O reino dos Struldbruggs

No clássico da literatura infantil, As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, o capitão Lemuel Gulliver chega à ilha de Luggnagg e se depara com uma tribo de imortais, os Struldbruggs. O fato deixa-o extasiado. “Felizes os que têm o privilégio de não morrer; a quem a ideia da morte não intimida, não enfraquece, não quebra” – anuncia o capitão. Até que um dos habitantes esclarece que longe de serem sábios e serenos, os habitantes da ilha não passam de um bando de pobres coitados. Descreve-os como sendo “semelhantes aos mortais até os trinta anos, depois caíam pouco a pouco em melancolia, sujeitos a todas enfermidades, fraquezas e misérias da idade, além de maldizer a sorte e se queixar da natureza que lhes recusava a doçura de morrer”. A fábula, cruel em sua essência, traduz um estado de vida vegetativa a que milhões de pessoas estão sendo submetidas, justamente numa época em que o tema qualidade de vida tem sido exaustivamente debatido. Acontece que o foco das discussões, notadamente quando se trata de políticas públicas, está voltado para questões relacionadas à longevidade e não necessariamente qualidade. A expectativa de vida da população mundial tem crescido de forma contínua. No primeiro milênio da Era Cristã, a idade média era de apenas 25 anos. No período da Revolução Industrial subiu para pouco mais de 30 anos e no início do século XX, nos Estados Unidos e nas regiões prósperas da Europa, chegou aos 50. Atualmente, segundo a Organização das Nações Unidas, já beira os 68 anos; em 2050 poderá chegar a 76 e nos países ricos aos 83 anos. No Brasil, dados do IBGE indicam que a expectativa média é de 72,6 anos. O que permanece estática é a visão antissocial e meramente econométrica do passado.

O assunto torna-se mais instigante quando um expoente do neoliberalismo dos Estados Unidos, o economista e filósofo Francis Fukuyama, ideólogo do governo Reagan e que encarna a face mais conservadora do capitalismo mundial, em seu livro Nosso futuro pós-humano, se mostra preocupado e cético. Segundo Fukuyama, a revolução biotecnológica não basta por si só, afinal, “derrotar a doença para simplesmente prolongar a vida pode não ser uma boa coisa”. O importante é que a vida seja longa e com qualidade. A lógica para alcançar esse objetivo, diria Nelson Rodrigues, é “óbvia e ululante”. Qualidade de vida requer hábitos saudáveis, comida à mesa, lazer, acesso a saúde, educação, trabalho e salário digno, que, por sua vez, resultam em autoestima elevada, felicidade, prazer e disposição para o trabalho. Acontece que neste parâmetro, trabalho, as relações não são assim tão amistosas.

O anticlímax, segundo alguns especialistas, está nas fórmulas e meios com que certos gestores insistem em impor suas regras e modelos. Para o consultor em Gestão Empresarial, Thomaz Wood Jr., professor e doutor em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), certos manuais acabam se transformando em verdadeiras armadilhas para as empresas – são os chamados groupthink. O termo, cunhado pelo sociólogo Willian H. Whyte na década de 1950, faz menção aos processos em que os dirigentes impõem um pensamento único e se mostram incapazes de avaliar, observar e aceitar qualquer alternativa diferente. Wood Jr. cita o professor Warren Bennis, decano da Universidade da Califórnia, EUA, ao afirmar que boa parte desses dirigentes perdeu o contato com a realidade. “O problema não está no que eles chamam de ‘maçãs podres’, mas na ambição pessoal em criar um sistema fechado, uma cultura corporativa, autocentrada e desprovida de qualquer percepção.”

É comum atribuir à inércia funcional o papel de vilão principal pelo débâcle organizacional das empresas. O salvo-conduto normalmente é um receituário recheado de mantras, regras e processos. Acontece, ainda segundo Wood Jr., que para implementar essas ferramentas muitas organizações costumam exercer uma enorme pressão junto aos empregados, inclusive, sob ameaças, neutralizam ou expulsam aqueles considerados mais rebeldes. “Algumas chegam a desenvolver sofisticados sistemas de autocensuras para inibir qualquer tipo de visão crítica. Com isso, os ambientes de trabalho tornam-se silenciosos, caracterizados pelo cinismo e medo de expor posições que contradizem a visão oficial”, afirmou. As consequências, segundo o professor Gary Hamel, da London Business School, Inglaterra, são transformar pessoas em robôs, roubando a imaginação, a criatividade e a paixão pelo trabalho. Em recente entrevista ao jornal El País, da Espanha, Hamel afirmou “que a maioria dos gestores costuma se perguntar: como posso conseguir que os empregados contribuam com os objetivos dos meus negócios?. Mas a pergunta deveria ser: como construo uma organização que motive as pessoas a oferecer sua criatividade e paixão todos os dias”.

Em um sem número de empresas, a pressão, a cobrança desmedida e sem limites por resultados têm contribuído para o estresse, a fragilização da autoestima, o desequilíbrio emocional e a qualidade de vida em condições deploráveis. As consequências podem ser avaliadas pelos ambientes lotados nas salas de espera dos consultórios de psicólogos e médicos psiquiatras. Célio Pinheiro, psicanalista e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba (PR), acredita que a modernidade tem provocado o que etnólogo francês Marc Augé chamou de “não lugares”. São ambientes vazios de história, de sentimento ou identidade comum, onde as pessoas se sentem desvalorizadas, perdem a sensação de importância, de existência e identidade com o local. Não raro, deixam de estabelecer qualquer tipo de relação significativa com o mundo que o cerca. “Tudo isso são perdas e as perdas estão na raiz da depressão. Será por isso que depressão é tida como o mal século?”, indaga Pinheiro.

Para o juiz Amarildo Carlos de Lima, do Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina, Florianópolis (SC), o tema qualidade de vida perpassou os consultórios para chegar às barras da lei sob a forma de assédio moral. Segundo o magistrado, o próprio TRT catarinense vive o problema emocional da pressão e da cobrança exacerbada. “Existem situações em que os secretários de audiência abdicam da função pelo excesso de trabalho e cobrança. Alguns servidores estão tão traumatizados que basta ter o nome lembrado para substituir um colega e são capazes de entrar em pânico”, afirmou Lima à Brasileiros. A dificuldade no julgamento de casos envolvendo assédio moral é encontrar um diagnóstico que prove esses excessos de forma explícita. “Se um cortador de cana, o chamado boia-fria, morre de exaustão física, o fato pode ser facilmente detectado. Mas certamente será difícil reconhecer a situação de ‘exaustão psicológica’”, explicou o juiz. Para ele, o fundamental é que as estruturas empresariais estejam voltadas às pessoas, pois caso contrário “corre-se o risco de vivermos numa sociedade de doentes, onde o dano moral irá resultar de uma mutação maligna do gene até então conhecido como qualidade de vida”.

Atualmente, já há uma conscientização coletiva de que nada poderá deter os avanços provocados pela revolução tecnológica. Negar o óbvio é uma missão não só suicida como pouco inteligente. No entanto, é preciso equilíbrio e bom senso para perceber que essas mudanças se dão por meio de pessoas, de gente e não por softwares. Se assim fosse, bastaria convocar um batalhão de robôs e tudo estaria resolvido. Nestes tempos modernos, a necessidade em tornar uma empresa cada vez mais competitiva a coloca frente a frente com uma realidade até então intangível, que deixou de ser apenas um modus operandi do processo para assumir a condição de garantidora de sua própria sobrevivência. Afinal, questiona Fukuyama, “irão as pessoas permanecer física e mentalmente vigorosas durante esses tempos de vida prolongados ou a sociedade ficará cada vez mais parecida com um sanatório gigante?”.

*Jornalista em Curitiba.


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