Andréia é uma bela brasileira. Dona de graciosas formas, loura, 31 anos, mineira, bióloga de formação, há sete vivendo na maior cidade do Hemisfério Sul, São Paulo. Eis alguém que poderia, assim como os tropicalistas, acreditar que o mundo é “divino e maravilhoso”. Mas não. Andréia, nome fictício, assim como o de todos personagens que surgirão nesta reportagem, tem uma irmã lésbica. No esforço de se mostrar tolerante e atenta aos princípios da diversidade, garante que é amiga da cunhada e se dá com amigos e amigas gays do casal. Porém, não consegue reter suas angústias e contradições. “Minha irmã é lésbica. Eu convivo com ela, com os amigos dela. Mas quando me deparo com um casal de homossexuais na rua fico chocada. Penso: ‘Como pode?’ Até aceito. Mas não entendo.”
Lázaro Ramos, nome real do artista que estrelou Madame Satã e Ó Pai, Ó, baiano, negro, considera-se uma exceção, por ser bem-sucedido, bem remunerado e aceito pela sociedade. “Não gostaria que fosse assim. Está na hora de mudarmos essa condição” (leia entrevista na página 46).LEIA TAMBÉM: As pistas que vêm da psicanálise
Roberta, negra, 40 anos, é contralto de coral gospel, mãe de três filhos, moradora na periferia paulistana e envolvida com movimentos de defesa dos afrodescendentes. Ela odeia o jeito que os cariocas falam. Mas nada comparado à aversão que sente pelos nigerianos, uma colônia em expansão em São Paulo, composta por negros como ela e que, de acordo com as polícias Civil e Federal, está intimamente ligada ao tráfico internacional de drogas. “Tenho preconceito dos nigerianos. Isso virou uma febre.”
Cássio, gerente financeiro, 43 anos,homossexual assumido, mora no Centro de São Paulo e está com viagem marcada para a Europa. Vítima habitual da intolerância, ele fica chocado com o comportamento dos travestis, cujas peculiaridades são tão gays quanto as dele. Mesmo que não admita isso. “Não gosto de me relacionar com travestis. Acho que destoam muito.”
Vitória, 49 anos, nordestina do Maranhão, corretora de imóveis, mãe de dois filhos, revela sentimentos confusos quando confrontada com a pobreza profunda, essa que empurra milhares de brasileiros para as ruas, viadutos e avenidas de grandes centros urbanos como São Paulo, cidade que há 35 anos a acolheu. “Fico com dó quando vejo essas pessoas. Mas, ao mesmo tempo, se elas vierem para o meu lado, eu fujo. Não sei se vão me assaltar.”
Pequena amostra de um gigantesco universo de 189 milhões de habitantes, Andréia, Roberta, Cássio e Vitória provam que, em maior ou menor grau, o brasileiro carrega consigo algum tipo de preconceito, intolerância, incômodo ou estranhamento. Essa é a principal conclusão do estudo Preconceito, Consciência e (I)Lógica, que inaugura uma parceria entre o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), o principal órgão de pesquisas do País, e a revista Brasileiros.
Conduzida por Lúcia Costa, diretora do Núcleo de Pesquisa Qualitativa do Ibope, a investigação colocou frente a frente algumas dezenas de brasileiros das mais diversas classes sociais, cores, sexos, orientações sexuais e graus de instrução. O objetivo era discutir esse mal silencioso que há milênios torna diferentes aqueles que em tese deveriam ser iguais.
No caso específico desta pesquisa, o Ibope ouviu 45 pessoas, organizadas em cinco grupos de discussão. Dois deles, compostos por indivíduos das classes A/B e C/D, foram formados por pessoas que teoricamente não seriam alvo de nenhum tipo de discriminação. Poderiam, pelo contrário, expressar e refletir preconceito. Os três restantes tiveram a presença de três potenciais alvos da incapacidade humana de compreender a diversidade: negros, homossexuais e nordestinos.
Negros não querem negros
Houve praticamente unanimidade na afirmação de que o Brasil é um país extremamente preconceituoso. Apesar de triste, a constatação foi vista como um avanço. Para combater o mal, primeiro é necessário assumi-lo. A admissão é mais um golpe no que se convencionou chamar de “mito da democracia racial”, teoria criada em Casa-Grande & Senzala, pelo antropólogo e sociólogo pernambucano Gilberto Freyre.
Roberta, a moça que não gosta de nigerianos, relata uma passagem que prova o quanto ainda precisamos avançar na luta pela igualdade racial. “O preconceito é sutil no Brasil, porém muito forte. Eu, como mulher, negra e gorda sofro muitos preconceitos. Sinto-me bem do jeito que sou e não vou mudar por causa dos outros, mas já perdi empregos por ser gorda e negra. A casa em que moro é alugada e o proprietário, conversando comigo e mais uma pessoa, disse que eu era negra, mas tinha alma branca porque pagava direitinho.”
A expressão “negro de alma branca” é uma das mais brutais e explícitas manifestações do racismo no Brasil. Na visão racista de alguns brancos, esses seriam os negros com elegância e atitudes que os diferenciariam de seus pares, sempre deliberadamente associados ao crime e à malandragem.
Engajada, a contralto usa sua voz firme e ritmada para criticar seu próprio povo. Segundo ela, os homens negros não querem saber das mulheres negras. “O negro brasileiro não gosta de ser negro. Você vê que não tem mais casais étnicos. É sempre negro com branca. Fizemos um estudo que mostra que a maioria das mulheres solteiras é negra. Isso afeta todas as faixas etárias. Até os mais velhos, os tiozinhos, querem só as branquinhas.” O discurso não foi bem recebido pelos colegas de grupo.
Se estivesse na sala, certamente o jornalista e radialista Mário Lima engrossaria o coro dos descontentes. Ele pode se gabar de ter colaborado para o embranquecimento da espécie. No início dos anos 1960, branco, boa-pinta, cabelos pretos e olhos escuros, conseguiu levar para o altar Alaíde Costa, a diva negra da bossa nova.
Filho de uma família classe média de Santos, no litoral paulista, Mário Lima cresceu vendo os pais se relacionando cordialmente com pretos e mulatos, coisa rara nos longínquos anos 50 do século passado. Qual não foi sua surpresa diante da inesperada reação quando informados sobre o namoro do filho com a cantora negra.”Foi um horror. Eles não aceitaram de forma alguma. Imagine só. Meu bisavô era dono de uma fazenda e tinha escravos. Agora o bisneto vai lá e casa com uma negra. Foi um choque.” Apegado à família, o radialista recorda a tristeza de estar sozinho no hospital na ocasião do nascimento do primeiro filho. Antes da separação, ainda tiveram mais uma criança. Após algum tempo, Alaíde foi aceita. Hoje freqüenta as reuniões familiares.
O radialista acredita que parte desse preconceito nasceu de um instinto de preservação, pois os pais temiam que ele também sofresse preconceito por estar junto com uma negra. Com as feridas cicatrizadas, Mário Lima acredita que a chance de algo similar se repetir no século 21 diminuiu consideravelmente. “Hoje a discriminação está mais light. Vejo isso pelos meus filhos. São mulatos que se relacionam bem em todos os meios. É claro que sempre tem uma batida policial. Mas de toda a forma está bem melhor.”
O que não diminui é o abismo social (veja quadro ao lado). Segundo dados do Censo 2000, o Brasil tem cerca de 75 milhões de pardos e negros. Correspondem a 45% da população do País.
Nos grupos entrevistados pela pesquisa, o polêmico sistema de cotas nas universidades públicas não foi visto como o atalho mais curto para a diminuição desse abismo. A medida, implantada pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), conduzida pela ministra Matilde Ribeiro, foi rejeitada por negros como o técnico de trânsito Claudinei, 36 anos, nível superior, casado,
pai de um garoto de nove.
“Eu acredito que não tenha que ter cotas nas faculdades. Penso que você vai disputar em condições inferiores, pois é menos informado. Então é a educação de base que precisa melhorar. Essas cotas parecem que estão discriminando ainda mais.” Vanderlei, branco, 46 anos, funcionário público, casado e sem filhos, concorda. “Maior racismo é do próprio governo, de ter um certo número de vagas para eles. É como se dissesse que ele é inferior e esse é o único jeito de entrar na faculdade. Mas com que
preparo ele vai chegar lá? Isso para mim é discriminação.”
ABISMO SÓCIO-ECONÔMICO
De acordo com o Instituto Brasileirode Geografia e Estatística (IBGE), em 2002 o salário médio dos brancos era de R$ 812, quase o dobro dos R$ 409 da média de negros e pardos. Entre o 1% mais rico da população, 86% são brancos. Em contrapartida, entre os 10% mais pobres, o sopé da pirâmide, 65% são pardos e negros.
As críticas contra as cotas subiram de intensidade recentemente. A Universidade de Brasília (UnB) recusou a inscrição de Alex Teixeira da Cunha para o vestibular do sistema. Para a instituição ele é branco. O problema é que seu irmão gêmeo, Alan, foi considerado negro e teve seu pedido aceito. Depois de muita confusão, a UnB voltou atrás e reconsiderou a inscrição de Alex.
Além de colocar em xeque os critérios de escolha dos candidatos às cotas, o caso UnB serviu mais uma vez para mostrar quão difícil é definir raça num país tão miscigenado como o Brasil. Recente estudo conduzido pela equipe do geneticista Sérgio Danilo Pena, professor titular de Bioquímica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e diretor do Laboratório Gene, de Belo Horizonte, apontou que a ginasta negra Daiane dos Santos é o que se pode chamar de brasileira nata.
Afrodescendente com orgulho, a atleta tem 39,7% de seus genes de origem africana. A maioria de sua ascentralidade, porém, é européia – 40,8%. Ela tem também 19,5% de genes indígenas. Os três são os principais grupos que formaram a população do Brasil. A miscigenação, como o estudo comprova, foi tão intensa que uma pessoa tida como negra pode ter a mesma composição genética de um branco. E vice-versa. Daí ninguém poder se considerar 100% branco ou 100% negro.
Só é possível afirmar com 100% de certeza o fato de que nem mesmo os poucos negros que ultrapassaram barreiras e chegaram ao topo da pirâmide conseguem escapar da intolerância. Tome-se o seguinte caso, relatado por Josefina, branca, 39 anos, secretária e funcionária pública. “Eu tinha um amigo negro. Ele era muito bem de vida. Queria comprar um Audi vermelho. Ligou na concessionária e foi informado de que teria que retirá-lo em Limeira, no interior de São Paulo. Ele foi até lá com o motorista. Ele era muito despojado. Vestia camisa xadrez e chinelo. Quando chegou lá, ouviu do funcionário se ele tinha autorização do dono para retirar o carro.” Tratava-se de um negro que fugira das estatísticas, mas não do anonimato. E esse detalhe costuma fazer diferença quando a tonalidade da pele é um pouco mais escura.
O atendente de pet shop Renato, 39 anos, casado, pai de uma menina de oito anos, defende a idéia de que, no Brasil, o pior preconceito não é o de cor, mas, sim, o social. Trata-se da velha máxima de que “quem tem dinheiro pode tudo”, independentemente do fato de ele ser negro, gay, nordestino, judeu ou qualquer outro indivíduo vítima de discriminação. Essa convicção emerge também nas palavras da consultora de loja de bijuterias Conceição, 37 anos, separada e mãe de cinco filhos. “Se tiver dinheiro, o negro entra e faz o que quiser.” Discurso ratificado pela vendedora Gilvândia, paraibana, 26 anos, casada, mãe de uma menininha de dois anos, há nove em São Paulo. “Se o negro tiver dinheiro, a cor não importa.”
Chapéu e chinelo de borracha
Pode até não importar. Desde que ele esteja bem-vestido, de barba feita e cabelo cortado. A tal da boa aparência foi encarada pelos grupos de discussão como um certificado de inclusão social. Uma espécie de “ISO 9000”, que confere a seu portador acesso aos mais diversos círculos e oportunidades.
A vendedora aposentada Dolores, recifense, solteira e aposentada, trabalhava em uma loja popular de móveis e utilidades domésticas em São Paulo. Aquele cliente de chapéu e chinelo de borracha chegou até ela depois de ser ignorado por outro vendedor. O homem estava interessado em um tanquinho de lavar roupa. Acabou levando, além do tanquinho, fogão, máquina de lavar, geladeira e mais alguns outros bens menores. No final, a compra garantiu a Dolores uma bela comissão. “Ele vinha do interior para morar em Guarulhos e estava comprando as coisas para a nova casa. Pagou a vista. O outro vendedor o ignorou porque o cliente parecia pobre.”
Consumo, no entanto, não é sinônimo de aceitação. Se assim fosse, os homossexuais estariam livres da desconfiança e intolerância que os cercam. Um recente levantamento da Intersearch, empresa especializada em identificar tendências de consumo, apontou que, em média, um homossexual gasta 40% a mais com lazer e vestuário do que um heterossexual. A ausência de mulher e filhos seria o principal impulsionador desse fenômeno.
Na semana que antecedeu a 11ª Parada do Orgulho de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros (GLBT), em São Paulo, evento que levou cerca de 3,5 milhões de pessoas à Avenida Paulista no ensolarado domingo de 10 de junho deste ano, as lojas da badalada Rua Oscar Freire estiveram apinhadas – movimento só visto em datas como Natal e Dia das Mães. A grife Diesel, uma das queridinhas da comunidade gay, viu algumas peças simplesmente sumirem das araras.
A Parada Gay deste ano teve o tema “Por um mundo sem racismo, machismo e homofobia”. Entre o lema e a realidade, contudo, há uma boa distância, como sugere o assassinato do francês Gregor Erwan Landouar, de 35 anos. Ele foi morto a facadas, por volta das 22h30 do domingo da Parada Gay, quando deixava, acompanhado por mais três pessoas, o Bar Ritz, clássico bar paulistano freqüentado pela comunidade gay. Gregor foi agredido por um grupo de desconhecidos, que fugiu a pé. Nada foi roubado – o que sugere que o crime foi motivado por intolerância sexual.
Pobres também são vítimas da violência, como comprova o caso de Sirlei Dias Carvalho Pinto, nome real da empregada doméstica de 32 anos, que foi espancada e roubada por um grupo de jovens de classe alta, no Rio de Janeiro, dia 24 de junho.
Sirlei foi atacada por cinco jovens, um deles estudante de Direito, quando esperava o ônibus num ponto da avenida Lúcio Costa, na Barra da Tijuca, às 4h30. Cinco jovens desceram de um Gol preto, arrancaram a bolsa da empregada e começaram a chutá-la na cabeça e na barriga. Roubaram seu telefone celular e a carteira, que tinha R$ 47,00. A cena foi assistida por um taxista, que anotou a placa e acionou a polícia. Pelo número do registro do veículo, os policiais localizaram Felipe Macedo Nery Neto, 20 anos, estudante de Direito, que denunciou seus quatro colegas.
“Melhor filho ladrão que veado”
Presbiteriano, Cícero, solteiro, paulistano, curso superior, que trabalha para a Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero), vive num eterno conflito entre os dogmas e sua orientação. “Eu sou preconceituoso até hoje. Me sinto mal, me dá culpa. A Bíblia fala que somos excomungados.”
Muitas vezes, a dificuldade de sair do armário está na própria cabeça. O medo da rejeição, seja da família, seja dos amigos, provoca reações inesperadas. Cesário, 25 anos, paulistano, gerente de call center, solteiro, revela o quanto sofreu até se assumir. “Eu não me aceitava. Era preconceituoso. Falava mal de veado e era louco para fazer a mesma coisa. Meu pai era nordestino, desses machões, teve várias mulheres. Me achava estranho. Eu tive que fazer muitas terapias, porque sempre me chamavam de bicha, desde pequeno.”
Nem sempre é assim. Em vários momentos da pesquisa, a repugnância pelos gays surgiu nas discussões. Por vezes de forma indireta, como no intolerante discurso do marido de Carol, 26 anos, desempregada, mãe de um garoto de cinco anos. “Meu marido fala que prefere mil vezes ter um filho ladrão do que veado.” Ou em situações mais concretas e difíceis de compreender, como a relatada por Jorge Ricardo, 26 anos, engenheiro elétrico, casado, pai de dois filhos. “Conheço um casal de irmãos em que o menino é homossexual e a filha casou com um ladrão de banco. O cara foi expulso de casa por ser gay. Enquanto isso, a irmã está lá, vivendo nas asas do bandido.”
Houve também, em pelo menos duas intervenções, quem demonstrasse um claro incômodo com a possibilidade de vir a ter um filho gay. O argumento utilizado é de que o filho passaria por maus bocados ao se revelar. É o que pensa o representante comercial Émerson, 42 anos, divorciado, pai de um menino. “Eu tenho medo de meu filho ser homossexual. Porque acho que ele pode sofrer muito. Pode apanhar, rasgarem a cara dele. Você ouve sobre skinheads matarem gays.” O medo de Émerson se justifica. Os números descortinam a face mais violenta da intolerância.
NÚMEROS DA INTOLERÂNCIA
Pesquisa encomendada pela Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo, com o apoio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, da Presidência da República, mostrou que 59% dos 846 entrevistados no evento de 2006 sofreram algum tipo de agressão física.
Em sentido contrário, a pesquisa Ibope/Brasileiros fornece dois dados novos. O primeiro é que não houve nenhuma reação de preconceito explícito aos argentinos. No máximo se falou em rivalidade futebolística
(leia quadro na página 48).
Outra constatação se refere à discriminação contra mulheres e nordestinos que, apesar de ainda existir, vem perdendo fôlego. Só um entrevistado nos diversos grupos, o funcionário público paulistano Mário, negro, 37 anos, casado, pai de um menino de sete, admitiu categoricamente a ojeriza que eles lhe provocam. “Não gosto de nordestino. Porque vem para o Sul sem estrutura. Chega aqui com cinco filhos, fora os cinco que deixou lá. Depois traz os de lá e faz mais cinco aqui. E o Estado é obrigado a dar transporte, educação, saúde.”
Esse discurso, porém, não provocou grande ressonância. Tanto que o grupo de migrantes foi o que melhor se relacionou com sua condição. Com uma ou outra queixa, o consenso foi de que o preconceito ainda existente vem dissimulado na forma das piadas. Aliás, todos os ouvidos pelo levantamento, em maior ou menor intensidade, elegeram esse artifício, muito próprio do humor brasileiro, como um veículo difusor da intolerância.
A ajudante de cozinha Laís, 42 anos, casada, mãe de três filhos, não suporta indivíduos que usam tatuagem. Para ela, a prática resulta numa “destruição violenta do corpo”. Conceição, a consultora de bijuterias, não admite piercing. Disse para os filhos que tatuagem pode, mas piercing não, pois isso “é se maltratar, não gostar de si”. Laércio, 48 anos, solteiro, massoterapeuta, não tolera quem fuma. Se for mulher, então, considera “uma pessoa estragada”. João, 29 anos, negro, solteiro, coordenador administrativo e ator de teatro, “tem ojeriza de gente ignorante”.
A pesquisa Ibope/Brasileiros identificou avanços, mas revelou que ainda há muita intolerância neste lado de baixo do Equador. Feita a constatação, poderíamos seguir a bela lição de tolerância dada pelo músico André Abujamra, vocalista da banda Karnak e filho do grande ator Antônio Abujamra. Em Alma Não Tem Cor, composição de sua lavra, André diz “percebam/que a alma não tem cor/
Lázaro não quer ser exceção
Lázaro Sacramento Ramos, 28 anos, brasileiro, baiano, negro, ator, casado com a atriz Taís Araújo, tão negra e bela quanto ele. Um brasileiro que, ao contrário da maioria, não gostaria de ser uma exceção. Exceção por ser um negro querido, bem-sucedido, bem remunerado e feliz com as oportunidades que a vida lhe deu. Uma ilha no oceano de preconceito, intolerância e pobreza que secularmente castiga seu povo no Brasil.
Mais clara a pele, melhor
“Eu sempre sou citado como a exceção. Não gostaria que fosse assim. Está na hora de mudarmos essa condição. O Brasil precisa aprender a explorar suas potencialidades”, diz o ator, um raro caso de artista amado pelo público e respeitado pela crítica. Apesar de não estar diretamente vinculado a nenhuma ONG ou entidade ligada ao movimento negro, Lázaro é dono de um discurso seguro e eloqüente. Fala sem arroubos ou exageros.
A consciência de sua condição e a estratégia de reação foram traçadas no Bando de Teatro Olodum, grupo artístico de Salvador, notório por encenar espetáculos apenas com atores negros. Muito além de uma companhia, o Bando tornou-se um centro de discussões e de valorização dos costumes e da cultura afro-brasileiros. “O Bando me deu auto-estima e a possibilidade de me defender. Ali formei minha consciência política e social. Sou fruto de tudo o que aprendi ali.”
No Bando, ele aprendeu uma lição que guardou para o resto da vida. A de que o Brasil é uma sociedade arianista, na qual quanto mais clara for a pele mais oportunidades o dono dela terá. Munido de talento e perseverança, Lázaro rompeu a barreira de um meio que tem o branco como seu referencial de beleza. Coleciona atuações memoráveis em filmes como Madame Satã, O Homem que Copiava, Cidade Baixa e Ó Pai, Ó – este último adaptação de uma peça encenada pelo Bando -, que o levaram à TV Globo – a mesma emissora que, em 1969, pintou de preto a cara do alvo Sérgio Cardoso na novela A Cabana do Pai Tomás.
Prova viva de que capacidade e alma não têm cor, Lázaro fez história com seu Foguinho, o bom malandro que interpretou na novela Cobras e Lagartos. “O Foguinho era um personagem lúdico, hilário. As crianças acabaram revelando um afeto muito grande por mim e pelo personagem que vivi. Pena, mais uma vez, que ele seja uma exceção.”
Nem sempre Lázaro foi exceção. Foi regra quando parado pela polícia (“tantas vezes que eu nem sei precisar”) e em outras situações que não quer contar. Isso acrescentaria pouco ao debate, em sua visão muito maior do que um constrangimento aqui e uma humilhação ali podem provocar. Também não se sente mais bem tratado hoje do que quando era apenas mais um rosto negro na multidão. Até porque não deixou de ser quem é e sempre foi. Não passou pelo processo classificado por muitos de “embranquecimento social”, metamorfose que torna o negro menos negro quanto mais rico ele for.
“Eu continuo freqüentando os mesmos lugares e convivendo com as mesmas pessoas.” Esse é Lázaro Ramos. Um brasileiro feliz com as conquistas pessoais, mas ainda à espera de uma sociedade “diversialista”, na qual as diferenças são respeitadas, as oportunidades são iguais e os talentos, independentemente de cor, sexo, religião, são potencializados. “O dia em que conseguirmos isso, daremos uma lição para o mundo.” Esse dia há de chegar, Lázaro. Há de chegar!
Você tem preconceito de pesquisa |
Quem, na roda de bar, na fila do banco ou no salão de cabeleireiro, nunca ouviu o seguinte comentário: “Eu não acredito em pesquisa. Nunca fui ouvido por uma”. Mas antes de questionar a credibilidade dos institutos, o leitor precisa ter uma idéia de como são feitos esses levantamentos. As dúvidas costumam surgir pela falta de conhecimento técnico ou pela manipulação nem sempre honesta dos que não estão sendo beneficiados pelos números.O psicólogo Nelson Marangoni, CEO do Ibope Inteligência, explica de forma quase lúdica o complexo mecanismo que rege a produção de uma pesquisa. “A dona-de-casa faz um enorme caldeirão de sopa. Depois de misturar tudo, ela retira uma porçãozinha para experimentar. Com aquela pequena quantidade, ela consegue saber se o caldo está salgado, se está aguado. Mas para investigar isso, ela não precisa entornar o caldeirão. Além disso, misturando o caldo, ela dá oportunidade àquele grãozinho que está lá no fundo de participar do teste. Assim, intuitivamente, ela aplicou um conceito estatístico. O mesmo princípio vale para as pesquisas. Nós trabalhamos com uma amostra que contempla determinado segmento ou universo, seja ele de eleitores, homens ou donas-de-casa”, diz Marangoni.Para atingir o que o executivo classifica de “fidedignidade de resultados”, o Ibope planeja suas amostras de um jeito que qualquer indivíduo daquele segmento pesquisado tenha chance de ser ouvido. Dessa forma, faz sorteios de cidades, bairros, quarteirões e casas, até chegar ao entrevistado que participará do levantamento. É bom lembrar que o principal produto de uma organização com esse fim comercial é sua credibilidade. Se seu maior bem for colocado em xeque, haverá grandes riscos para a própria continuidade do negócio. Daí a necessidade de toda uma equipe de pesquisadores, analistas e checadores conferir cada dado, cada informação e cada número apurado. Só em 2006, as várias empresas que compõem o grupo Ibope realizaram mais de 1,5 milhão de entrevistas de pesquisas quantitativas, sendo 25% telefônicas e o restante, pessoais. Organizou mais de 1,2 mil discussões em grupo e aproximadamente 300 entrevistas com maior grau de elaboração e profundidade.Todo esse cuidado não elimina a possibilidade de o temível erro aparecer. Quando isso ocorre, é preciso rapidez na admissão e correção do equívoco e, acima de tudo, transparência. Os erros costumam surgir da má formulação do questionário, da constituição do perfil dos grupos pesquisados e até mesmo da maneira como as perguntas são feitas. “O único trabalho com 100% de garantia seria o realizado com todo o universo de interesse de uma pesquisa. No caso de uma eleição presidencial, por exemplo, com todos os votantes. Mas isso seria inviável, por questões técnicas, de prazo e financeiras. Enganos existem. Mas que sejam técnicos e jamais éticos”, afirma o CEO. |
O que é pesquisa qualitativa |
Você, caro leitor, talvez esteja se perguntando por que a pesquisa Ibope/Brasileiros – Preconceito, Consciência e (I)Lógica – ouviu apenas 45 pessoas. A resposta é simples. Para esse projeto, o instituto julgou mais adequado utilizar a técnica de pesquisa qualitativa. Nessa modalidade de estudo, o objetivo é radiografar atitudes, motivações e raciocínio de determinado grupo. Permite compreender o que está por trás dos comportamentos e dos atos dos entrevistados. É um trabalho mais denso, profundo. Daí a necessidade de reduzir o número de entrevistados. Participam, no máximo, dez pessoas por sessão. As reuniões são realizadas em sala fechada e podem durar mais de duas horas. Todas as discussões são acompanhadas por um moderador, especialista em mediar debates desse tipo. Esse foi o método considerado adequado para a proposta da reportagem de capa de Brasileiros, que procurou investigar o que o brasileiro pensa sobre o preconceito, como o pratica e contra quem o dirige.
As pesquisas quantitativas, ou de opinião, são as mais conhecidas do grande público. Nesse segmento, as mais notórias são as eleitorais. Tendências de consumo também são identificadas por meio dessa técnica. |
QUEM DIRIA? NADA CONTRA OS HERMANOS
Em meio aos preconceitos e incômodos de vários tons e matizes revelados pela pesquisa Ibope/Brasileiros, a ausência de citações aos argentinos provocou certa surpresa. Espontaneamente, nenhum dos 45 participantes do levantamento demonstrou qualquer tipo de ódio, ojeriza, preconceito ou incômodo com os vizinhos do Sul.
Negro e argentino
Quando estimulados a falar sobre o explosivo tema, foram unânimes ao afirmar que nossas diferenças estão restritas aos campos de futebol, ou las canchas, como se diz pelos lados de Buenos Aires.
Filho do fotógrafo brasileiro, negro, Francisco Lucrécio Jr. com Laura, uma artista plástica argentina, o cineasta Patrício Salgado, 34 anos, não chegou a ficar surpreso com o resultado do estudo.
Brasileiro, negro e com sangue argentino correndo nas veias, Patrício fez sua estréia nas telas com o documentário Negro e Argentino. No filme, ele conta sua história, iniciada em 1974. Quatro anos antes, o pai conhecera a mãe durante uma viagem a Salvador. Depoimentos de familiares em São Paulo e Buenos Aires fazem o espectador descobrir que o avô de Patrício tinha uma possível inclinação racista.
Mas se havia, o sentimento sucumbiu à chegada do neto. Em outra passagem, o pai, Lucrécio, confessa que foi muito mais discriminado em São Paulo do que em Buenos Aires. Patrício faz coro. “Eu passei um ano da minha infância lá e visito minha família quando posso. Posso afirmar que sempre fui muito bem tratado. O argentino, na verdade, tem preconceito do indígena, não do negro.”
Com pós-doutorado em gozação, a turma do diário Olé, o principal jornal esportivo da Argentina, não perde a oportunidade de ironizar os insucessos de clubes brasileiros ou do escrete canarinho nos jogos contra os times e a seleção argentina. O escárnio aos brasileiros é uma das linhas editoriais do tablóide, confirma Leo Farinelli, diretor de redação do diário.
“Olé não esconde que estimula a rivalidade futebolística entre Brasil e Argentina. É com esse espírito que gozamos vocês quando perdem. Principalmente quando é para a Argentina. Não temos culpa de sermos autênticos.” O auge dessa provocação se deu na Copa da Coréia e Japão, em 2002. Com o time nacional eliminado na primeira fase do torneio, o Olé se viu com a árdua tarefa de cobrir o confronto entre o rival Brasil e a Inglaterra, de terríveis lembranças da Guerra das Malvinas. Não teve dúvidas. Praguejou para que um desastre natural impedisse a disputa da partida e, com isso, os dois adversários fossem eliminados de uma só vez.
Em outra oportunidade, por ocasião de uma partida contra o Brasil em Buenos Aires, o Olé estampou na capa uma mulata em trajes sumários. A chamada não poderia ser mais direta: “O que você tem para fazer esta noite?“. O congênere brasileiro, o diário Lance!, também não deixa por menos quando o assunto são nossos hermanos. Mesmo que ela seja dada fora das quatro linhas, como diz o editor-chefe da publicação, Luiz Fernando Gomes.
“A postura do Lance! em relação à Argentina é um pouco diferente da que o Olé tem em relação a nós. Aqui, desde sempre, a coisa é tratada exclusivamente no campo da rivalidade, enquanto do lado de lá, algumas vezes, a linha tênue do preconceito é transpassada”, diz o jornalista.
E por falar em futebol, quem é mesmo melhor? Pelé ou Maradona? Taí uma discussão que tende a ser eterna. Talvez uma edição inteira de Brasileiros não fosse capaz de esgotar o assunto. Assim como eterno é o desencontro desses dois países. Que carregam lá suas diferenças, mas têm muito mais em comum do que meros quilômetros de fronteira.
O cavaleiro da tolerância
Nascido em Barra de Guabiraba, pequena cidade da Zona da Mata pernambucana, o brasileiro Antônio Marcos Barbosa da Silva – o Antônio do Glicério -, 35 anos, já fez e passou por quase tudo nesta vida. Em 15 anos de São Paulo, lavou carros, vendeu tapiocas e outras bugigangas para sobreviver, trabalhou nos Correios e foi fiscal de transportes da Prefeitura de Santo André. Tudo isso até ingressar no austero prédio do Tribunal de Justiça, na Praça da Sé, Centro da capital paulista, onde exerce a função de escrevente judiciário. Porém, nada do que fez até hoje lhe dá tanto orgulho e felicidade quanto a luta pela igualdade e respeito ao próximo, não importa se pobre, negro, gay, judeu, evangélico ou nordestino como ele.
Mendigos, sem-teto, drogados
Antônio do Glicério é o soldado da tolerância. Suas armas nessa eterna batalha são uma infatigável disposição física, milhares de panfletos antidiscriminação nas mãos, uma enorme bandeira nos braços e um gigantesco boneco de três metros de altura nas costas. É com ele que desfila pelas ruas do Centro da maior cidade do Hemisfério Sul, propagando sua mensagem por um mundo que entenda e respeite as diferenças.
Ele, que adotou com altivez o apelido Glicério, bairro onde reside em São Paulo e local com a triste fama de ser reduto de mendigos, sem-teto, drogados e desvalidos, não alimenta a ilusão de que um dia o ser humano seguirá o bíblico preceito do amai-vos uns aos outros. Antônio prega o controle da intolerância. “Você não é obrigado a gostar de ninguém. Só precisa respeitar o direito do outro”, diz ele, repetindo a mensagem gravada nas costas do boneco, um monumento contra a ignorância talhado em pano e canos de PVC.
Antônio já faz parte da paisagem paulistana. A cada dois sábados ele desfila com seu boneco pelos viadutos e calçadões do Centro de São Paulo. Também é assíduo em passeatas, comícios e manifestações públicas. Isso quando consegue uma folguinha da função de funcionário público. Entre suas façanhas, percorreu os 15 quilômetros da tradicional Corrida de São Silvestre carregando sua alegoria nas costas. Quase morreu, como ele próprio diz, mas conseguiu seu objetivo, que era fazer os brasileiros refletirem sobre o controvertido tema.
Como nordestino, o escrevente judiciário sofreu várias formas de intolerância, desde o dissimulado em forma de piada até o grosseiro, como este que motivou sua cruzada: “Trabalhava com uma psicóloga que se dizia minha amiga. Mas quando comecei a namorar outra colega de trabalho, essa ‘amiga’ disse que ela merecia coisa melhor. Falou que eu era um baianinho sem futuro e que ainda por cima falava com sotaque. Fiquei revoltado. Pensei em fazer besteira. Mas decidi que a melhor resposta era tentar conscientizar as pessoas da necessidade do respeito”.
Dois outros acontecimentos contribuíram para que Antônio seguisse na mão única da tolerância. Na mesma semana em que sofreu a humilhação, viu um homem, com o filho pequeno ao lado, chamar um jovem engraxate negro de macaco. E, ao ir ao cinema com o filho, ouviu um pequeno grupo fazendo piadas e ironias com os nordestinos, gente de seu sangue.
Logo depois, apareceu no Tribunal vestindo uma camiseta com a inscrição “SP SP”. Surgia assim o movimento “São Paulo Contra o Preconceito”. Como toda causa precisa de um símbolo que a identifique, pensou no desenho de um rosto negro com um chapéu de nordestino. Aí chegou à conclusão de que ele próprio estava sendo preconceituoso. “Esqueci dos brancos. E entre eles há gays, gordos e deficientes que também sofrem discriminação. Daí pensei em desenhar uma carinha com a metade branca, a metade preta e o chapéu de nordestino.”
Apesar da exposição pública, Antônio afirma que jamais sofreu qualquer tipo de ameaça ou agressão. Nem os punks e skinheads mexeram com ele. Pelo contrário. A iniciativa tem lhe rendido elogios e votos de apoio por onde passa. Problema até agora só com alguns espertinhos que se aproximaram dele para tentar obter vantagens. “Apareceu um assessor de um vereador que veio pedir meu apoio em troca de dinheiro. Disse que não faria isso. Aí o cara ficou nervoso e falou que eu era um trouxa e que iria morrer com esse boneco nas costas. Outro tipo chegou para mim e se ofereceu para montar uma ONG. Garantiu que isso dava grana. Contou que um gerente de uma entidade dessas ganha R$ 7 mil por mês. Não é esse o meu objetivo. Se for para ganhar dinheiro, minha causa perde o sentido.”
Antônio sente o cheiro de um oportunista de longe. Por isso, sabe como lidar com sujeitos desse tipo. O que o deixa triste mesmo é quando alguém o ignora e não pega seus panfletos.
Ao ser informado sobre os resultados da pesquisa Ibope/Brasileiros, mostrou-se surpreso com fato de os entrevistados terem admitido ser preconceituosos. “Isso é legal. Normalmente as pessoas fingem que não são. O simples fato de admitirem já é um bom caminho.”
Vítima direta da intolerância, o escrevente judiciário não concorda muito com as conclusões do grupo de nordestinos ouvido no levantamento. Houve quase consenso de que a discriminação aos migrantes vem diminuindo e hoje está diluída em piadas e gozações. “O errado, o feio é sempre associado ao nordestino. É sempre o baianinho que fez isso, o baianinho que fez aquilo. Pode até ser em tom de brincadeira, mas sempre com o intuito de diminuir.”
“Cigarro me incomoda”
Outro dado relevante identificado pela pesquisa é o de que todos nós, em maior ou menor grau, estamos sujeitos a carregar algum tipo de preconceito ou estranhamento. Seguindo esse raciocínio, o “senhor tolerância” teria algum? “O que me incomoda é o cigarro. Acho uma falta de respeito. Sei até que é um direito a pessoa fumar. Mas também é um direito não ser obrigado a inalar aquela fumaça.”
De perto, nem Antônio do Glicério é anormal.
“NO BRASIL, PRECONCEITO É NEGOCIÁVEL”
Professora titular no Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, a antropóloga Lilia Schwarcz é uma das maiores especialistas do País no estudo das causas e efeitos das mais variadas formas de preconceito e discriminação, com ênfase naquelas que se convencionou chamar de raciais. Denominação, aliás, que ela rejeita, pois acredita que, num país tão miscigenado como o nosso, não faz sentido falar em raça. Lilia tem em seu currículo dezenas de trabalhos, pesquisas e livros sobre o tema, entre eles Retrato em Preto e Branco, O Espetáculo das Raças e As Barbas do Imperador, todos editados pela Companhia das Letras.
A antropóloga foi convidada por Brasileiros para analisar as conclusões da pesquisa Preconceito, Consciência e (I)Lógica, produzida com exclusividade pelo Ibope para o primeiro número da publicação. E faz uma curiosa constatação: “No Brasil, o preconceito é negociável. A pessoa fica mais preta ou menos preta de acordo com a circunstância”.
Brasileiros: A pesquisa qualitativa realizada pelo Ibope para a revista Brasileiros indicou que a antiga idéia de que “preconceituoso é o outro”, citada pela senhora em relação ao preconceito racial, está perdendo força. Nossos entrevistados se reconheceram preconceituosos. Como a senhora interpretaria essa mudança?
Lilia Schwarcz – Do centenário da abolição, em 1988, até hoje muita coisa mudou. Para o bem ou para o mal, foram criados fatos políticos que obrigaram as pessoas a falar, discutir o tema. Essa idéia de que o preconceito está em você e não no outro obrigou a uma tomada de posição. A polêmica sobre as cotas para negros nas universidades é um bom exemplo dessa mudança.
Brasileiros: Na pesquisa havia um grupo composto apenas por negros. Quase todos criticaram a política de cotas. Houve consenso de que a medida pode aumentar ainda mais o preconceito. Qual sua opinião sobre o tema?
Lilia Schwarcz – Sou a favor de cotas sociais. Do jeito que está, partindo do pressuposto de que há uma desigualdade, estamos correndo o risco de recriar raças, refundar o racismo científico. Veja o caso dos irmãos gêmeos da Universidade de Brasília. Um entrou pelas cotas e o outro, não. Precisamos estabelecer critérios universais para garantir o ingresso e uma nova política educacional. Caso contrário, estaremos desenvolvendo novas formas de exclusão.
Brasileiros: Pessoas que seriam alvo de preconceito – negros ou homossexuais – revelaram seus preconceitos em relação a pessoas do mesmo grupo: negros brasileiros contra nigerianos, associando-os a traficantes, “que prejudicam a imagem de todos os demais negros”; ou gays contra travestis “muito espalhafatosos”. Como poderíamos entender esses
comportamentos?
Lilia Schwarcz – O preconceito é uma atitude do humano. Nós sempre reagimos à idéia do diferente. É que o debate foi ideologizado. Sempre se associa o preconceito à elite. Os ricos sofrem menos preconceito. Eles anulam os marcadores sociais da discriminação.
Brasileiros: Quais seriam esses marcadores?
Lilia Schwarcz – Raça – apesar de questionar esse conceito -, etnia, origem, faixa etária. Todos esses fatores são alvos e veículos para a aplicação do preconceito.
Brasileiros: E a discriminação social? Essa idéia de que, se o fulano tiver dinheiro, não importa se é negro, gay…
Lilia Schwarcz – Aqui o preconceito é negociável, manipulável. No Brasil, a pessoa pode ficar mais preta ou menos preta de acordo com a circunstância, seja ela social, política ou cultural. Ela joga com a cor, manipula. É o branqueamento social.
Brasileiros: Antes era comum ouvir que no Brasil não havia racismo, homofobia etc. Agora as pessoas já falam abertamente que o País é preconceituoso. É uma evolução?
Lilia Schwarcz – O pesquisador social é sempre um melancólico. Não falaria em evolução. Mas vejo o fato de essas questões estarem sendo debatidas, apesar dos interesses políticos envolvidos, como algo positivo. Nós criamos um padrão de relacionamento humano muito particular. Não quer dizer que é o melhor. Mas é nosso.
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