O arquivo pessoal do poeta, compositor e produtor carioca Hermínio Bello de Carvalho, com dez mil documentos digitalizados, gravações, documentos, fotos, está disponibilizado via internet (a partir desta terça-feira, dia 11), permitindo acesso a meio século de música brasileira. Quando se fala em Hermínio todo mundo conhece. Quando fez 70 anos mereceu até uma caixa com cinco CDs, Timoneiro (Biscoito Fino – 2005), com Zélia Duncan capitaneando o link com as novas gerações. Mas ninguém sabe de primeira o que ele fez de fato. Fez bastante. Pegando um atalho rápido, pode-se lembrar que ele é co-autor de “Sei Lá Mangueira” com Paulinho da Viola e teve entre outros parceiros Cartola e Carlos Cachaça (“Alvorada no Morro”), Zé Kéti (“Cicatriz”), Pixinguinha (“Fale Baixinho” e outras), Chico Buarque (“Chão de Esmeraldas”), Jacob do Bandolim (“Doce de Coco”, “Noites Cariocas”), Baden Powell (“Valha-me Deus”), Villa-Lobos (“Senhora Rainha”) e Frejat (“Balada do Anjo”). Rosas de Ouro, show produzido em 1965, apresentou Clementina de Jesus ao mundo. Hermínio é o criador do projeto Seis e Meia, ou Pixinguinha, que revelou novos talentos e reavivou a carreira de monumentos esquecidos, trabalhou como jornalista nos lendários e apostróficos O Cruzeiro e O Pasquim, fez muita coisa. Fica mais fácil falar com ele mesmo.
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A participação na criação do site (que grafa “saite”) – “Meus amigos Alexandre Pavan, Luiz Ribeiro e Luiz Boal apostaram nessa ousadia, mesmo enfrentando uma certa resistência de minha parte. E era uma contradição que eu apresentava aos três, porque sempre fui a favor da circulação do fato cultural. Quando entendi que o saite poderia ir muito além do que eu já propunha, tratei de drenar aquele poço de minha vastíssima ignorância sobre a internet, e entreguei os pontos. Me encanta saber que a circulação de documentos que estavam confinados em meus arquivos vão, afinal, encontrar o público correto”.
Hermínio: branquinho sobe o morro? – “Eita, vamos logo corrigir o engano: sou um mulato claro e de olhos verdes, nascido na classe média baixa, filho de um pedicuro louro de olhos azuis com uma empregada doméstica filha de pescadores da Ilha da Giboia, ambos semi-analfabetos e honrados trabalhadores. Fui infectado pelo vírus da Rádio Nacional, e, antes de subir o morro (por sinal, uma só uma vez, para ir encontrar Nelson Sargento), tinha estudado canto orfeônico, assistido a concertos de Eleazar de Carvalho e assistido a aulas de Madalena Tagliaferro. Me criaram um modelito: terno branco de linho S-120, sapato bicolor e violão debaixo do braço. Mas não foi nada disso. A estranheza da voz de Aracy de Almeida, a poesia de Drummond e Pessoa, Ismael Silva, que freqüentaria minha casa, e finalmente Cartola me vieram a partir dos 16 anos por influência do pintor Walter Wendhausen, que também me inundou de jazz, Modigliani, Chagall e Picasso. A única arma de sedução que uso para me aproximar das pessoas é a da sinceridade. Foi assim com Drummond, foi assim com Aracy de Almeida, a inabordável. Entreguei-lhe um poema que havia lhe dedicado, ela deu uma olhada, me olhou de cima a baixo e viu, enfim, que eu ‘era uma pessoa que não restava a menor dúvida’. Na semana seguinte me preparou um frango inesquecível, me deu um retrato a óleo pintado por Aldemir Martins, embrulhado em jornal, e me apelidou de ‘Bello Hermínio’”.
O Brasil de então e o de hoje – “A ditadura dos anos 1960, diferente da instaurada por Getúlio Vargas, é assustadoramente parecida com a globalização de hoje, que tudo coisifica. Há jovens que acham que a internet tudo resolve, quando, ao lado de um vídeo de Donga e Pixinguinha com Chico Buarque, encontra-se textos apócrifos atribuídos a nomes como Luís Fernando Veríssimo e Zuenir Ventura, sandices apresentadas como ‘temas científicos’, que professores e alunos irão ‘recortar’ e transformar em matéria escolar. O valor de Clementina, Cartola, Louis Armstrong ou Jacques Brel é imutável, mas vai depender da qualidade da informação”.
Quem é o Hermínio? – “Me vejo, às vezes, como um grande babaca sonhador, um cultivador ultrapassado de sonhos e utopias, mas também um brasileiro visceral, mas sem o ranço dos nacionalistas radicais que só enxergam a cultura do País por um prisma. Acho que minha melhor contribuição, a de maior exemplaridade (seguindo um conceito do Celso Furtado), é ainda Clementina de Jesus. Escrevi um texto no disco que Itamar Assumpção gravou sobre a obra de Ataulfo Alves, mais teria escrito, se solicitado, sobre o seu trabalho autoral. Ele viveu estigmatizado com o rótulo de ‘maldito’ à sua revelia. As novas gerações são extremamente curiosas a respeito da obra desses poetas/compositores ignorados pela indústria pesada da música, tão perigosa quanto a de armamentos, drogas, cigarros e eteceteras. Lembro da Feira de Música, promovida em 1965/66 por Kleber Santos, do Teatro Jovem. Vinicius de Moraes aplaudindo, da platéia, Sidney Miller, Gil e Caetano, Torquato, Macalé, todos que estavam surgindo. Isso é extremamente saudável. Afirmo isso com a experiência de quem conviveu com Pixinguinha e Jacob do Bandolim, ídolos meus, e que hoje vive cercado de jovens que desfrutam de uma midiateca que os abastece de informações que raramente são encontradas no circuito convencional de cultura”.
Caso deste “saite”.
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