tem um pé de jabuticaba no quintal, né. Esse aí é de uma muda que veio para mim de Sabará.” De volta à sala, chama a bisneta mais nova, Maria Clara, 2 anos, para as apresentações. Graças ao apoio de Stella nas questões práticas, Manoel conseguiu, mesmo em uma casa movimentada como a sua (os sete netos e os quatro bisnetos estão sempre por lá), tranquilidade.
Apesar de ter morado no Rio de Janeiro por quase 40 anos e ter conhecido figuras como Vinicius de Moraes, Graciliano Ramos, Aníbal Machado e Guimarães Rosa, a opção pelo recolhimento e dedicação à escrita prevaleceu sobre o frisson social. O que foi acentuado com a mudança do Rio para o Pantanal nos anos 1970. O pai morreu e Manoel foi convocado para assumir a fazenda. Nessa época, tinha concluído o curso de Direito, temática da qual diz não saber nada e ter interesse zero, e ficado um ano em Nova York vagando por ruas, museus, teatros e igrejas. “Eu era muito primitivo, gostava muito de índio e vi que precisava viver as coisas da cultura para tentar enriquecer, tirar aquele primitivismo, tirar não, mas misturar. No fim, não tinha mais dinheiro para pagar nada e me botaram dentro do avião e me mandaram embora para o Rio.”
Durante dez anos, ele, a mulher e os três filhos tiveram o Pantanal como morada, até que a fazenda Santa Cruz se tornou lucrativa e o filho caçula, João, pôde tomar conta dela sem precisar morar lá. Como no verso “Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado”, a propriedade deu renda para que Manoel pudesse se dedicar exclusivamente à literatura, comprar o ócio, como ele costuma dizer. Trabalho externo e poesia são incompatíveis no entender dele e o afastam de seu objetivo de ser um “vagabundo profissional”. “Nos dez anos no Pantanal, não escrevi uma linha. Só escrevia minha assinatura na promissória rural. Porque aquilo, tenho a impressão, me enriquecia a imaginação, mas não fazia com que ela se desenvolvesse.” Naquela fase, o convívio com figuras livres e simples como Bernardo se intensificou.
Os versos de Manoel foram condecorados com premiações importantes, como o Jabuti e o prêmio Nestlé de Poesia, e neste ano Poesia Completa levou o prêmio português de Literatura Casa de América Latina/Banif e Escritos em Verbal de Ave foi o vencedor do prêmio da Academia Brasileira de Letras na categoria Poesia. Ele diz sentir-se querido por muitos leitores, mas a oficialidade das homenagens parece não interessá-lo. Manoel faltou a três cerimônias de entrega do título de Doutor Honoris Causa, duas em universidades em Campo Grande e outra em Cuiabá. Em uma das ocasiões, o irmão mais novo, Abílio, foi representá-lo. “Esse meu irmão é inteligente, escreve também. Falei com ele: ‘Abílio, você fala em meu nome’. Era em uma universidade dos padres daqui. Ele chegou lá e esculhambou: ‘Manoel não sabe nada, só sabe fazer poesia, é quase analfabeto’. Aí, o pessoal: ‘Ahhhh’’’, conta ele, imitando o barulho do auditório gritando, emendando com uma boa risada.
Ao escritor Carlos Heitor Cony que, durante um encontro em Cuiabá, teria sugerido a ele a candidatura a uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras, ele respondeu que não gostava de chá. “Eu o conhecia, falei mesmo, mas foi brincando.”
Em Campo Grande, Manoel de Barros dá nome a edifício, auditório, fundação, é tema de espetáculos teatrais e inspira entre estudantes de Letras da Universidade Federal do Estado, em média, uma tese ou dissertação por ano. É, provavelmente, o poeta brasileiro vivo que mais vende livros no País. Suas obras mantêm vendagem média de dez mil exemplares por ano em livrarias – outros 50 mil, quando o governo compra uma edição. Manoel tem livros traduzidos para o espanhol, catalão, inglês, alemão e francês. A primeira publicação, Poemas Concebidos sem Pecado, é de 1937, quando tinha 21 anos e morava no Rio de Janeiro.
Mas só depois dos 70 anos ele se tornou conhecido e foi procurado por editoras. Um texto elogioso de Millôr Fernandes, veiculado em 1985 no Jornal do Brasil e reproduzido em outras publicações nacionais, foi o principal incentivo, como Manoel conta e reconta. Até aí, era ele quem procurava as editoras e, segundo relata, nunca teve um livro recusado, mas não havia contrato nem pagamento. Após Millôr descrever seus versos como os de um verdadeiro poeta, Manoel recebeu uma ligação inesperada de Ênio Silveira, diretor da Civilização Brasileira. “Eu tinha cinco livros publicados e ninguém me conhecia. Ênio me convidou para almoçar e falou que ia publicar os meus cinco livros juntos. Dei o título geral de Gramática Expositiva do Chão e essa edição foi distribuída pelo País. Aí fiquei conhecido.”
Depois da morte de Ênio, em 1996, Manoel assinou com a Editora Record um contrato que, pela primeira vez, garantia publicação de todos os livros com pagamento adiantado. Em 2010, já com 93 anos, seu terceiro grande contrato com uma editora. A LeYa com capital português havia se instalado um ano antes no Brasil e, por meio de Pascoal Soto, Manoel soube que eles intencionavam comprar todo seu espólio literário, para estrear a edição nacional de poesias pelo selo. “Eles me ofereceram um dinheiro grande, sabe, até assustei.”
Estudiosa da obra de Manoel há quase 30 anos, Maria Adélia Menegazzo, professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, está intrigada: “Estou achando que virá uma ruptura agora, porque se ele interrompeu a voz do Bernardo, se ele se sentiu nesse deserto todo, provavelmente está vindo outra voz aí”, disse.
Em seu entendimento, desde a publicação de Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, de 2001, que traz um conjunto de versos intitulado O Livro de Bernardo, é como se Bernardo ou a voz poética dele tivesse assumido o comando. Em algum momento, diz Maria Adélia, era esperado que o poeta retomasse a voz. Outra interpretação persegue a professora: o verso sobre o sepultamento do personagem entregaria a tristeza atual de Manoel. Usando mais de uma vez o adjetivo punk – que aprendeu com a filha de 21 anos – para falar da relação entre poeta e personagem, Maria Adélia confessa que foi invadida por profundo desalento ao ler sobre a morte. “A gente fica pensando… Manoel com quase cem anos dando conta desse eu plural que é o dele, com tanta gente, com tanta coisa. E de tanto sentimento. Por isso acho que quando aparece algo assim a gente tem de ficar um pouco triste.”
Em família
A pista é forte. O poeta, apesar do bom humor, tem motivos para ficar triste. Não pisa em suas terras no Pantanal há dez anos e revela não sair de casa desde 2007. Em março daquele ano, seu filho João se preparava para decolar do campo de pouso na fazenda da família e, antes de ganhar altura, o monomotor pilotado por ele esbarrou em um bezerro que passava distraidamente por ali. O choque levou à morte de João. O mais velho, Pedro, vive na casa do poeta, mas sempre na cama e assessorado por enfermeiras, consequência de três AVCs (Acidente Vascular Cerebral). “Minha vida é ficar hoje tomando conta do meu filho com alguma esperança. É uma angústia que não sei como será resolvida. Como é ruim ver o filho inerte”, desabafou o poeta, em um dos poucos momentos em que falou de tristeza e mostrou-se pensativo.
Sobre a própria saúde, Manoel brinca, dizendo que “só a mente presta”, o que não é verdade. A postura firme e a disposição para subir diariamente degraus e trabalhar são incomuns na sua idade. Durante as cerca de três horas em sua companhia, em um único momento Manoel disse que precisava de um amparo, quando se levantou depois de ter ficado quase duas horas sentado. Os dedos da mão esquerda ficaram rígidos. Não é possível mais datilografar versos na máquina de escrever, mas a direita permaneceu boa, conectando a imaginação à ponta do lápis. “Tenho 95 anos. Sou até um cara forte.”
Ele concorda que os pantaneiros costumam viver muito e afirma ter visto “ontem” na televisão uma mulher de 115 anos que passou a vida no Pantanal. Alheio a qualquer interpretação sobre seu futuro, ele aplica-se a pensamentos e rabiscos que devem resultar em um livro. Talvez a nova voz poética esperada por Maria Adélia. Mas o poeta não adianta muito do tema que vem ocupando sua mente: “Ainda tenho pretensões de escrever um livro, mas não me pergunta, não. Já tenho uma coisa na cabeça. Está indefinida, mas que pretendo fazer pretendo, porque tenho força imaginativa. Porque para escrever tem de ter imaginação. Se não, vai dizer todo dia a mesma coisa. E eu também sou exigente na minha linguagem. Acho que através da língua a gente até modifica a natureza.”
O estado escolhido pelo poeta para viver teve sua existência formal independente do Mato Grosso a partir de 1977, quando o então presidente Ernesto Geisel assinou a lei complementar criando o Mato Grosso do Sul. A partir daí, Campo Grande, escolhida capital, passou a concentrar mais riqueza, deixando de ser só uma cidade moradia para boa parte da elite rural da região. Vieram desbravadores de muitas partes do Brasil e de outros países. O jornalista paulista Bosco Martins, na cidade há mais de 30 anos, está nesse grupo. Ele era amigo do filho mais novo de Manoel e convive com o poeta desde que chegou ao Estado. Bosco conseguiu entrevistas raras com ele, inclusive filmadas, coisa que Manoel diz contrariar sua natureza.
Conhecendo a personalidade do poeta e refletindo sobre o atual momento dele, o jornalista se distancia da turma que fareja um sentido oculto na representação de Bernardo morto no poema. Acredita que é apenas uma maneira encontrada por Manoel para eternizar o amigo. “Acho que é a mesma insignificância, refletida em sua obra, que o poeta da à morte. Quando afirma, por exemplo, em versos que ‘Para não morrer é só amarrar o tempo no poste’. Penso que, sobre a morte, ele observa uma postura mais serena possível. A preocupação não está na morte, mas em manter perene a poesia.” Bosco acompanhou Manoel e Stella em visitas a Bernardo no Asilo São João Bosco, em Campo Grande. Lá, Bernardo passou seis anos antes de morrer. Tinha um quadro cardíaco controlado, mas que não o deixava trabalhar mais.
Folheando o livro de registros do asilo, a religiosa Marlene Barbosa da Silva, uma das supervisoras, localiza a ficha de Bernardo Vieira da Silva, que Manoel de Barros trata por Bernardo da Mata nos livros. Consta o nome da mãe, Benedita Vieira da Silva; a cidade de origem, Cáceres, no Mato Grosso; e os responsáveis por ele: Stella e João Leite de Barros. A data do nascimento registrada, 7 de fevereiro de 1916, mesmo ano de Manoel de Barros, é duvidosa. Irmã Marlene admite que, em meados dos anos 1990, foi feito um mutirão para confeccionar certidões de nascimento para idosos que ainda não tinham, a fim de ajeitar para eles uma aposentadoria. “Como muitos não sabiam a própria idade, perguntávamos para algum parente ou para um patrão e fazíamos o registro com aquela idade imaginada”, diz ela.
Bernardo é lembrado pela freira como um “vô” quieto, que andava com os pés abertos, arrastando os chinelos. “Não dava trabalho nenhum e comia um prato bom, apesar de não ir ao refeitório como os outros. A gente levava a comida onde estivesse.” Manoel de Barros recorda os pedidos de jornalistas de Campo Grande para conhecer Bernardo, quando souberam que ele estava na cidade. “Alguns insistiram e eu levei lá para conhecer e tirar fotografia do Bernardo. Ele dava cada risada. Ele ria de tudo, era uma alma excepcional. Era só alma, não tinha corpo.”
A parte mais agradável do asilo é o pátio próximo à entrada com pés de manga muito altos, de troncos grossos. À sombra deles, há mesas e bancos em que os hóspedes do asilo jogam cartas, conversam, leem. Bernardo nunca ficava ali. Preferia os fundos, especialmente o canto esquerdo da varanda vazia, em frente a um quintal com coqueiros, árvores de amora, jaca, mamão, maracujá e abacate. A grama nessa parte está alta e, do canto de Bernardo, logo a vista chega ao muro dos fundos do terreno e à parede do alojamento feminino, mas passarinhos e borboletas amarelas ainda visitam o lugar.
Bernardo buscava sempre estar só. “Procurei por meia hora uma foto dele nas comemorações que fazemos, mas não tinha nenhuma. Cheguei a levá-lo pela mão à missa uma vez, mas, alguns minutos depois, vi que ele tinha saído”, lembra-se a religiosa. Lá, confirmamos que o dono da voz poética mais vigorosa na obra de Manoel de Barros e quem soube comunicar valores que formataram a poesia dele só expressava suas vontades com sinais da mão ou com os grandes olhos. Bernardo era mudo. Lúcia Castello Branco pensa que isso é a confirmação da poesia. Em um programa inusitado, 15 anos atrás, ela passou uma tarde em silêncio com Bernardo e Manoel. “Poesia é quando o silêncio fala. Manoel faz o silêncio de Bernardo falar, dá um estatuto poético para o silêncio dele.”
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