Os cinco personagens des-sas histórias de Sucesso, nome de um distrito de Tamboril, município de 26 mil habitantes no Sertão dos Inhamuns, no Ceará, saíram e voltaram ao Nordeste em épocas diferentes, mas têm uma coisa em comum em suas trajetórias: ao partir, eram pobres paus de arara que viajaram Brasil abaixo, em busca de uma vida melhor e, agora, são donos do próprio negócio, em sua própria terra. E de lá nunca mais pretendem sair. Voltaram a ter orgulho de ser nordestinos.
Toinho, que era padeiro em São Paulo, agora é dono do primeiro supermercado no distrito. Zacarias, também ex-padeiro e ex-faxineiro, ex-caminhoneiro, ex-cozinheiro e ex-chapeiro na metrópole, abriu uma lanchonete que serviu o primeiro hambúrguer em Sucesso. Se não faltar mão de obra, um novo problema na região, o ex-garçom Jairo inaugura neste ano seu posto de gasolina. O caminhoneiro Manoel, que saiu de Sucesso quando tinha dois anos, voltou para implantar um projeto de agricultura familiar integrada no sítio da família. Depois de aprender o ofício com uma prima em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, o cabeleireiro Antonio voltou para abrir o primeiro salão de beleza unissex de Sucesso, que agora já conta com cinco.
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Antonio, Manoel, Jairo, Zacarias e Toinho, como milhares de nordestinos nesses últimos anos, fizeram o caminho inverso das famílias de retirantes. Esse “Novo Nordeste” não só não expulsa mais seus jovens, por falta de escola ou de trabalho, como agora está trazendo de volta muitos dos que partiram, oferecendo oportunidades para os retirantes retornados na indústria, no comércio, na agricultura e na área de serviços. O melhor é ir até Sucesso para saber de perto o que está acontecendo na vida dessa gente.
Temos uns 300 km, quatro horas de viagem pela frente até o Sertão dos Inhamuns. Na saída de Fortaleza, pegamos a BR-20, que liga o Ceará ao Piauí em direção a Canindé. Cem quilômetros adiante, seguimos pela CE-257 para Santa Quitéria e Caridade, já entrando no sertão. Às margens da estrada, a paisagem continua desoladora como sempre nessa época do ano: é a vegetação esmaecida da caatinga provocada pela seca verde, quando ainda chove um pouco, antes do inverno, mas não o suficiente para o sertanejo arriscar o plantio.
Quase não se vê plantação em volta das raras casas. De novidade, só as antenas parabólicas e a energia elétrica chegando a todas elas. Há muitas placas advertindo para o gado na pista, mas também não se vê gado. Nas terras mortas sem serventia predominam a jurema, árvore de galhos pretejados, cheios de espinhos, e as palmeiras de carnaúba. Próximo às cidades, em compensação, não se vê mais caminhões transportando estudantes e trabalhadores, substituídos por modernos ônibus com ar condicionado.
Já quase chegando a Tamboril, perto do meio-dia, uma abelha picou minha orelha dentro do carro. Como tenho alergia ao bicho, e sei que preciso tomar uma injeção anti-histamínica no prazo máximo de uma hora para evitar um choque anafilático, mal cumprimentei o vereador Jarder Cedro Nascimento, 26 anos, o Bibi, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, que já estava à nossa espera. Fomos direto para o Hospital Regional de Tamboril.
Primeira boa surpresa: tudo limpo, funcionários solícitos, pouca gente na fila. Preenchi uma ficha e, em cinco minutos, fui atendido. Ao receber a injeção, aproveitei para saber da enfermeira-chefe Brena Feitosa de Lima, 27 anos, nascida em Crato, a quantas andava a saúde do povo de Tamboril. “Nesses oito meses em que estou aqui, já diminuiu muito o movimento no hospital, graças ao trabalho dos colegas do Programa de Saúde da Família, que fazem a triagem e dão o atendimento básico”, diz Brena, enquanto mede meu pulso, e logo me dá alta.
Vimos postos do PSF em todas as cidades por onde passamos. Só em Tamboril, são sete postos distribuídos pelos distritos, com 11 equipes formadas por médicos e auxiliares de enfermagem, por vezes integradas também por dentistas, fonoaudiólogos, nutricionistas e fisioterapeutas, conforme as famílias visitadas. Os casos mais comuns no hospital são de diarreia, dengue e problemas respiratórios.
Antes de seguirmos para o distrito de Sucesso, mais 30 km de estrada, vale a pena saber um pouco da vida do vereador Jarder Nascimento, do PT, que vai ser o nosso guia nessa viagem. Bibi, como é chamado por todos, não conheceu o pai, José Silva Nascimento, que trabalhava de vaqueiro na Fazenda Ramalhete, morto tragicamente apenas 12 dias depois do menino nascer, afogado em uma barragem que rompeu. O vereador tem o típico perfil do jovem nordestino desses novos tempos, que resume as mudanças acontecidas na vida dos sertanejos.
Formado em Letras, o primeiro da família a chegar à faculdade, quando já tinha sido eleito presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Tamboril, Bibi estudou à noite na Universidade do Vale do Acaraú, em Nova Russas, a 40 km de distância. “Sempre procurei valorizar a educação. Cidadão sem conhecimento não chega hoje a lugar nenhum”, explica, com seu jeito formal de falar, como se estivesse dando uma aula. “A vida nos ensina isso. Não foi ninguém que me falou.”
Bibi nos aponta a nova torre de celular que está sendo instalada ao lado da velha estação de trem, hoje transformada em Centro Cultural. São sinais de mudança que dão orgulho aos moradores da cidade. “Antes, as pessoas tinham vergonha de se identificar como tamborilense. Hoje, temos governos que fazem uma gestão voltada para o povo, tanto o municipal, como o estadual e o federal. Só não estuda quem não quer. Temos mais de cem rotas no transporte escolar, com modernos micro-ônibus, que passam por todos os pontos do município. Os alunos recebem da escola livros, uniformes, e merenda.”
Só no ensino fundamental, estão matriculados 7.500 alunos. A cidade conta com duas escolas estaduais de Ensino Médio. Como metade da população ainda vive da agricultura, ganhou importância na cidade o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), do governo federal. “Antigamente, só quem tinha direito eram os grandes proprietários”, lembra Bibi. Desde 2005, o prefeito da cidade é José Jeová Souto Mota, do PSB, em aliança com o PT, que tem por prioridade investir em educação e saúde, algo que é possível constatar a olho nu nas obras espalhadas pela cidade. A presença do poder público aqui é visível.
As novas oportunidades de financiamento e de trabalho que surgiram nos últimos anos tiveram por consequência a diminuição do êxodo rural. Ao passarmos em frente à rodoviária, Bibi conta que “aqui está sempre chegando mais gente do que saindo”. O transporte escolar da prefeitura atende também aos jovens que querem ir à universidade em cidades vizinhas. Em breve, Tamboril vai ganhar sua primeira faculdade, uma extensão dos cursos de Letras e Biologia da Universidade do Vale do Acaraú.
A felicidade no dia de voltar: “Tinha dinheiro no bolso”
Três da tarde, um sol de rachar na Rua Manoel Linhares, na área central de Sucesso, distrito de nove mil habitantes. O dono até abaixou os toldos do Mercadinho O Toinho, primeiro armazém da cidade montado em forma de supermercado, com gôndolas e caixa na saída. Tem de tudo lá agora, até iogurte, queijo de marca e manteiga em pote, as atrações da geladeira colocada logo na entrada.
Antônio Camelo de Souza, 44 anos, o feliz proprietário do mercadinho, fica ele mesmo no caixa, só contando o dinheiro que entra. Nascido no vizinho município de Umburama, começou menino a ajudar o pai na lavoura de feijão e milho, trabalhando na terra do fazendeiro Carlos Gomes. Com sete anos, entrou para a escola, estudou até a oitava série e depois seguiu o destino dos jovens daquela época: tirou seus documentos e foi-se embora para São Paulo, onde já viviam tios e primos.
Foram três dias e três noites de viagem de ônibus. Na bagagem, só o dinheiro para os lanches e uma malinha de roupa. Em Santo Amaro, bairro da zona sul de São Paulo, onde foi morar, na casa do tio Sebastião, não havia emprego. Depois de dois meses parado, arrumou um trabalho de ajudante de padeiro. “Aprendi sozinho. A gente é muito humilhado quando chega lá para ficar na casa dos outros, não fica à vontade. Logo fui morar num quartinho nos fundos da padaria. Trabalhava dia e noite. Não dava tempo para estudar.”
Todo mês, quando sobrava um dinheirinho, mandava para os pais. “Filho que ajuda os pais é feliz”, justifica. Depois de trabalhar em cinco padarias paulistanas, quando estava na Nossa Senhora das Neves, no Itaim, tomou a decisão de voltar. “Voltei para casar e fiquei. Foi maravilhoso. Eu tinha dinheiro no bolso. Fizemos uma festa com carneiro e tudo.”
Com o dinheiro que juntou em São Paulo, montou uma pequena venda, que foi aumentando aos poucos. O imóvel era alugado. Só há dois anos, ele conseguiu comprá-lo. Fez uma bela reforma e ampliou as instalações com equipamentos modernos. “Tudo com dinheiro próprio, sem pedir empréstimo no banco. Gastei mais de 50 mil reais”, jacta-se. O movimento, segundo ele, melhorou 70% depois da reforma.
Toinho não foi o único a fazer o caminho de volta. Nos últimos anos, ele reencontrou em Sucesso vários amigos que saíram na mesma época que ele, e que agora são seus concorrentes no comércio: Zé Garcia, Carlos Henrique, Zezinho Torres, Barrozinho, Silvestre, Jéferson… “Ninguém voltou pra roça.”
Casado com Antônia, pai de duas meninas de 14 e 8 anos, que ele chama de “minhas princesas”, dois bons carros na garagem, poucas vezes na vida encontrei um brasileiro tão feliz quanto Toinho. “Se continuar como está, está bom demais. A vida aqui tá maravilha!” Agradeço-lhe pela entrevista e pergunto se ele conhece o dono da lan house ao lado do mercadinho, com quem eu também queria falar.
– Está falando com ele… A loja da lan house é minha também… Abri tem um ano já.
– Mas por que você não me falou isso antes?
– Porque o senhor não perguntou…
A longa luta de Zacarias para convencer a mulher
Sentado na calçada, na frente do seu estabelecimento, a lanchonete Drinks Lanche, mãos cruzadas na barriga, quem o vê cumprimentando as pessoas que passam pela rua até pode imaginar que se trata de mais um coronel sertanejo aposentado, um bem-sucedido fazendeiro dedicado agora apenas a admirar a paisagem.
Nada disso. Zacarias Martins Lima, 48 anos, filho de vaqueiro, outro retirante retornado, que serviu o primeiro cheese salada de Sucesso, agora está fazendo planos para abrir a primeira pizzaria do distrito. Nascido na Fazenda Queimadas, aqui mesmo no município de Tamboril, ele começou a trabalhar na roça com sete anos de idade e andava 8 km a pé para ir à escola. Aos 17, casou-se com Margarida Farias Martins e foi-se embora para São Paulo, onde ainda vivem 11 dos seus 12 irmãos. Lá, fez um pouco de tudo para sobreviver.
Sem trabalho e sem dinheiro, alugou um quarto na Água Funda, “na cara dura”, e só arrumou serviço, tempos depois, como faxineiro de padaria, onde logo seria promovido a chapeiro e lancheiro, e ficou por seis anos. Cansou-se dessa vida e foi trabalhar como motorista de uma transportadora de frios e iogurtes. Fez isso por mais três anos e depois arrumou um trabalho em cozinha industrial, onde preparava três mil marmitas por dia para os presídios paulistanos. Voltou para a padaria e assim foi levando a vida até que, em 1994, encostou um carro na porta da sua casa e levou tudo que ele tinha juntado em 16 anos de São Paulo.
“Não deixaram nada na casa. Aí me decepcionei. Fiz um pedido a Deus para ir embora e voltar para o meu Ceará”, recorda. O problema é que sua mulher estava trabalhando em um dos maiores laboratórios farmacêuticos do Brasil, ganhava bem, e não queria nem ouvir falar em voltar para a pequena Sucesso.
Zacarias levou dois anos para convencer a mulher. “Ela me falava: vamos lá viver de quê?” Eu falei pra ela: “Adonde a gente tiver, se não faltar coragem para trabalhar, ninguém vai morrer de fome. Aí, ela veio mais eu.” Com sua experiência no ramo, abriu a lanchonete em uma parte do sobrado cedido pelo sogro, mas quem cuidou dela no começo foi a mulher. “Como não sabia o que ia dar, caí na roça para garantir o sustento. Arrendei terra para plantar milho e feijão. Plantava 100 kg de sementes por ano.”
A lanchonete deu tão certo que Zacarias largou a lavoura e passou a trabalhar junto com a mulher. “Hoje, o comércio dá muito mais do que plantação”, constata. Mas dá mais trabalho também. Margarida abre a lanchonete às seis da manhã e ele fecha a uma da madrugada. “O pessoal aqui não sabia o que era sanduíche, não conhecia danoninho, eu que abri frente pra todo mundo…” Agora, ele já está cheio de concorrentes: o Dogão da praça do Mercado, o Expedito da lanchonete, a Lurilene Lanches, o Antonio Abel, o Raimundo Claudino, tem o Melo, a Valdirene… “A concorrência é grande…”
Faz cinco anos, eles adotaram um menino recém-nascido, de nome Diogo. “O menino até parece comigo… O pai e a mãe dele são irmãos. Coisa de cachaça, sabe?” E o futuro? “Meu plano é investir aqui neste lugar mesmo. Está difícil arrumar outro ponto, ficou tudo muito caro. Além dos sanduíches (vendidos a preços entre R$ 1 e R$ 3), a Drinks Lanche oferece salgadinhos, que também ninguém conhecia, e refeições completas, cada dia com uma atração: picadinho, galinha caipira, costela de boi ensopada, feijoada, panelada.
O grande sonho dele agora é ampliar a cozinha para instalar o forno de pizza, outra iguaria urbana ainda desconhecida em Sucesso. “Vou gastar uns R$ 10 mil nisso, mas sem fazer empréstimo. Faço conforme minhas possibilidades. Em agosto, vocês podem voltar para comer uma pizza comigo aqui…”
O garçom Jair, que agora vai ser dono de posto
O retirante Jair Gomes Ferreira, 36 anos, foi o último a sair daqui, em 1990, e o último a voltar, no final do ano passado. Foi primeiro para Brasília, onde trabalhou como garçom, servindo rodízio na Churrascaria Pampa, que existe até hoje. Desde os 10 anos, ajudava o pai, Luís Sampaio, na venda que ele tinha em Sucesso. Só estudou até a oitava série, como a maioria dos meninos daquela época.
De Brasília, ele foi para São Paulo, onde trabalhou por 12 anos como garçom, já pensando em juntar algum dinheiro para poder voltar a Sucesso. Teve três filhos, sem nunca ter casado. Em 2000, abriu seu próprio negócio, um minirrodízio barato, servido a R$ 8 em uma churrascaria popular chamada Brasa, no centro de São Paulo. Virou uma rede, que chegou a ter mais de 20 restaurantes, mas no final de 2009 ele resolveu vender tudo e voltar para Sucesso, mantendo a sociedade em apenas uma delas, na Rua 24 de Maio. Logo ficou sabendo que Sucesso só tinha um posto de gasolina, o Poty, meio mal ajambrado para os novos tempos.
Gostou tanto do que viu que resolveu ficar. “Antes, tinha de sair daqui para ganhar algum dinheiro, não tinha emprego. Agora, está melhor em tudo, dá para ganhar dinheiro aqui mesmo. Muitos colegas meus voltaram. Não querem ir embora para São Paulo, mais não”, conta Jair, encostado em uma bela caminhonete Toyota cabine dupla, de onde supervisiona as obras do posto.
Seu vizinho, o Francisco, dono de padaria em São Paulo, também já lhe falou que vai vender o que tem lá para construir uma loja de material para construção ao lado do posto. No dia em que fomos conversar com Jair, havia seis homens trabalhando na obra do Auto Posto Sucesso, o nome do seu novo negócio, que vai ter bandeira branca, ou seja, não será ligado a nenhuma distribuidora.
Com a planta na mão, Jair mostra que o posto vai ter três bombas, uma loja de conveniência e um lava-rápido, o primeiro do distrito. Quando lhe pergunto o que mudou em Sucesso entre a sua partida e a volta, ele abre um largo sorriso: “Está tudo melhor do que era antes. Não tem comparação. Todo mundo tem emprego hoje…”.
Pois é exatamente esse o maior problema que Jair está enfrentando na sua volta a Sucesso. “A coisa mais difícil é você encontrar um pedreiro para trabalhar aqui. A obra já ficou mais de um mês parada por falta de mão de obra. Se não fosse isso, já era para estar pronta, o posto funcionando…”
No velho sítio da família, Manoel toca o Projeto Mandala
Chegamos já no escuro ao Sítio Cajueiro, a 7 km de Sucesso, onde Manoel Sampaio Mendes, 35 anos, e seu irmão João Maciel, de 32, estão implantando o Projeto Mandala nas antigas terras da família. Manoel saiu daqui com dois anos, quando o pai, Dionísio Holanda Mendes, resolveu levar a família embora para o bairro de Santo Amaro, em São Paulo. Agora, sete horas da noite de segunda-feira, 11 de maio de 2010, ele segura no colo o filho Eric, de um ano e três meses, admirando a sua obra, iluminada por uma luz permanente.
São 51 hectares herdados do avô, Manoel Tito, onde está sendo implantado um projeto de agricultura familiar integrada, financiada pelo governo do Ceará, com a água que vem do açude público e é distribuída nas plantações com sistema de irrigação em forma de mandala. Manoel e João Maciel largaram o restante da família em São Paulo e voltaram para passear em Sucesso, mas acabaram ficando, casaram com moças daqui e nunca mais pretendem ir embora.
Aqui, eles criam peixes e patos para oxigenar e alimentar com dejetos a água que irriga a horta, além de 100 cabeças de ovelha. Em forma de anéis, a horta produz cenoura, beterraba, alface, cheiro verde, coentro, quiabo, tomate, pimentão. Com um único empregado, Antonio Alves de Menezes, 24 anos, que veio “arriscar uma vida melhor”, por enquanto eles têm uma retirada em torno de R$ 1 mil por mês, vendendo a produção para hospitais e a merenda escolar, renda complementada com o serviço de transporte com caminhão de caçamba que prestam à prefeitura.
“A gente está aqui mais por amor à terra do que para ganhar dinheiro”, diz Manoel, enquanto nos oferece uma água de coco sem gelo, um breve alívio frente às muriçocas, que nos atacam por cima e, às formigas, pelos pés. Não chega a ser propriamente um paraíso, confesso, mas daqui os irmãos Mendes não querem mais ir embora. Para eles, São Paulo, nunca mais.
“O pessoal tem mais dinheiro, ficou mais vaidoso”
A trajetória de vida do cabeleireiro Antonio Abreu de Souza, 40 anos, nada tem de muito original por essas bandas: filho do vaqueiro Gerardo, nasceu na Fazenda Floresta, teve cinco irmãos, veio para a cidade estudar e cursou até a oitava série. Queria ser professor.
Com 18 anos, ao completar a maioridade, sem chances de estudo ou trabalho em sua terra, tirou os documentos e foi-se embora para o Rio de Janeiro onde tinha parentes.
Em Nova Iguaçu, foi trabalhar no salão de beleza de uma prima, a Auxiliadora, que lhe ensinou o ofício. E nunca mais largou a profissão. Três anos depois da partida, ainda não havia se acostumado com a nova vida no Rio e voltou para Sucesso a passeio. Mas resolveu ficar de vez. Como a cidade não tinha um salão de beleza para mulheres, apenas barbeiros, resolveu arriscar e abriu o Realcy & Cort, o primeiro estabelecimento unissex do distrito.
Antes dele, as mulheres mais chiques do lugar tinham de ir a Nova Russas e outras cidades vizinhas para cuidar da beleza. Agora, ele já tem mais quatro concorrentes no ramo: Mulheres e Cabelos, Passarela, Max Fashion e As Divas. E só sobrou um barbeiro na cidade, o seu Juarez.
Antonio trouxe do Rio apenas os apetrechos básicos – pentes, tesouras e secador -, e instalou o primeiro salão na frente da casa alugada onde foi morar. Aos poucos, foi comprando um lavatório e os outros equipamentos. “Cada cabelo que eu fazia era uma propaganda para o meu salão. O movimento começou a crescer rapidinho”, gaba-se o esteta capilar do sertão, que não consegue sorrir na hora de tirar fotografia para a revista. Depois de muita insistência minha, ele explica: “Tive uma paralisia facial no mês passado, meu bem!”.
Perante a mancada, procurei logo mudar de assunto e ele me disse uma coisa, que acaba de certa forma sendo um bom resumo das mudanças registradas na vida dos sertanejos: “De dez anos para cá, o pessoal ficou mais vaidoso, tem mais dinheiro. O povo está satisfeito que a qualidade de vida aqui melhorou. Até a minha ficou melhor…”.
Não é para menos. Em dias de feira, no domingo, ele já chegou a atender 30 mulheres, que pagam em média R$ 100 pelo serviço completo de Antonio. Nada mal para quem paga apenas R$ 150 por mês de aluguel e outro tanto para uma faxineira, e só eventualmente chama um ajudante para trabalhar no salão. Depois de matar a fome com o Bolsa Família e comprar roupa e tênis com o primeiro salário, o sertanejo agora está cuidando da beleza.
CHICO MADEIRA – O VELHO SERTANEJO “As motos estão acabando com o povo vaqueiro” |
No caminho de volta para Fortaleza, uma cena rara: no asfalto da BR-020 encontramos a figura de um vaqueiro a caráter – montado a cavalo, acompanhado por um cachorro, protegido por chapéu e gibão de couro. Ressabiado, ele custa a entender o que queremos, apenas uma foto e a sua história. Francisco Alves de Souza é seu nome, mas todos só o conhecem por Chico Madeira. Tem 44 anos, nasceu em Canindé e nunca foi outra coisa na vida: vaqueiro. Ao contrário dos outros personagens dessa história, Chico não saiu nem voltou, nem pensa em sair do sertão. Nasceu aqui, aqui quer morrer. “Meu destino é esse aqui.”
“As motos estão acabando com o povo vaqueiro”, vai logo se lamentando, quando perguntamos que trabalho está fazendo. “Estão até tocando gado de moto. Eu agora só trabalho para ajudar um velhinho, o Chico Rufino, que tem um gadinho.” Pelo serviço, ganha três litros de leite por dia. O restante do sustento da família vem do Bolsa Família, os R$ 120 que recebe por ter três filhos na escola. Na roça, quando aparece serviço para consertar cerca, ganha mais R$ 20 de diária. A vida toda, Chico Madeira trabalhou para o fazendeiro Joaquim Madeira, já falecido. “Eu fui criado pelo finado. Nunca fiz outra coisa na vida, só tocando o gado. É meu destino desde criança. Mas o povo mais novo não quer saber disso.” Só quem continua firme e forte a seu lado é Roque, o vira-lata que não o larga de jeito nenhum. “Tem muita maldade com os cachorros na estrada, morro de medo dele ser atropelado.” O nome do cavalo ele não sabe, pois é emprestado. Mas ainda pretende comprar um. O problema é que um bom custa uns R$ 700, “uma fortuna”. Depois de ver sua imagem na máquina, que o fotógrafo Jarbas Oliveira mostrou – “Ficou boa que só uma porra” -, o vaqueiro Chico Madeira se despede da reportagem com um belo sorriso de poucos dentes: “Sejam bem felizes!”. |
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