Não é mera coincidência que no ano passado a banda Bixiga 70 tenha feito sua primeira apresentação em 15 de outubro, data que Fela Kuti completaria 72 anos. Em 2010, os dez músicos do grupo subiram ao palco na Festa Fela, versão paulistana do Fela’s Day, celebração anual, que acontece em várias cidades do mundo, durante o aniversário de nascimento do músico nigeriano. Tido como o criador do afrobeat – gênero musical que mescla ritmos africanos ao funk de James Brown – Fela Kuti morreu em 1997, vítima da Aids, deixando uma herança pouco conhecida para além das fronteiras da África. Na última década, no entanto, uma onda de resgate das músicas de Fela, que começou na Europa e nos Estados Unidos, chegou forte ao Brasil nos últimos quatro anos. O Bixiga 70 nasceu nesse contexto.Passado um ano da estreia, muita coisa mudou na vida da banda paulistana. Criada sem muitas pretensões, quase que apenas para homenagear o músico nigeriano, o som unicamente instrumental do grupo teve reconhecimento imediato do público. Durante a Festa Fela deste ano, o Bixiga 70 atraiu mais de mil pessoas para o Estúdio Emme, badalada casa noturna, em São Paulo. Além do aniversário da banda e de Fela Kuti, o show marcou o lançamento do primeiro single do grupo, formatado em vinil. Com uma única composição, Di Malika, que também dá título ao compacto, é uma referência ao nome com o qual a banda se apresentou na Festa Fela do ano passado. “Depois de pesquisarmos um pouco, descobrimos que esse nome já tinha sido título de músicas, álbuns e bandas e, já que não estávamos satisfeitos, resolvemos mudar”, relembra Mauricio Fleury, que toca piano elétrico.[nggallery id=14801]Bixiga 70, que surgiria pouco tempo depois, é uma brincadeira com o nome do mítico grupo de Fela Kuti, o Afrika 70, uma verdadeira orquestra com mais de 60 integrantes, entre músicos e dançarinas. O estúdio em que o grupo paulistano nasceu e ensaia até hoje fica no número 70 da mais famosa rua do bairro do Bixiga, a Treze de Maio. “Nossa intenção nunca foi emular uma cena africana dos anos 1970, então esse nome dava conta do nosso conceito. Ao mesmo tempo que faz referência à orquestra de Fela, tem nossa marca registrada, a de São Paulo”, diz Maurício.Uma possível explicação para Fela Kuti ter permanecido tanto tempo em relativo anonimato foi sua eterna briga com poderosos de todos os tipos, incluindo os da indústria fonográfica. A marca registrada do músico era sua postura rebelde, expressa em ácidas letras de protesto, o que acabou por dificultar a disseminação de sua arte. Com a internet e a subsequente troca de músicas, o legado do nigeriano foi, pouco a pouco, redescoberto. Ao redor do mundo, pipocam bandas de inspiração no afrobeat, como os ingleses da Ariya Astrobeat Arkestra e os alemães do Woima Collective.Poligamia e mais
Ao longo de sua vida, Fela se converteu em uma figura mítica. Durante os anos 1970, fundou uma comuna, chamada República Kalakuta, sofreu ataques das diversas ditaduras militares nigerianas e casou-se com 27 mulheres em uma mesma cerimônia. Sua postura única fez com que o afrobeat se transformasse em uma marca registrada do músico, indissociável de sua figura. Por isso, Mauricio diz que a “intenção do Bixiga 70 nunca foi emular uma cena africana”.Nascido em meio à onda de redescoberta do afrobeat, o grupo tem sido retratado como um simples reprodutor do gênero. Em tom de brincadeira e depois de quase duas horas de conversa com três integrantes do Bixiga 70 -Mauricio, Décio 7 (bateria) e Cris Scabello (guitarra) -, um deles pergunta se o repórter da Brasileiros gostaria de ser o psicólogo do grupo. A piada tem motivo. Depois de um ano de vida, a banda tenta encontrar sua própria voz, sem renegar a inspiração do afrobeat.Exclusivamente instrumental, sem letras e sem a figura de um cantor, o formato do Bixiga 70 é bem diferente da orquestra liderada por Fela Kuti. Além disso, o lançamento do álbum de composições próprias (disponível para download no site www.bixiga70.com) parece ser um passo definitivo para a conquista de um lugar na cena musical. “O que mais nos interessa no afrobeat é a sobreposição de ritmos, uma marca registrada da África. A polirritmia é o segredo africano do nosso som”, diz Décio 7. Essa é a diferença do ritmo africano para o brasileiro, a pluralidade de diferentes batidas. Música instrumental nunca atraiu muito o público, mas a julgar pela última Festa Fela, a batida do Bixiga 70, receita do som do grupo, parece ter conquistado as pessoas.”A nossa busca vai muito além de um resgate do afrobeat, o que estamos tentando fazer é achar o que tem de África em nós mesmos”, afirma Cris Scabello. E aí, todos concordam que o Brasil tem uma tradição bem enraizada. Os Afro-Sambas, de Vinícius de Moraes e Baden Powell, o Refavela, de Gilberto Gil, e o redescoberto Krishnanda, do percussionista Pedro Santos, são traços incontestes da africanidade brasileira. “Temos uma rítmica que é só nossa. Lá fora, os caras não sabem tocar percussão. Então, o Bixiga fala da África, mas também do Brasil”, diz Mauricio.Nesse momento em que o afrobeat foi finalmente descoberto pelo mundo, o Bixiga 70 passa por uma prova de fogo: assimilar todas as suas influências e criar um estilo único e pessoal. “Ainda não temos um nome para o que estamos fazendo e, por isso, temos tanta dificuldade em nos explicar em entrevistas. Afrobeat é Fela Kuti. Nós tentamos fazer uma viagem nossa, com base na batida africana e na música instrumental”, diz Cris. Não é por acaso que a melhor definição do que o grupo busca seja dada pelo baterista Décio 7: “Encontramos uma forma de trabalhar que é afrobeática, mas não fazemos afrobeat, entendeu?”.+ Leia entrevista com Carlos Moore, biógrafo de Fela Kuti
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