O que será de nós no Mercosul?

Iniciativas de integração regional têm sido levadas adiante em diferentes partes do mundo. A aliança entre países de uma mesma região geográfica pode assumir diversas formas e ter objetivos finais muito variados. Os países podem se integrar por questões de fronteira, para atividades e tarefas específicas, ou, como é mais frequente, por razões econômicas. Costuma-se entender essa integração como um processo voluntário em que países estabelecem uma crescente interdependência de suas economias. Para isso, acordam entre si suprimir gradualmente diversas formas de discriminação. As mais importantes alianças regionais tiveram início nos anos 1950, predominantemente protagonizadas por países europeus em iniciativas que conduziram à criação da União Europeia.

A primeira geração dos arranjos regionais é composta por acordos eminentemente comerciais, mas as experiências de integração vão muito além desses aspectos. No caso europeu, elas evoluíram ao ponto de os países abrirem mão de suas moedas nacionais para construir não apenas uma moeda única, mas também um conjunto de instituições para garantir seu funcionamento e a estabilidade do sistema. Um duro processo para os países participantes, com elevados e distintos custos políticos para cada um e para o bloco. Em todos os casos de integração, as economias ficam conectadas e as políticas nacionais têm impactos sobre os sócios e o todo. Sendo cada vez maior a interdependência entre os países, seus destinos individuais importam a todos.
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Ao escolher fazer parte de um esquema de integração, as nações devem definir, também, a medida e o formato da aproximação que desejam ter com os parceiros. Quase sempre, construir um arranjo econômico e/ou político com vizinhos ou países parceiros implica sacrifícios em várias frentes. O mais comum deles é a renúncia em proteger setores da economia que ficarão mais expostos à concorrência dos produtos elaborados pelos sócios. O produtor nacional, para competir, deve ganhar eficiência. O governo perde receita de tarifas. Mas, a princípio, os consumidores ganham porque os preços podem cair e a escolha deve ser maior. Ao longo do tempo, todos devem melhorar sua posição. Isso aprendemos nos livros básicos de economia internacional e tem sido a experiência real de muitos blocos econômicos.

Processos de integração aparecem, com frequência, como oportunidades de promoção de negócios e podem ser uma ferramenta para a promoção do desenvolvimento. Mesmo antes da industrialização na América Latina, lá pelo final dos anos 1940, percebia-se na criação de um grande mercado regional, um impulso para a industrialização das economias nacionais. Seria um caminho para diminuir a dependência, já que a pauta de exportações da região era concentrada em produtos primários, que nem sempre geravam receita suficiente para comprar fora os bens industrializados.

Quando eclodiu a crise do endividamento externo, nos anos 1980, a integração apareceu como uma alternativa para enfrentar as restrições de moeda estrangeira, pois permitiria ampliar o mercado regional e estabelecer um dinamismo comercial, sem o comprometimento de divisas – escassas pela ausência de crédito e pelo peso do pagamento da dívida. Além disso, como as negociações de abertura multilateral avançavam, as alianças regionais seriam uma forma de dar mais força aos blocos, pelos ganhos acumulados e pela coordenação nas negociações externas.

Nos anos 1990, multiplicaram-se arranjos regionais, ao mesmo tempo em que continuavam as negociações multilaterais. Isso resultou em uma superposição de acordos e regras, interligando os países em diversos e intrincados esquemas. Depois do sofrimento originado pelos programas de ajustamento estrutural impostos aos latino-americanos durante a crise da dívida, a integração surgia, também, como uma via para a diminuição da vulnerabilidade externa e da dependência em relação às nações mais desenvolvidas.

O Mercosul nasceu nesse momento. Foi criado em 1991, ano em que a Argentina iniciou o Plano de Conversibilidade, vinculando sua moeda ao dólar americano. O Brasil, afogado em taxas cada vez mais altas de inflação, esteve ocupado durante o ano seguinte em fortalecer a democracia pelo impedimento de um presidente com problemas de corrupção e só realizou sua reforma monetária a partir de 1994, como bem sabemos. Unir economias com políticas muito diferentes é uma tarefa quase impossível.

A ruptura do equilíbrio
O Mercosul chegou em hora apropriada e impulsionou uma grande ampliação do comércio entre seus quatro membros nos primeiros anos. Em 1998, mais de 35% do comércio externo da Argentina se realizava dentro do bloco, valor que passava dos 50% para o Paraguai e o Uruguai. Eram momentos bastante especiais na história das duas maiores economias do bloco: praticavam taxas de câmbio fixas o que significava que suas moedas eram mantidas fortes, recebiam investimentos estrangeiros e privatizavam setores importantes, e dependiam da entrada do dinheiro de fora para a estrutura funcionar. Muitos países em desenvolvimento, nos anos 1990, fizeram a opção do câmbio fixo, com abertura financeira para atrair capitais estrangeiros. Bons resultados foram alcançados, mas essa política não seria sustentável para sempre: moeda forte é estímulo a importar e o déficit nas contas de comércio deve ser financiado de alguma maneira. Assim como países asiáticos e bicontinentais – Rússia e Turquia -, o Brasil e a Argentina dependiam do ingresso de dinheiro de fora para manter a política em pé. Quando os capitais deixaram de vir, em decorrência de crises financeiras, ficou mais difícil fechar as contas. O Brasil mudou a política de câmbio em 1999, deixando o real se desvalorizar e reestruturando toda a política macroeconômica. Isso complicou muito a vida da Argentina, pois seus produtos ficaram mais caros para nós; e os investidores internacionais, já retraídos com medo do risco, saíram de nossos mercados. Com um problema político e institucional enorme, uma vez que o peso deveria, pela lei, ser livremente trocado pelo dólar e não havia dólares suficientes para honrar os compromissos – nem mesmo converter as poupanças das famílias que estavam depositadas na moeda americana – a crise de 2001-2002 foi como um terremoto econômico, político e, pior de tudo, social. A ruptura do equilíbrio anterior foi outro golpe duro para o Mercosul, que nunca mais recuperou o dinamismo da primeira fase.

Passados os anos, muita descrença paira sobre o projeto do mercado comum do sul das Américas. Em várias situações, ameaças ao comércio interno foram feitas. Entretanto, o bloco persiste, ainda que governos, setor privado e o mundo político se envolvam e invistam nele em velocidades e com perspectivas muito diferentes. Para os céticos, um bloco regional que nem sequer garante a observância de suas cláusulas comerciais básicas é um nada. Porém, existem um projeto e uma agenda de integração que, bem ou mal, caminham.

Recentemente, fomos instados a refletir, mais uma vez, sobre o futuro do Mercosul, devido a dois grandes acontecimentos: a aprovação pelo parlamento brasileiro da entrada da Venezuela como membro pleno e a reafirmação de uma forma peculiar de conduzir a economia na Argentina, cristalizada pelo episódio da demissão do presidente do Banco Central pela chefe do Executivo, Cristina Kirchner.

A importância desses fatos para o Mercosul é enorme. Por razões econômicas, mas também políticas. Para além de aspectos comerciais, o bloco tem em seus tratados constitutivos diretrizes muito específicas referentes ao compromisso democrático dos países membros, o que engloba a liberdade de imprensa e a garantia dos direitos humanos, só para mencionar os grandes temas.

Assim, surgem as primeiras críticas quanto à presença da Venezuela no bloco. Mesmo aceitando o argumento de que a Venezuela entra como um país do qual o presidente Hugo Chávez é um governante temporário – e que, portanto, é preciso discernir uma situação de governo com uma situação de Estado, resta o fato de que nem todas as regras democráticas presentes nos tratados do Mercosul constam de sua norma jurídica interna. Isso para não mencionar o fato de que o presidente venezuelano não parece pensar que esteja temporariamente ocupando o posto… Fica então a dúvida sobre qual será o grau de observância da Venezuela às regras do Mercosul, sejam elas da alçada que forem. A multiplicação, naquele país, de episódios de ataque à liberdade de imprensa, de mudanças nas regras do jogo político e desrespeito aos direitos humanos deverá ser um foco de inquietudes para os integrantes do bloco.

Existem também aspectos positivos vinculados à entrada da Venezuela. O principal deles é a ampliação do mercado regional e a presença de um grande produtor de energia. A Venezuela importa cerca de 70% do que consome, portanto há inegável potencial de vendas para eles. O bloco todo ficará maior e mais forte.

Na arena puramente econômica, importa bastante a elaboração e a condução das políticas pelos sócios. Por exemplo, mesmo cumprindo as tarifas de comércio conjuntas, se um sócio desvaloriza sua moeda, evidentemente, será capaz de oferecer seus produtos por preços inferiores aos demais. Esse é um meio discriminatório de ampliar a fatia no comércio do bloco. Da mesma maneira, um sócio que tenha um compromisso frouxo com a estabilidade de preços pode se beneficiar dos ganhos da união, sem contribuir com sua parcela de sacrifício pela disciplina do conjunto, condição básica para que a integração se consolide. É certo que as discrepâncias entre as políticas macroeconômicas do Brasil e da Argentina têm sido um fator crucial na crise.

É uma perda para os quatro países membros fundadores do Mercosul as idas e vindas e políticas discriminatórias, levadas adiante pelos dois últimos governos argentinos. O desgoverno na política econômica e as relações entre o governo e a autoridade monetária transcendem as questões técnicas para se tornar objeto político da maior importância. Contrariando as etapas da agenda de integração, cada dúvida que paira sobre a confiabilidade dos índices de preços ou sobre o cumprimento dos estatutos de governança econômica estabelecidos entre o Governo Federal e o Parlamento para o funcionamento do Banco Central é um ataque que se faz também ao compromisso democrático do bloco. Faz muita diferença o grau de previsibilidade das políticas econômicas e a estabilidade das regras.

Que será, então, com o governo Chávez estabelecendo diferentes taxas de câmbio, restrições sobre o comércio, para não repetir os exemplos de violação aos direitos democráticos da sociedade?

O Mercosul não morreu e tampouco está agonizante. Ele sofre como paciente de médicos esquizofrênicos. Os grupos técnicos continuam a trabalhar, o setor privado opera com instrumentos comuns e existe um discurso afirmativo dos governos nacionais em relação a sua defesa. O grau de esquizofrenia desse discurso é uma questão aberta, já que os governos atentam contra o bloco de tempos em tempos e os comprometimentos maiores para avançar na integração parecem de difícil viabilidade política.

Para seus defensores, os benefícios de retomar o projeto integracionista são claros: maior poder nas negociações multilaterais, menos vulnerabilidade perante as reversões da economia mundial, construção de redes de cooperação e solidariedade e ainda muitos outros.

*Economista, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo


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