Só o rock “satânico” dos Rolling Stones, somado a uma das mais pesadas chuvas de que se teve notícia em São Paulo, bateu o estrago provocado involuntariamente por Sua Santidade, o papa Bento XVI. O sonho de milhares de pessoas que estiveram no Estádio do Pacaembu no verão de 1995 transformou-se no pior pesadelo já vivido por seu Miguel.
“Aquele show arruinou o gramado do estádio. Levou seis meses para recuperar.” O gramado do Pacaembu também foi destroçado em maio de 2007, pelos milhares de fiéis que assistiram à missa papal. De férias, seu Miguel acompanhava, tranqüilo, o culto pela tevê. De repente, deu um pulo do sofá. “Não é possível! Não cobriram o gramado!”
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Seu Miguel correu para providenciar os “primeiros socorros”. Quando entrou no estádio, nem precisaram perguntar. Já chegou dizendo: “Eu vi. E tá feio”. Seu Miguel – apelido de quando morava em São Miguel Paulista, bairro da zona leste da cidade -, na verdade Antônio Geraldo Luiz, pediu a Aléssio Gamberini, o diretor do Pacaembu: “Quinze sacos de semente de grama de inverno. É o único remédio. O único que resolve”. Depois, uma manhã inteira de silêncio, rastelo na mão das sete ao meio-dia… Um mês depois, e lá estava o tapete verde brilhando debaixo da água dos bicos de irrigação.
Depois de tantos castigos, o gramado do Pacaembu está passando por uma reforma geral – a primeira em 20 anos. E seu Miguel, 58 anos – 38 dos quais cuidando do gramado -, se prepara para a reabertura do estádio. “Ele volta. O seu Miguel já faz parte do patrimônio, da nossa história”, garante Aléssio Gamberini, o diretor do estádio.
O gramado do Pacaembu, considerado “a casa” da Fiel, a torcida do Corinthians, já teve épocas de agüentar três partidas por domingo (sim, as três pela Série A do Campeonato Paulista!). E foi “crescendo” em altura ao longo dos anos, tamanha a colocação de areia e reposição de grama. Assim, em agosto, decidiu-se pela reforma de seu sistema de drenagem (que tem 47 anos) e também de irrigação, que será feita após o rebaixamento do campo ao nível original, junto à linha da pista de atletismo. Em fevereiro, os novos “tapetes” verdes já deverão ser desenrolados sobre a base de pedriscos e areia lavada, para a grama “pegar” até meados de março.
Timidamente, o jardineiro confirma que quer seguir seu trabalho. “O pessoal daqui diz que, quando eu não estou, a grama sente a minha falta…”
Seu Miguel tinha 20 anos quando chegou da cidade mineira de Lagoa Dourada. Depois de começar lavando banheiros no estádio, passou a jardineiro responsável pelo gramado do Pacaembu em 1969, quando foi chamado para assumir o posto de titular, “porque era da roça”. Nesses quase 40 anos de Pacaembu, seu Miguel casou-se com Raquel Alves Luiz, com quem teve os filhos Ramalho (que está há dez anos no Japão e liga todo mês, sem esquecer de perguntar do Corinthians para o pai santista), Raílda, Josélia e Joel. Em casa, o espaço é pequeno, só dá para plantas em xaxins e vasos. Cuida de samambaia de metro, lírio da paz, flor de maio e comigo-ninguém-pode macho e fêmea (“para tirar mau-olhado”).
Conversando ali, na beira do campo, seu Miguel concorda que cuidar do verde é um dom. “E a beleza que se vê é resultado de tudo o que a gente faz com amor, que faz porque gosta, né? Já trabalhei seis meses sozinho, aqui. Eu, a grama e o silêncio.”
Buracos, e buracos “imaginários”
O futebol brasileiro passou pelos olhos do seu Miguel ali, pertinho. Jogos inesquecíveis, como o Santos perdendo (“roubado”) o título do Campeonato Brasileiro para o Botafogo no 1 a 1, em 1995. Jogadas correm pela memória, como a de Edílson, da Era Parmalat do Palmeiras, “levando todo mundo desde o meio do campo, e olha que não sou palmeirense”, no 4 a 1 sobre o Corinthians.
E Pelé? Seu Miguel, privilegiado, acompanhou tudo do maior jogador de futebol do século. Lembra de quando Pelé o cumprimentou, dizendo: “E aí, patrão?!” Seu Miguel até olhou para trás (“Eu? Patrão?”), mas era com ele, sim. Pelé, “muito simpático, gente fina”. Como o governador Mário Covas, que uma vez até pediu um cigarrinho.
Todo dia, “e muito sábado, domingo, feriado”, seu Miguel esteve a postos no gramado do Pacaembu às 7 da manhã (os bicos de irrigação são acionados por computador, já às 6 da manhã, para “tirar o sereno, aquele branco, senão o sol queima a grama”). O trabalho dos jardineiros, seu Miguel e três auxiliares, é repassar todo o gramado, procurando falhas. A irrigação é acionada novamente às 6 da tarde e à meia-noite.
Grama de inverno, grama de frio
No frio, até “se cobria” a grama com areia. “Agora nem é preciso, porque não tem mais inverno…” Mas as sementes são plantadas com areia, depois se joga terra com adubo “e aí a grama vem”. E, sim, existe a grama de verão, que é mais larga. “A grama batatais é mais forte. Antigamente era só a batatais. Mas os jogadores reclamam muito. Dizem que coça a perna. Então, agora é a bermuda. Boa, fininha, mas fraca. E sabe quem trouxe as sementes deste gramado todo? O Telê Santana. Ele me falou: ‘Experimenta.’ É essa que será retirada.” Seu Miguel mantinha seu “viveiro” atrás do gol do tobogã (uma das arquibancadas do Pacaembu), de onde eram retirados os pedaços para fazer as emendas, tapar os buracos.
Buracos, que às vezes “nem têm”, como seu Miguel conta, rindo: “Aquele do Vampeta, quando ele machucou a perna (ainda jogando pelo Corinthians), eu nunca achei… Mas a gente ouve e fica quieto, né?…”
Nem ali, “onde goleiro pisa não nasce grama”, se vêem falhas. Junto às traves, seu Miguel já encontrou muito alho, “quando os visitantes vêm da Bahia”, diz ele. “No dia seguinte, é alho e um monte de fitinha amarrada na rede…” Aliás, “o pessoal da Gaviões sempre liga para lembrar: ‘Não coloca a preta, não, seu Miguel”. O Corinthians nunca joga com rede preta.
Grama baixa, contra pernas-de-pau
As listas no verde são percebidas em tons diferentes pelo sentido de vai e volta das máquinas que cortam a grama. Seu Miguel acredita que muito desenho atrapalha os jogadores. Ainda assim, os auxiliares às vezes fazem um quadriculado, esticando barbantes, pintando a grama com tinta própria na área do goleiro, no círculo do meio do gramado.
No calor, corta-se mais a grama, ensina. As máquinas podem ser ajustadas para alturas determinadas. Os jogadores – pelo menos os não “pernas-de-pau” – gostam da grama baixa, onde a bola corre mais, porque a técnica é favorecida. Mas a grama alta pode ser arma contra os adversários, que não conhecem os outros macetes da casa.
“O Corinthians ia enfrentar o River Plate (pela Libertadores). Estava lá embaixo, sentado do lado do Ricardinho, e ele me falou: ‘Abaixa a grama’. Eu avisei: ‘Argentino gosta de grama mais baixa’. No fim, o Corinthians perdeu de 3 a 1”. Geralmente, a grama alta atrapalha o visitante. “Contra o Grêmio, o Luxemburgo queria grama alta na Vila Belmiro, para favorecer o Santos. É porque a bola pára mais.”
Também há os técnicos que querem a grama bem molhada. “O João Avelino, no Corinthians, queria grama encharcada para enfrentar o Grêmio. Daí, Deus ainda mandou aquela chuva! Lembro bem do Jardel, fazendo dois gols. O Corinthians perdeu de 3 a 0.”
Não se vê mais jogador de brinco e correntinha, proibidos por regulamento como proteção ao próprio atleta, mas o gramado do Pacaembu já escondeu muitos “adereços”. Ernesto Suzuki, um dos auxiliares do seu Miguel, achou um pivô perdido do zagueiro Marcelo Djian, do Corinthians, e foi até o Parque São Jorge devolver.
Sapo? Bom, seu Miguel nunca viu. “Só se tiverem enterrado bem fundo…”
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