Remissão: O que estamos fazendo uns com os outros?

Marcia Tiburi analisa a onda de radicalismos que atinge o Brasil. Foto: Arquivo pessoal
Marcia Tiburi analisa a onda de radicalismos que atinge o Brasil. Foto: Arquivo pessoal

O tradicional mito do brasileiro cordial já não  dá mais conta de abarcar a complexidade do Brasil contemporâneo. Um País com multidões que saem às ruas, para gritar por seus direitos, mas também para silenciar os outros. Segundo Tiburi, é justamente nesse processo de silenciamento do outro que reside a essência do fascismo, que nada mais é do que a radicalização do autoritarismo. O sujeito autoritário tem medo do desconhecido porque não é capaz de manter relação com o outro, de se abrir para a alteridade, de pensar a diferença e com a diferença, e de assumir uma posição de dúvida. Mais do que uma atitude, o fascismo é também um sistema de conhecimento, que concebe o mundo como resolvido, produzindo sujeitos burros que, no sentido filosófico, são aqueles cheios de certezas, donos de verdades e incapazes de pensamento crítico. O burro pratica o mal banal cotidiano e, em tempos de incerteza e crise, é vítima da manipulação que fomenta o ódio e no limite produz o desejo de aniquilamento do outro. “A destruição do outro é a destruição da política e vice-versa”, num sentido ampliado de política experimentada diariamente, tanto na esfera pública quanto privada, que é o que nos permite viver juntos. O feminismo enquanto ética política seria, para ela, o pensamento capaz de reorganizar nosso modo de agir coletivamente, e o diálogo o método capaz de combater o fascismo. O diálogo como forma de resistência e exercício democrático. Aprender a dialogar com o fascista seria então a tarefa do nosso tempo, a mais difícil e a mais necessária para a defesa da democracia. A seguir, trechos da conversa com a Brasileiros sobre temas relevantes para o contexto político atual, que aparecem em seu livro.

Brasileiro cordial
Essas mistificações servem aos donos do poder, aos oligarcas, aos plutocratas, aos capitalistas, em suma às classes dominantes. Durante muito tempo, as classes desfavorecidas e exploradas deveriam acreditar nessas conversas mistificatórias que colam no senso comum porque são transmitidas pelas instituições de modo eficiente. Da Igreja à família, da moral à publicidade, todos discursam para inocular crenças no povo. A crença na identidade é uma das mais importantes, pois faz crer que as pessoas são melhores umas do que as outras, que existem verdades “naturais” no campo das sexualidades, do gênero, das raças, das classes. Quando falo da autocompreensão, refiro-me a um processo na contramão. Em vez de as chamadas elites (sejam econômicas, sejam estéticas, raciais ou sexuais) ditarem o que os outros devem ser, os grupos chamados de minorias passam a falar de si mesmos. Expressam-se, autorizam-se a pensar, falar, criar e, a partir daí, se organizam cultural e politicamente. Podemos falar de um Brasil polarizado, mas isso já é polarizar perigosamente. O Brasil é mais rico do que a lógica da polarização permite ver. Somos complexos. Se a televisão e os jornais hegemônicos dão notícia de dois lados, isso é o que eles querem mostrar (e talvez só o que queiram ver), mas estamos infinitamente mais fragmentados em nossas posições e, por mais que algumas posições sobressaiam, negar a complexidade que vemos neste momento é perigoso. As pessoas estão vivendo experiências complexas em relação a tudo, inclusive em relação à identidade que, hoje, é tomada de um modo diferente. De fato, a cordialidade nunca foi uma verdade, está escancarado que ela não nos serve, ninguém mais tem coragem de dizer “o brasileiro” como se falasse de uma essência. 

A intolerância
O capitalismo é um regime econômico, político e cultural que funciona como religião fundamentalista. Em torno do dogma do capital, ele mesmo intocável, sagrado e absoluto, se organiza um sistema de culto, culpa e expiação. Cultua-se tudo o que se refere ao capital, tudo o que se submete à forma mercadoria. Quem não pode obtê-la é culpabilizado e castigado (o vagabundo, sem “mérito”, que não participa das “vantagens” e bens do mercado e, no campo das aparências capitalizadas, fica excluído econômica e esteticamente das marcas, das ostentações). Quem se atreve a denunciá-lo, na qualidade de crítico, passa a valer como um ateu em um sistema de crenças. Quem duvida do capital ou Deus é um ateu. O pior tipo de ateu é esse que fala o nome de Deus, ou o capital, para denunciá-lo. Nesses contextos, a ideologia do capitalismo precisa naturalizar-se e o faz, muitas vezes, de forma bizarra. É a naturalização do preconceito que está na base do capitalismo – e dos seres humanos objetificados, transformados em coisas, marcados como aqueles que devem ser rebaixados aos fins do capital e da exploração ou que, no extremo, na condição de inúteis para o sistema, não devem existir. Seja porque não correspondem ao padrão estético, ele mesmo um padrão do capital, seja porque não correspondem ao padrão político. A agressividade e o ódio fascista são úteis aos fins do capital. O fascismo cresce nas crises do capital, quando o próprio medo é manipulado (ele mesmo transformado em uma mercadoria junto com a segurança) para eliminar aqueles que podem ameaçar o sistema.

A burrice
É uma categoria moral e cognitiva. Representa o esvaziamento do pensamento, emoção e ação. A ausência da dimensão da alteridade nos torna seres despolitizados, sem ética, sem reflexão, e sinaliza para o problema essencial do conhecimento, que é a relação com o outro. Todo o movimento do conhecimento é baseado no outro, seja o outro um conceito,  seja uma ideia, um objeto. Mas também pode ser uma pessoa ou um grupo. A falta de curiosidade sobre o outro é, muitas vezes, sinal de impotência subjetiva. Não quero dizer que todas as pessoas devam se interessar pelas outras, mas que o desinteresse pelo outro e a falta de curiosidade que nos impede de perguntar sobre ele podem ser sinais de que o outro está cancelado para nós. Toda relação de conhecimento é erótica no sentido de tender ao outro, de nos levar além de nós mesmos, por isso a paranoia é próxima da burrice, ainda que possa parecer inteligente, já que é tão organizada. 

O mal
Digamos que haja um espectro da burrice e que, nesse espectro, haja pessoas realmente embotadas, incapazes de compreensão. Há, no entanto, nesse espectro aqueles que sabem que é possível utilizar a ignorância em seu sentido negativo (não o sentido filosófico) para a mistificação. Esse último tipo é bem diferente do primeiro e, em geral o manipula. Nesse contexto, levar o último tipo ao pensamento crítico é impossível, pois ele lucra com a ignorância e precisa performatizar como um ignorante para convencer seus eleitores ou os crentes de sua igreja de que ele realmente professa alguma coisa na qual ele realmente crê. O pensamento crítico não é fácil, não está disponível, antes ele é barrado nas instituições, do Estado à Escola, da Igreja à Mídia, há um controle sobre o que se pensa e o que se diz e aquilo que se pensa e diz ameaça a ordem hegemônica, mesmo que essa ordem seja preconceituosa. A responsabilidade é um conceito perigoso porque implica o individualismo. Se pensarmos contudo, na responsabilidade como um dado coletivo, por exemplo, a responsabilidade sobre a democracia, a responsabilidade sobre os direitos, então, talvez possamos criar um outro paradigma de ação. No entanto, tudo vai depender de revoluções culturais. Atualmente, por exemplo, precisamos investir em cultura, mas naquele tipo de cultura que produz autonomia e o que vemos é investimento em indústria cultural para os fins do mercado.

As mídias
Em relação à internet, precisamos pensar em termos de leis, de regulamentação, inclusive de marco civil. Não podemos, nesse estágio em que democracia e autoritarismo estão tão próximos, prescindir de leis que promovam a democracia. No entanto, o que temos visto são leis que promovem o contrário sendo defendidas e ganhando terreno. Vide a aprovação da estarrecedora lei antiterrorismo. Obviamente que a mídia alternativa parece ser o único caminho do jornalismo neste momento. Talvez depois que tudo tenha vindo abaixo para a grande mídia, possamos refazer o campo midiático em sentido mais institucional. A regulamentação dos meios de comunicação de massa é urgente entre nós. Neste momento, só o povo pode expressar-se em sua presença. Já vivemos o golpe como procedimento desses poderes, um golpe contra o povo, contra a democracia. Estamos desamparados, temos apenas a nós mesmos.

O feminismo
Eu entendo que tenhamos urgências práticas, que são urgências éticas, mas não podemos imaginar que processos históricos, que levaram a resultados catastróficos socialmente, possam ser corrigidos em passes de mágica. Um processo de longo alcance implica longos prazos. O meu livro busca atuar no âmbito da reflexão que produz mentalidades. É um livro escrito com a intenção de combater o vazio do pensamento, como acontece com todos os livros, pelo menos com os livros de filosofia. De fato, não há medida que possa ser tomada apenas individualmente, mas precisamos de políticas e de uma ético-política geral que possa reorganizar nosso modo de pensar e agir. Eu confio que o feminismo seja essa ético-política.


A democracia
Não vejo que possamos sugerir outro regime que não o democrático. Tudo o que envolve mudanças no regime democrático de governo precisa ser pensado com muito cuidado e respeito pelo valor da democracia. Não vejo que haja apenas um esgotamento da representação, ela ainda pode nos ajudar tendo em vista o tamanho do Brasil e muitos outros aspectos econômicos e geopolíticos. Talvez pudéssemos pensar em alguma alternativa semi-direta. O povo falando mais, decidindo mais. No entanto, isso não poderia ser feito sem muitas mediações educacionais, éticas, comunicacionais. A democracia radical como a entendo é bem mais que democracia direta, é um projeto de governo e de ativismo que visa a real partilha do poder, inclusive se pensarmos ainda em termos de representação.


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