O compositor baiano Assis Valente (1908-1958), radicado no Rio de Janeiro, escreveu no samba Alegria, de 1937, que sua gente pobre dos morros era triste e amargurada, mas havia inventado a batucada (samba) “para deixar de padecer”. Daí o sentido do título. Mas nem só do ritmo vivia a animação dessas pessoas. A pouca estrutura das casas e barracos ou o terror do tráfico em décadas jamais evitou que os cariocas menos afortunados descobrissem outras formas de prazer. A culinária é uma delas. O Guia Gastronômico das Favelas do Rio, de Sérgio Bloch, Ines Garçoni e Marcos Pinto, reúne dicas valiosas desse universo. São sugestões que vão da culinária carioca de raiz (ensopadinhos de legumes e carnes ou bife com fritas) às chamadas ocasiões especiais (dobradinha e mocotó). Há ainda os banquetes de celebração, que incluem feijão “fardado”, arroz de forno, macarronada, carne ou frango assado, empadinhas e croquetes, entre outros. Delícias que, muitas vezes, nasceram das condições adversas dos morros.
O guia orienta como chegar aos pratos saborosos por meio de transporte público que leva às comunidades – Morro da Providência, Santa Marta, Tabajaras, Chapéu Mangueira/Babilônia, Vidigal, Rocinha, Morro dos Prazeres e Complexo do Alemão. Cada uma é apresentada com breve histórico, que destaca sua importância na composição histórica e geográfica do Rio. Para se chegar ao restaurante Favela Point, por exemplo, é preciso subir os 175 degraus da principal escadaria da Providência. O espaço é mantido por três amigas, que seguram os clientes com uma batidinha de cachaça como entrada. A Laje da Rejane, os autores destacam, tem mais do que uma bela vista e a simpatia da dona. Ali se prova um maravilhoso bolinho de abóbora com carne seca. No Alemão, o destaque é a tapioca da Rejane, cozinheira pernambucana conhecida por sua iguaria feita com farinha nordestina.
Bloch, que é diretor de cinema, conta que o livro nasceu do acaso. Há três anos, ele foi convidado a fazer um documentário em algumas favelas pacificadas e, na hora do almoço, sua equipe procurava lugares onde comer. Pelo tempo perdido em se deslocar para fora dos morros, concluiu que deveria buscar nas comunidades alternativas para matar a fome. Com a ideia do livro decidida, 97 estabelecimentos das oito favelas foram identificados, entre restaurantes, bares, biroscas e terraços caseiros. Encontrou-se de tudo, até mesmo cinco casas japonesas na Rocinha. Desse universo, 22 foram selecionados. “Geralmente, os locais são pequenos, com pouca estrutura e de difícil acesso, mas servem pratos e tira-gostos preparados com talento e paixão por cozinheiros de mão (e panela!) cheia.”
Na apresentação do guia, o compositor e antropólogo Nei Lopes explica que a arte de cozinhar e o prazer de apreciar são assimilações e ampliações de hábitos alimentares de correntes migratórias que chegaram à terra carioca, influenciadas por outras variantes, como tempo de preparo e ocasião. Com a segurança estabelecida contra os traficantes, o passeio tem a vantagem do estímulo ao apetite e a boa digestão, por causa da geografia dos morros: a fome aumenta nas ladeiras e gastam-se calorias na volta. Um consolo para quem quer comer bastante. E bem.
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