Toda a Rua Souza Lima, no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro, parecia ter orgulho de um vizinho como seu Dorival Caymmi. Morador do primeiro andar do no 310, apto 102, ele adorava passar manhãs e tardes recostado à janela, a olhar o movimento dos moradores. Abria um sorriso largo e respondia com um aceno a quem o reconhecia. Babás, mães com bebês, jovens que passeavam com cachorros, aposentados a caminho da praia. A paisagem era diferente da que conheceu na velha Cidade da Bahia, como se chamava Salvador na década de 1920, quando via e ouvia amoladores de facas e baianas que ofereciam quitutes. Adorava aquela sonoridade que o puxava para a música, tanto quanto os saraus da família. Passara a vida a olhar a vida pela janela. “Sou um janeleiro”, disse na conversa que tivemos, em fevereiro de 2000. Falar com Caymmi não foi fácil. A idade, 86 anos, era o maior problema. Entre o primeiro contato e a entrevista, com a ajuda da neta Stella Caymmi, sua biógrafa oficial, passou-se um ano e meio. Seu Dorival precisava de repouso. Quando finalmente ficou tudo acertado, cheguei pontualmente, às 13h30, e fui recebido por Stella Maris, companheira e guardiã, que me cobriu de gentilezas. “Preciso ir ao médico e fazer algumas coisas. Fique à vontade, meu filho, Dorival é todo seu.” Talvez a mulher do autor de O Que é Que a Baiana Tem? mudasse de ideia se soubesse que ele falaria durante as cinco horas seguintes. A entrevista seria publicada no caderno Fim de Semana, do jornal Gazeta Mercantil, em março de 2000. A pauta fora pensada para preencher lacunas de sua rica biografia. Por uma questão de espaço, o bate-papo não foi publicado na íntegra.
Neste mês em que Caymmi faria 100 anos, a Brasileiros apresenta trechos dessa conversa que ficaram de fora, como as passagens em que conta como criou suas principais músicas. Uma homenagem que vem se juntar à série de eventos, iniciada no ano passado com o livro O Que é Que a Baiana Tem? (Civilização Brasileira), de Stella Caymmi, que relança este mês a biografia Dorival Caymmi – O Mar e o Tempo (Editora 34). A programação inclui os shows Família Caymmi – 100 Anos de Dorival Caymmi; o disco Dorival Caymmi – Centenário, da Biscoito Fino, com clássicos interpretados pelos filhos Nana, Dori e Danilo, além das vozes de Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil; uma exposição no Centro Cultural dos Correios de São Paulo e de Brasília. No Carnaval deste ano, o compositor foi homenageado em São Paulo pela Águia de Ouro com o samba-enredo A Velha Bahia Apresenta o Centenário do Poeta Cancioneiro Dorival Caymmi.
Brasileiros – Em suas canções, a Bahia é uma presença constante. A que o senhor atribui essa influência? À sua infância em Salvador?
Dorival Caymmi – Sem dúvida. Primeiro, eu era frequentador de cozinha só de mamãe e de umas amigas dela, que eram descendentes de escravos, e andavam vestidas de baianas, como se diz por aqui. Aquela saia rodada, aquele cheiro típico de raízes de mascar, fumo de rolo para mascar. Tem uma folha de lavar roupa branca, patchuli, aquele cheiro, todas essas coisas eu guardei na memória. Pessoas que frequentavam a cozinha grande daquelas casas antigas, mamãe estava cozinhando, eu entrava para lavar alguma coisa. Tinha sempre parentes circulando e ouvia-se coisas do tipo: “Vou agora na casa de Floriano, de uma outra irmã, mamãe e mais duas”. Elas iam andando e até brincando. Então, eu me habituei com aquele clima doméstico antes de chegar o rádio. Já havia o gramofone, mas na nossa casa não tínhamos. Não chegou também a ter vitrola. Era hábito de papai e mamãe tocar os instrumentos. Ouvia conversa da culinária, nunca entendi de cozinha, mas adorava ouvir a descrição de uma receita.
Brasileiros – O folclore popular baiano também marcou muito suas composições, não?
D.C. – Eu comecei a gostar de danças com as festas de rua de Salvador, fiz até uma música com esse título: “A Conceição da Praia está embandeirada/de tudo quanto é canto muita gente vem/de toda parte vem o baticum de samba/batuque, capoeira e candomblé/O sol está queimando/Mas ninguém dá fé/Meu Senhor dos Navegantes/Venha me valê!/Meu Senhor dos Navegantes/Venha me valê!/Meu Senhor dos Navegantes/Venha me valêêê!”.
Brasileiros – Essas primeiras canções que o senhor trouxe da Bahia vieram do samba de roda que se fazia no Recôncavo Baiano? Da capoeira?
D.C. – Ah, a música do povo. Eu ouvia aquele negócio e gostava muito. Capoeira era uma coisa bem diferente do que é hoje. O que você ouve pela rua não é nada, apenas uma figuração boba. Waldeloir Rego, que estudou o assunto, tem um livro em três tomos sobre a capoeira de Angola, que é uma beleza. Descreve razões, princípios e origens da capoeira. E o ritual é uma dança meio guerreira, com música feita por berimbau e pandeiro com coro de cobra. O samba de roda, principalmente, me marcou muito. “Dois vinténs pra cada moça/ô, para cada moça” (canta). Dentro da Cidade da Bahia, você chegava ali quando apareciam aqueles barcos com mercadorias para o Mercado Modelo, na rampa, ali saíam sambas assim, na brincadeira. Outro respondia com uma puxada. Quando um dizia “Dois vinténs para cada moça”. O outro respondia: “Ô pra cada moça”, a morena saía requebrando. E alguém falava o nome dela. Esse era o samba de rua de Salvador, o samba de roda.
Brasileiros – 2 de Fevereiro é quase o hino oficial da Bahia…
D.C. – (risos) Sempre gostei muito de ver o mar da cidade mesmo. Da parte alta, eu olhava para ver o Bonfim, passava perto do Elevador para ver o mar e a Cidade Baixa. Rapaz, aquilo me dava uma paz que só vendo. Quando ia para a Barra, aproveitava para ver o mar pelo caminho, até chegar no porto, onde o mar ficava mais perto. Aí, vinham Ondina, Rio Vermelho, Amaralina. Itapuã era considerada um sonho de lazer, ficava a 30 km do Centro e era considerada um ponto que fornecia peixeiros para Salvador. Eles traziam a pesca sempre de jegue. O sujeito montava e colocava o peixe dentro do caçuá. Por tudo isso, fiz 2 de Fevereiro.
Brasileiros – O que está por trás de História de Pescadores?
D.C. – Nessa música, eu fiz uma história de pescadores dividida em cinco partes, que começa com “Minha jangada vai sair pro mar”, que se canta muito em colégio até hoje. A saída dos homens, depois o cotidiano do pescador e por aí vai. As músicas têm um segmento mostrando não só a rotina como outras questões como a crendice popular que marca a vida dos pescadores na Bahia. Então, procurei juntar tudo isso e, no fundo, é um retrato do homem do mar e dos pescadores localizados em Itapuã, que eu conheci bem.
Brasileiros – Vatapá, com sua letra maliciosa, veio de onde?
D.C. – É um samba que apenas faz referência a um tipo de música de louvação à Bahia, que vinha sendo feita por outros compositores profissionais anteriores a mim, que acabou ficando bastante popular. Inspirei-me numa canção que ouvia muito na infância. Não me lembro do autor ou da letra agora, mas sei que falava de muitos pratos. Então, decidi fazer uma caricatura, um esboço de como preparar esse prato tão apreciado na Bahia. Digamos que seja uma lição rápida de culinária, uma brincadeira, enfim.
Brasileiros – O samba-canção Só Louco é muito pessoal?
D.C. – Ao contrário do que possa parecer pela letra, não se trata de um estado de espírito meu. É uma coisa mais de poesia. A primeira interrogação que aparece é um charme da música, não acha? Realmente, a letra tem uma poesia mais elaborada, seguindo o que se fazia em samba-canção, um estilo mais limpo. Mesmo assim, acredito que não houve inspiração pessoal, é apenas uma letra apropriada a um gênero musical. Diria ainda que o romantismo com um pouco de ironia e graça.
Brasileiros – Maracangalha virou um hino de libertação, não?
D.C. – (risos) Essa foi composta em São Paulo, quando nos mudamos para lá, durante uma temporada em um clube noturno. Nesse período, Dori chegou a estudar no Colégio Rio Branco. Eu estava pintando um quadro que dava para a área de serviço e uma vizinha perguntou que música bonita era aquela que eu estava cantarolando. Era Maracangalha, nome de uma pequena cidade da Bahia que deriva de cangalha, usada em animais para puxar o carro de boi ou a carroça. A letra nasceu da história de um sujeito que, para fazer suas aventuras amorosas, sempre inventava para a mulher que estava indo para Maracangalha.
Brasileiros – O Samba da Minha Terra também reverencia a Bahia. Como ela surgiu?
D.C. – Pode-se dizer que é uma homenagem ao samba de roda que era feito em meu tempo na Bahia, principalmente no recôncavo e que chegava a Salvador, levado pelos negros. Mas creio que também se trata de um elogio rasgado ao samba de modo geral. Não tem uma história especial ou curiosa, nasceu mais da necessidade do mercado musical da época. Na ocasião em que fazia as minhas músicas de jovem, havia uma predominância de composições de sucesso de Ari Barroso, Lamartine Babo e outros. Eles faziam músicas de todo o tipo, mas havia uma divisão mercadológica, compreende? As músicas de Carnaval que predominavam a partir do final do
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