Aeroporto de Guarulhos, São Paulo, terça-feira, 23 de agosto de 2011, 8h30, 12 ºC. Wellington Canova é um dos muitos engravatados na área de desembarque internacional segurando uma folha de papel tamanho A4, onde se lê o nome de um passageiro em letras grandes, abaixo do pequeno logotipo da empresa para a qual trabalha. Wellington só sabe que o passageiro que espera é um alto executivo de um banco americano e deve estar acompanhado por mais duas pessoas. Quem o vê parado ali, sozinho no saguão do aeroporto, jamais imagina o que aconteceu na vida desse paulistano nos últimos dez anos. Wellington é um dos poucos brasileiros que participaram do trabalho de resgate às vítimas dos ataques ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001. “Eu achava que era o único, para mim foi uma grande surpresa encontrar a Karina”, ele se refere à paramédica mineira Karina Constantin, que também atuou no trabalho de busca por sobreviventes. Ambos tiveram suas histórias contadas na terceira edição da Brasileiros, publicada em setembro de 2007, seis anos após os ataques.
Na ocasião, o ex-bombeiro e paramédico havia superado a síndrome de estresse pós-traumático que lhe tomou uma casa alugada, um carro próprio, dois anos e meio de vida e uma família formada por esposa e dois filhos pequenos. “Passei esse tempo praticamente vegetando. Perdi tudo o que tinha e ainda sujei meu nome.” Naquela época, Canova aguardava com ansiedade a decisão da Justiça a respeito de uma indenização trabalhista que tramitava nas cortes de Nova York. Aliás, ainda tramita, pois quatros anos decorreram desde então e ele ainda não viu a cor dos dólares prometidos. “Toda vez que meu caso é discutido, eles abaixam o valor.” De acordo com o brasileiro, os tribunais já tiraram 40% do montante inicial. “E se ao menos o dinheiro saísse. Meu advogado diz que sai em 2012. Bom, vamos ver…”, diz, com evidente falta de entusiasmo. Wellington lamenta ter demorado tanto para mover a ação indenizatória. “Só fui tomar a iniciativa em 2005, quatro anos após os acontecimentos.” Durante nossa conversa, ele quase não usa expressões como “atentado”, “ataque”, “terrorismo” ou qualquer outra que remonte à violentíssima realidade dos fatos, dando preferência a “acontecimentos”.
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Passada a pior fase da depressão, Wellington abandonou a profissão de paramédico e foi trabalhar primeiro como segurança e motorista particular, depois como caçador de recompensas para uma agência que presta serviços ao governo americano. “Virava noites procurando foragidos. Era um trabalho bem arriscado”, rememora.
O fim do tratamento com antidepressivos não significou, no entanto, o fim dos problemas de Canova. “O governo Bush vinha queimando, há anos, quase meio bilhão de dólares por dia com guerras e invasões, sem desconfiar que poucos meses à frente viria uma crise econômica que abalaria o mundo. Para piorar, veio esse Bloomberg (Michael Bloomberg, prefeito de Nova York) – que não faz nada – e ainda apareceu um monte de gente pedindo indenização, dizendo que ficou doente nos trabalhos pós 11 de setembro”, afirma. “Tem muita gente tentando arrancar dinheiro do governo. Oportunista e pilantra dá em todo lugar, mas esse tipo de coisa a gente não via em Nova York nos anos 1990. A coisa tá feia agora.”
Um segundo casamento seguido por outra separação, o abandono forçado da profissão de paramédico e a instabilidade financeira acabaram por trazer Wellington de volta a Pirituba, bairro da zona norte de São Paulo, onde viveu até os 13 anos, no dia 23 de novembro de 2008.
Após 20 anos em Nova York, tudo o que encontrou por aqui foi uma terra estranha e um amigo de infância. “Fui procurá-lo porque era praticamente a única pessoa que conhecia. Acabei me casando com a irmã dele.” Ele diz que o amigo, que virou cunhado, a atual mulher e a enteada formam quase a totalidade de seu círculo social no País onde nasceu. “Dei sorte. Se estivesse solteiro, não saberia aonde ir, o que fazer, muito menos como chegar em uma mulher.”
Como seu diploma de paramédico não é reconhecido aqui, retomou a vida no Brasil lecionando inglês, mas não guarda boas recordações dos dias como professor. “Dava aulas para comissários e pilotos de uma companhia aérea brasileira que havia estipulado um prazo de seis meses para que todos os tripulantes ficassem fluentes no idioma. O problema é que eles queriam aprender, mas não gostavam que eu corrigisse a pronúncia. Naturalmente, reprovei uns alunos e acabei conquistando alguns desafetos”, ri.
Durante cerca de um ano e meio, o ex-bombeiro ficou totalmente perdido. Chegou a cogitar carreira na Polícia Civil, profissão do pai, assassinado quando ele tinha 12 anos, mas esbarrou no idioma. “Tem muita palavra em português que nem conheço”. Acabou na área privada de transporte e segurança de executivos estrangeiros. “Só pego americanos”, resume. “Semana passada, passei três dias com o vice-presidente do Google.” Há um ano e meio no ramo, Wellington diz que só agora, dez anos após o atentado que tirou sua vida dos trilhos, é que as coisas parecem voltar a fazer sentido.
Quando questionado sobre se gosta do que faz, ele responde: “Ah… não muito. Mas é onde me adaptei melhor, e o mercado é bom. Tem muito executivo americano vindo ao Brasil. Trabalho todo dia”. Pensa em voltar para Nova York? “Claro. Eu vou voltar, só não sei quando”, prevê esse cidadão americano nascido em São Paulo. “Quando fui para Nova York, era uma criança. Lá, eu tive quatro filhos, estudei e fui treinado para trabalhar. Gosto mesmo é de ajudar pessoas em situações de risco e espero um dia poder voltar a atuar como paramédico”, afirma o homem que atualmente não pode nem ver sangue.
Aos 35 anos e bem longe de Manhattan, Wellington ainda não superou todos os traumas adquiridos há mais de três mil dias. “Não subo em prédio alto. Outro dia tive de levar duas clientes no topo do Edifício Itália e desisti no meio do caminho. Elas entenderam, mas passei vexame”, confessa. “Também não gosto de pontes. Quando passo por uma, tenho de me controlar. É como se tivesse certeza de que vai cair.” A lembrança mais corriqueira lhe ocorre quando vê um sapato feminino de salto alto. “Parece besteira perto das coisas horríveis, indescritíveis que vi. Mas aquele sapato me marcou demais. Só havia o pé dentro dele, sem nada da perna. O corte parecia feito a laser, era perfeito”, descreve. “Toda vez que olho para um salto alto vejo aquele pé.”
Canova diz que em relação ao seu envolvimento com os “acontecimentos” e suas consequências, ele carrega só um arrependimento: não ter filmado nada nas primeiras horas do trabalho de salvamento em meio aos escombros. “Via meus colegas com câmeras nas mãos e me revoltava. Gritava e brigava com todo mundo. ‘Isso aqui é uma tragédia, não fonte de entretenimento’, eu dizia. Hoje percebo que aquilo também fazia parte do trabalho. Por que não?” Ele acredita que se tivesse filmado, teria não apenas registrado um fato histórico “que jamais se repetirá”, como também poderia ter levantado algum dinheiro com os vídeos. “Não tem nada a ver com tirar vantagem da desgraça alheia. Se hoje temos imagens disponíveis, é porque alguém filmou. E não há nada de errado com o que foi feito.”
Ele se considera um cara de sorte por não ter sofrido nenhum tipo de sequela física, principalmente por não ter contraído nenhum problema de ordem respiratória, que acabou acometendo muita gente que trabalhou tanto no resgate de sobreviventes quanto na remoção dos escombros e posterior limpeza da área. “Mas tem algo que nunca vi ninguém falar a respeito e que devo dizer. Justiça seja feita, máscara de oxigênio tinha para todo mundo. E não era dessas que só cobrem o nariz e a boca, não. Era coisa boa, do tipo que cobre os olhos, com filtros de ar. Mas vi muita gente com a máscara pendurada no pescoço, como se fosse um colar”, revela. “De que isso adianta? Tinha muita poeira, fumaça e sabe-se lá o quê no ar. Passei os primeiros cinco dias procurando sobreviventes e só tirava a minha do rosto depois de ter me afastado uns seis quarteirões do Marco Zero. Acho que a máscara me salvou.”
Assim como nos anos anteriores, o programa para 11 de setembro de 2011 já está definido: vai ficar em casa e assistir pela internet à cerimônia em homenagem às vítimas, realizada no próprio Marco Zero, até que seja lido o nome de seu supervisor, morto na queda da segunda torre. “Em 2009, resolvi fazer algo diferente. Saí de casa e fui dar aula. Foi um desastre”, desabafa. “É um dia muito triste pra mim. Desde 2001 não passo um único dia na minha vida sem pensar em tudo o que aconteceu. Lembro de detalhes como se fosse ontem. Vão se passar cem anos e vou lembrar. E é claro que no dia 11 de setembro as memórias e emoções ganham força.”
Apesar de ter sido um dos heróis da tragédia, Canova diz que se sente abandonado pelo governo americano. “Quando precisaram de mim, estive lá. Reportei na hora e trabalhei muito. Passei os primeiros cinco dias sem dormir por duas horas seguidas. Quando precisei deles, tudo que recebi foi metade do meu salário por seis meses. Depois, viraram as costas. Tem gente que ficou bem pior. Sou jovem e tenho disposição, nem todos tiveram a mesma sorte.”
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