O que diz o MPL



Foram seis manifestações contra o aumento da tarifa do transporte público em São Paulo, que mobilizaram milhares de pessoas até a revogação do reajuste, anunciado em 19 de junho último. A sétima era para comemorar, mas houve ocorrência de confrontos na cidade e em várias partes do País. Os R$ 0,20 geraram outros protestos, também nas ruas e nas redes sociais, tão complexos quanto a mobilidade urbana – saúde, educação, corrupção, reforma política. O Movimento Passe Livre, ou apenas MPL, parou de organizar atos populares depois que os preços das passagens voltaram ao patamar de R$ 3. “Não dá para achar que a rua sempre é o melhor lugar para o debate”, diz Nina Cappello, 23 anos, estudante do quarto ano de Direito na USP e militante do MPL. Em encontro com a reportagem, ela e Vitor dos Santos Quintiliano, 16, aluno do 3oano do Ensino Médio no Centro Educacional SESI-Vila Leopoldina, explicaram os motivos que levaram o movimento, composto por cerca de 40 militantes assíduos, a tomar outro caminho para o debate em torno do transporte público. Eles também comentaram a adesão de outras pautas aos atos contra o aumento das tarifas, afirmando serem parceiros de outros movimentos sociais. No entanto, eles asseguram que não pretendem perder o foco da pauta principal. Por isso, não discutem a reforma política e não têm a menor intenção de se envolverem, enquanto movimento social, com outros temas, ainda que mereçam ampla discussão.

Brasileiros – As manifestações organizadas pelo MPL ganharam força e novas reivindicações, além da revogação da tarifa de ônibus, surgiram com a adesão de outros segmentos da sociedade. Como vocês enxergam isso?

Vitor – As pessoas ficaram revoltadas e acabaram trazendo outras inquietações, encontrando nas ruas um espaço para pautas além do transporte, que também são problemas sociais importantes. As pessoas se empolgaram, e com razão. Muitas das outras reivindicações vistas nas ruas já estavam à luz, como movimentos pela moradia ou pela melhoria na saúde. O MPL sempre se relacionou com esses grupos e nossa política tende a continuar assim. Mas sem perder o foco do transporte, que é a nossa pauta principal.

Brasileiros – O MPL abraça outras causas?

Vitor – Apoiamos outros movimentos sociais, que são nossos parceiros, como o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) e MMRC (Movimento de Moradia da Região Centro), além do Fórum Social de Saúde.

Brasileiros – A violência policial ocorrida nos atos em São Paulo também ajudou a mobilizar pessoas que não estavam engajadas no Passe Livre?

Nina – Essa é uma discussão importante. No quarto ato, o do dia 13 de junho, havia uma ordem de cima para conter a manifestação. Essa é uma política que Estado e município geralmente adotam para assustar as pessoas que estão ali e para as que gostariam de estar ali. Então, começaram a prender pessoas, alegando que elas tinham cara de manifestantes, a polícia já conhecia os manifestantes de atos anteriores ou por porte de vinagre. A Defensoria Pública gravou tudo. No lugar de dialogar com a população, o governo opta por criminalizar. Desde a primeira manifestação, teve muita gente presa, machucada. Isso sem falar que armas foram usadas de forma errada. Um escândalo. Eu mesma não fui a essa manifestação, fiquei na base do movimento porque estava sofrendo ameaças. Recebi notícia de várias pessoas dizendo que a ordem do governo era prender as lideranças. E a polícia sabe quem eu sou.

Brasileiros – Que tipo de ameaça?

Nina – Nenhuma ameaça direta, mas chegaram informes de que a ordem era prender as lideranças, o que fazia sentido. O que vivenciamos naquela quinta-feira, 13 de junho, acontece sempre. Essa é a forma como o Estado recebe os movimentos sociais. Na periferia, a polícia age de jeito muito pior. Se a polícia se comporta dessa maneira diante de um monte de câmeras, imagine o que rola na periferia. Tem gente dormindo na praça e recebe tiro de borracha, prendem aleatoriamente as pessoas porque são negras ou pobres.

Brasileiros – Agora, discute-se a reforma política. O que o movimento defende?

Nina – Não discutimos a reforma política do País. Muita gente tem pressionado o MPL sobre isso. O que vocês acham da corrupção, da PEC 37, da reforma política? Somos um grupo que debate o transporte público e aprofundamos a discussão na importância dos movimentos sociais. Uma coisa que a gente entende da política institucional é que ela deveria priorizar ao máximo as instâncias de participação direta. Sei que isso não é exatamente uma reforma política, temos uma Constituição avançada em alguns pontos, como iniciativa popular, plebiscito, referendo, itens muito pouco utilizados. Por isso, o nosso projeto de lei é importante. Temos de levantar a assinatura de 430 mil eleitores de São Paulo (30% do eleitorado qualificado) e cada assinatura precisa ter o título de eleitor. É um processo complicado, uma burocracia. Mas achamos que pode fortalecer a participação popular no processo político. O projeto de lei prevê uma série de mudanças nas diretrizes do transporte público e estabelece que seja composto um conselho municipal amplo com a participação da população. Se for aprovado pela Câmara Municipal, será o primeiro projeto de lei de iniciativa popular.

Brasileiros – Como se daria a participação popular?

Nina – Com representantes regionais de fóruns de transporte, onde se discute muito as necessidades da população. A gente participa de um fórum desses no Jardim Ângela e é impressionante como eles dão uma aula sobre o funcionamento do transporte na região. Sabem melhor do que qualquer técnico da prefeitura.

Brasileiros – A partir da revogação do aumento da tarifa, qual será o próximo passo?

Vitor – A tarifa zero.

Brasileiros – Qual é a proposta do movimento para que essa ideia dê certo?

Nina – Tarifa zero é uma decisão política da prefeitura, que pode optar ou não por custear o transporte público integralmente, assim como custeia integralmente outros serviços públicos, como educação e saúde.

Brasileiros – Mas custear saúde e educação não é exatamente uma opção municipal. As prefeituras são obrigadas a controlar esses serviços.

Nina – É verdade, as prefeituras têm uma parte do orçamento para isso. É exatamente esse o ponto. A gente luta para que o transporte público seja um direito, voltado para as necessidades da população e gerido por ela. O fato de a população ter ido às ruas, se organizado e conseguido a redução do aumento da tarifa abrange diretamente essas questões, uma interferência em um ponto central do sistema, que é a política tarifária. Haddad (Fernando Haddad, prefeito de São Paulo) já falou que vai instaurar o Conselho Municipal de Transportes. Essa é uma reivindicação antiga do movimento por ser uma das formas que a gente entende que a população pode participar mais da gestão do transporte. Mas sempre vem essa questão de como custear o transporte, que é muito caro, quem vai pagar a conta. Como um movimento social, não cabe a nós apontarmos como gerir o orçamento, de onde tira e coloca. Mas defender um direito.

Brasileiros – Então, vocês não têm nenhuma proposta concreta com relação aos custos?

Nina – A discussão é importante e um dos elementos desse debate. Mas há outras questões, como os investimentos em transporte privado. Não só em carros particulares, mas táxis, que têm isenção alta de IPI. Só que táxi não é transporte público. Então, interessa para a cidade essa quantidade de táxis? Outra questão são os estacionamentos gratuitos nas ruas, onde, de certa forma, a prefeitura disponibiliza uma parte da via pública para um carro sem receber nada em troca. Também não tem ônibus de madrugada porque não interessa às empresas de transporte. É uma questão de mercado porque elas recebem por passageiro e só colocam ônibus nas ruas quando tem muito passageiro. Isso significa que ainda existe uma série de questões a serem debatidas.

Brasileiros – Quando você diz estacionamento gratuito, quer dizer pontos que não têm zona azul.

Nina – Isso, mas há quem defenda que toda a área pública onde dá para estacionar deveria ser paga. A questão da tarifa zero é uma proposta do governo Erundina (Luiza Erundina, que foi prefeita de São Paulo entre 1989 e 1992), que incluía a reforma tributária com a ideia do IPTU progressivo, ou seja, quem teria mais pagaria mais, e os que teriam muito pouco seriam isentos. Esse valor arrecadado iria para um fundo municipal de transportes, que poderia custear a tarifa zero. Na época, inclusive, a tarifa zero chegou a ser adotada no bairro Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo. Há muitas questões a serem discutidas, que envolvem economias em diversas áreas do orçamento público, como na saúde. Hoje, gasta-se muito em saúde pública tanto com acidentes de carro quanto em pacientes com problemas respiratórios.

Brasileiros – Duas cidades brasileiras, Agudos, em São Paulo, e Porto Rural, no Rio de Janeiro, já adotaram a tarifa zero. São exemplos a serem seguidos?

Nina – Precisamos investigar melhor o que acontece nessas cidades. Na verdade, a gente não sabe como o sistema está funcionando nessas localidades. Sabemos também que a cidade de Hasselt, na Bélgica, cortou uma série de gastos com anéis viários, pontes e viadutos. Em São Paulo, é o contrário, gasta-se muito com recapeamento de vias, ampliando marginais. Por exemplo, a ponte Estaiada, que custou mais de 500 milhões, sequer tem via para bicicleta e também não passa ônibus. Por que não invertemos essas prioridades?

Brasileiros – Qual a avaliação do MPL com relação ao encontro com a presidenta Dilma Rousseff, na última semana de junho, em Brasília?

Nina – Foi uma iniciativa importante a presidenta querer se reunir com um movimento social, algo que ela praticamente não fez em seus mais de dois anos de governo. Esperamos que seja uma sinalização clara de diálogo com movimentos sociais. Outros movimentos já deixaram suas reivindicações claras nas ruas. Mas que não seja apenas um diálogo que concede muito pouco. Essa é, inclusive, uma postura que o PT tem adotado também no âmbito municipal. A administração municipal vive dizendo que é “a prefeitura do diálogo”, que recebe todos os movimentos sociais para conversar, mas avança muito pouco. Assim, a reunião com Dilma não teve nenhum encaminhamento.

Brasileiros – O que os integrantes do Passe Livre conversaram com ela?

Nina – Ela sondou, quis saber sobre nossa proposta. Mas foi um debate raso sobre transporte público. Ela disse, por exemplo, que tarifa zero vai ter um custo. Evidente que tem um custo. Saúde tem custo, educação tem custo. Mas transporte público é tratado como mercadoria e os custos são repassados para os usuários, diferentemente de outros direitos. Questionamos Dilma para saber se ela considera o transporte um direito fundamental. Na Constituição, ele é considerado um serviço essencial. Então, uma proposta é a de colocar o transporte como um direito fundamental. Isso é uma coisa mais política do que técnica, no entanto, ajudaria no discurso argumentativo. Se é um direito fundamental, não tem lógica que se cobre tarifa.

Brasileiros – Nas últimas manifestações, havia pessoas descontentes com o MPL, afirmando que a causa do movimento havia sido desviada. Como respondem a isso?

Nina – Interessava tanto à direita quanto à esquerda dar um golpe na nossa pauta. Quando se tem um tema unindo as pessoas na rua, é mais fácil conseguir pressionar e ter uma vitória. Interessava para vários setores dizer que a luta não era só pelos R$ 0,20. Colocam um monte de coisas no mesmo saco e não se conquista nada. Para nós do movimento, era, sim, pelos R$ 0,20. O Brasil tem 37 milhões de pessoas que não conseguem pagar a tarifa e vão a pé para o trabalho, à escola. Por causa de 20 centavos, embora pareça insignificante para muitos, tem gente que deixa de ir ao médico. Não concordávamos com esse aumento. Mas a causa não acabou.

Brasileiros – Qual é a próxima pauta?

Vitor – Discutir mais o transporte e a importância das manifestações populares nessa luta.

Brasileiros – Algo mudou depois das manifestações do mês passado?

Nina – Mostramos que, se a população se mobiliza nas ruas, ela tem conquistas. Isso foi o mais importante. Além disso, agora todo mundo discute política.

Brasileiros – É possível fazer política sem liderança, de forma horizontal e independente de partidos, como vocês dizem como funciona o MPL?

Nina – O movimento existe há mais de dez anos. Sabemos que tem gente falando que estamos recuando. Mas não estamos. Não acreditamos que a luta só se dê só por grandes mobilizações. Falamos que íamos convocar grandes mobilizações até o aumento ser revogado. Uma vez que isso aconteceu, existem diversas formas de continuar nossa luta, como apoiando manifestações de movimentos parceiros ou promovendo debates mais qualificados. Não dá para a gente achar que a rua sempre é o melhor lugar para o debate. Entendemos que os movimentos sociais são mecanismos de pressão importantes e, se acreditássemos em política partidária, estaríamos militando em partido.

Brasileiros – Vocês já foram cooptados por algum partido?

Nina – Já tentaram. Quando alguém começa a militar, tem muito partido que se aproxima, se apresenta… Isso é natural e até saudável. Mas não tivemos problemas com partidos tentando cooptar o movimento, só pessoas do movimento. Não existe espaço no MPL para partidos ditarem os rumos do movimento.

Brasileiros – Nesse es­­que­­­ma, as redes sociais são fundamentais para o movimento?

Nina – São. Mas não são fundamentais para o processo. Usamos espaços de movimentos parceiros para reuniões físicas. Muita mesmo. Isso é tão verdadeiro que em nosso primeiro ato, em 6 de junho, conseguimos mobilizar seis mil pessoas por que fizemos uma articulação séria, construímos esse ato.

Brasileiros – Quantas pessoas militam no MPL?

Vitor – Somos cerca de 40 militantes, mas formamos um grupo de até 70 pessoas com nossos parceiros.

Brasileiros – Vocês têm sofrido assédio da imprensa?

Nina – Tem muita procura por reportagens pessoais. Mas recusamos todas porque não falamos de questões pessoais. Ninguém está aqui pessoalmente, somos representantes do movimento.

Brasileiros – Ninguém cai em tentação?

Nina – Nem um pouco. In­­clusive sofremos com isso. É muito chato ter de ficar recusando o tempo todo. Mas a linha política do movimento é clara sobre isso: nossas vidas não têm importância.


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