Mitt Romney é santo. Um dia será Deus em um planeta do Universo. Sua mulher, Ann Davies, terá centenas de milhares de filhos (além dos cinco que gerou nesta Terra). Toda essa população será governada pelo patriarca. No entanto, apesar da convicção nesse futuro majestático, Mitt quer ser agora presidente dos Estados Unidos da América. É candidato ao cargo pelo Partido Republicano nas eleições de novembro próximo.É difícil explicar tal situação. Os americanos, por exemplo, não entendem nada dessa história. E olha que a religião que gerou a crença nesse plano eterno nasceu nos Estados Unidos. A Church of Jesus Christ of the Latter-day Saints (no Brasil, Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias) ou mórmons – como são mais conhecidos – tem origem em Nova York. Dizem que seu fundador, Joseph Smith, começou a receber instruções de um anjo em 1820, indicando a localização de um livro de ouro enterrado a oeste do Empire State. A obra contém – acredita-se que esteja agora em um cofre no Estado de Utah – um novo evangelho, complementar ao velho e ao novo evangelhos.
Está lá no livro de ouro essa história de ser santo e de um dia tornar-se Deus em um planeta qualquer. Ou melhor: acredita-se que esteja no novíssimo evangelho essa proliferação das deidades. Os mórmons dizem que não é nada disso. “Essa conversa de cada um de nós receber um planeta após a morte e virar Deus é ridícula. Trata-se de uma distorção e caricatura sensacionalista das crenças dos mórmons”, diz Joanna Brooks, que mantém um blog em defesa da doutrina mórmon. “Você pode sentar durante um mês inteiro em uma igreja, aos domingos, e não ouvir uma única referência sobre essa coisa de planetas.”
Talvez. Quem sabe se naqueles domingos o assunto era outro na cabeça do apóstolo que comandava os serviços. Ou a pessoa sentada na igreja não estivesse prestando muita atenção. O fato é que no site Mormonism Research Ministry (Ministério de Pesquisas sobre Mormonismo) – que cita Joanna pelo nome – são anotadas várias referências sobre o aquinhoar de planetas e deificação de pessoas após vida pia entre mórmons. Esse instituto de pesquisas, diga-se, é apologista da religião.
Ressalte-se, por exemplo, o que disse o 12o presidente da congregação, Spencer W. Kimball, em nada menos do que três manuais doutrinários dirigidos aos fiéis: “Nós nos educamos no campo secular e no campo espiritual para que um dia possamos criar mundos, pessoas e governá-los”. E mais: “Cada um de nós tem possibilidade de criar um reino sobre o qual iremos presidir como reis e deuses. Você tem de se desenvolver e crescer na habilidade, poder e merecimento para governar esse mundo e seus povos”. (Nota da Redação: Citação no discurso The Matter of Marrige, feito em 22 de outubro de 1976, no Instituto de Religião da Universidade de Utah.)
Assim como essa, existem várias demonstrações claras de que o negócio de virar Deus em um planeta qualquer é mesmo coisa séria. Mas, e daí? Qual é o problema de uma pessoa crer que um dia poderá ser Deus em um planeta só seu? Afinal, todas as religiões têm lá suas esquisitices. Israelitas estão proibidos de comer lagosta. Espíritas acreditam que almas venham coabitar o corpo de um médium, quando está em transe. Católicos apostólicos romanos acham que o Papa é infalível. Hindus consideram vacas sagradas, pois podem ser a reencarnação de alguém querido. Muçulmanos acham que ao se martirizar irão a um paraíso onde receberão 72 virgens. E por aí vai…
“O problema de Mitt Romney não é que ele é santo agora e será Deus amanhã. O problema de Mitt é que ele não fala sobre sua religião – que é bastante incompreendida – e nem de sua fé”, diz Michael Skov, marqueteiro político ligado ao partido republicano em Washington. “Mitt fez um bom discurso sobre o tema durante sua campanha nas primárias republicanas de 2008. Depois, já nessa temporada, fez menções sobre a questão. Não basta só isso. Ele teria de reafirmar, martelar na cabeça dos eleitores que não vai deixar suas crenças religiosas governarem o país. Que ele sabe separar Estado de Igreja e será um presidente respeitador de todas as religiões. É o que fez, com certo sucesso, o candidato John Kennedy, em 1960. Ele era católico e havia muita reserva do eleitorado sobre essa questão. Não se aceitava um católico na presidência. Dizia-se que o presidente americano não poderia ficar sob a tutela do Papa, que é quem comanda todos os católicos. Kennedy conseguiu mostrar que iria governar de modo laico”, diz Skov.
É virtualmente impossível para Romney ensinar direitinho a doutrina mórmon para os americanos. Ele não é Deus, ainda. Sequer está conseguindo explicar convincentemente seu plano econômico para a Nação. Mas a constituição dos Estados Unidos garante explicitamente o direito ao culto. Mesmo que esse renda homenagens a Satanás. Os primeiros colonizadores britânicos a se estabelecerem no território saíram da Inglaterra, fugindo de perseguições religiosas. Os puritanos acreditavam estar criando um novo mundo, uma nova Jerusalém. Mas eles mesmos eram intolerantes com as crenças alheias. Tanto que eram considerados insuportáveis no Velho Mundo.
Depois deles, gente de todas as denominações seguiu o mesmo caminho e foi aportar em um país um tanto esquizofrênico: garante, ao pé da letra, direitos religiosos, mas ao mesmo tempo cada grupo não apenas condena crenças diferentes da sua, como faz força para negar a presidência ao “infiel”. “Aqui, quem não é cristão de uma alguma das maiores denominações está condenado a, no máximo, ser eleito ao Congresso”, disse, acertadamente o guru marqueteiro republicano Karl Rove, considerado uma das maiores sumidades em mandrakarias políticas.
Mórmons juram que são cristãos. Mas há dúvidas quanto a isso entre os americanos. Para o Senado, por exemplo, dá para sonhar – como assegurou Rove. O presidente do Senado, Harry Reid (democrata por Nevada), é mórmon. Nem todo mundo sabe, mas até que a seita viesse à baila com Romney, quase todo mundo desconhecia o fato. E, atente-se para o detalhe de que Nevada é um Estado repleto de gente da mesma crença. Não é tão difícil ser aceito por aquelas bandas.
“Como pode ser cristão alguém que acredita que um dia será Deus? Alguém que se acha equivalente ao Todo-Poderoso é, segundo a doutrina cristã, um pagão. Judeus, cristãos e muçulmanos têm como dogma a ideia de que só há um Deus”, diz o reverendo Timothy Cantwell, da União Evangélica Americana. Ele, republicano roxo do Estado de Kentucky, adianta que não vai votar em ninguém. “Não suporto Barack Obama, acho que ele está acabando com o país e quer o socialismo. Mas não posso votar em alguém que acredita ser santo e um dia será Deus”, garante o bom reverendo.
Sorte de Mitt. Se os seus opositores forem tão comedidos como o reverendo do Kentucky, o candidato republicano corre apenas o risco de perder as eleições. Poderia ser pior. Pegue-se o exemplo do próprio Joseph Smith, fundador da LDS (Latter-day Saints). Em 1844, ele concorreu à presidência dos Estados Unidos. E, ainda em campanha, virou Deus em seu próprio planeta. Foi morto por uma turba enfurecida na cidade de Carthage, Illinois.
The Book of MorMon, musical que conta a história de jovens que viram missionários em Uganda, é sucesso na Broadway
Salt Lake City, no Estado americano de Utah, é tão imaculadamente limpa que, talvez, seja possível realizar uma neurocirurgia em plena calçada. Nesse caso, o perigo de infecção poderia ser mínimo. Imagine-se então que dois jovens locais tenham saído da cidade para um trabalho missionário mórmon em uma vila miserável em Uganda. Um fim de mundo onde os homens nativos anunciam a toda hora que estão com o escroto repleto de vermes. Que tal uma situação dessas para exemplificar a expressão “choque cultural”?
A situação descrita não é nada inverossímel. Milhares de jovens mórmons são mandados à missão aos confins da Terra. O difícil, no caso, é achar graça nessa proposta. Não só graça, mas hilaridade que arranque gargalhadas.
Pois é justamente essa a qualidade e o feito conseguidos pela dupla de autores Trey Parker e Matt Stone em seu musical The Book of Mormon. Sucesso absoluto na Broadway desde 2011, a peça vem amealhando todos os prêmios de teatro e as bilheterias mais cheias do pedaço. E, pelo visto, vão continuar em longa carreira, já que existe fila de espera de até dois meses para ver o espetáculo sem passar pelas mãos ladras dos cambistas.
Parker é aquele famoso pelo humor cru e juvenil (no bom sentido) da série de desenhos animados South Park. Já Stone mostrou sua capacidade com outro musical, Avenue Q, onde usou marionetes do estilo Vila Sésamo, para entreter plateias bem mais adultas do que as que assistiam ao programa infantil.
Fazer piada com mórmons não é tão difícil. Mas a proposta não é bem essa. Ali poderiam estar dois jovens evangélicos ou católicos. O humor, ainda que nigérrimo, vem do fato de dois fiéis do mundo industrializado irem à caça de conversões em um território dominado por um senhor da guerra tirânico e assassino. Um local onde os nativos- infectados pelo HIV e outras pestes (vide os vermes escrotais) não têm nenhuma fé em um Deus que os destinou tantos infortúnios.
É o embate entre o Deus civilizado e os diabos da vida no terceiro mundo. Fosse um relato em filme alemão, a coisa desabaria para o drama. Mas, como é feita por ente de cartum e marionetes, fica tudo na base da comédia de costumes.
É claro que em sendo um musical – mesmo um escrito pelo sujeito do South Park – sempre há o casal romântico. O batismo mórmon feito pelo missionário em uma jovem africana, nota-se, teve mais do que um mergulho n’água. Mas, no fundo, esse é mesmo um musical à moda antiga. Daqueles que fizeram a fama da Broadway. Como lembrou o crítico teatral do jornal The New York Times, trata-se de uma lembrança de clássicos da dupla Rodgers and Hammerstein, icônicos autores de sucessos como O Rei e Eu e A Noviça Rebelde (sucessos vistos nos cinemas brasileiros). Só que The Book of Mormon está no terceiro milênio, com pegada dirigida ao público do YouTube e Facebook, embora não só para eles. Parker e Stone, porém, têm talento e inteligência suficientes para caminharem firme na corda bamba sobre o abismo das baixarias. Aqui e ali existem uns vermes nas partes baixas, mas isso é apresentado sem provocar náuseas.
The Book of Mormon é, segundo a crítica especializada, o melhor musical a cair nos palcos da Broadway nas últimas décadas. Até os mórmons – que têm feito peregrinações ao Eugene O’Neill Theatre – concordam e saem às gargalhadas.
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