O leitor mais atento haverá de perceber, claro, o título desta resenha faz alusão ao álbum de estreia de Jorge Ben, tema de reportagem especial da Brasileiros impressa, na ocasião dos 50 anos do LP, lançado pela Philips, em 1963. Mudei de Ideia resultou da união entre os baianos Antônio Carlos e Jocafi (João Carlos Figueiredo, daí o Jocafi), cantores e compositores experimentados nos numerosos festivais de música popular da segunda metade dos anos 1960 que ao somar forças criativas – e como as tinham! – fizeram enorme sucesso no País, primeiro com as composições Hipnose e Desacato e, depois, com o êxito do samba Catendê.
Escrita a seis mãos com letra do conterrâneo poeta Ildásio Tavares e inspirada em cânticos religiosos angolanos, Catendê foi defendida por Maria Creuza, então mulher de Antônio Carlos, e venceu o V Festival de Música Popular, em 1969 (ouça a versão de Maria Creuza e Vinicius). Três décadas mais tarde, em artigo no qual recorda os primeiros passos da dupla, Tavares lembrou que Antônio Carlos e Jocafi mantinham saudável rivalidade na Salvador do final dos anos 1960 e nem sequer conversavam um próximo do outro para que não houvesse roubo de ideias.
Entre um festival e outro, obcecado pelas raízes e a sincopa afro da música baiana, Antônio Carlos compôs, em 1968, Festa no Terreiro de Alaketu. A canção, claro, ganhou interpretação na voz forte de Maria Creuza e impulsionou a vinda do casal para São Paulo a convite de Paulo Machado de Carvalho, todo poderoso chefão da TV Record. Antes mesmo de saber qual seria a repercussão de Festa no Terreiro de Alaketu no Festival Internacional da Canção, organizado por sua emissora, Carvalho contratou Antônio Carlos e Maria Creuza como artistas da Record. A aposta no sucesso dos dois era tamanha que o magnata chegou, inclusive, a alugar e ser fiador de um apartamento na Rua Augusta e o colocou a disposição dos baianos para, quando necessário fosse, terem onde ficar confortavelmente em São Paulo.
A direção da gravadora Odeon ressonou o entusiasmo da Record e não perdeu tempo: agendou álbuns individuais de Antônio Carlos e de Maria Creuza. De maneira que era mesmo presumível acreditar que as viagens do casal à capital paulista seriam cada vez mais regulares. Seriam, porque o agente de ambos conseguiu convencê-los de que estavam prestes a cair numa armação arquitetada pelo poderoso Marcos Lázaro. Jovem e ingênuo, Antônio Carlos não hesitou e, nos jornais, decidiu malhar o empresário carioca. O resultado da tola insolência não é difícil de presumir: foram rompidos os contratos com a Record e a Odeon, a música nem sequer chegou a ser apresentada no festival e o casal teve de devolver ao chefão da Record as chaves do apartamento na Rua Augusta para encarar uma amargurada volta à Bahia.
Ao retornarem a Salvador, logo ergueram a cabeça e seguiram a máxima “o show tem que continuar”. Decidiram, então, participar de mais uma edição do Festival do Samba da JS, evento local organizado pelo pianista, locutor de rádio e publicitário Jorge Santos. Em 1962, por meio de sua gravadora JS Discos, fundada três anos antes para gravações de jingles e campanhas de rádio, Santos proporcionou a estreia em estúdio de Gilberto Gil como compositor e músico, no acordeon, quando Gil acompanhou o grupo As Três Baianas no 78 rpm Bem Devagar – o trio, que foi embrião do Quarteto em Cy, reunia as irmãs Cynara e Cybele e a prima Ana Lucia.
Para o desalento de seu rival, a participação de Maria Creuza e Antônio Carlos no festival da JS foi eclipsada por Jocafi, o grande vencedor, com D’Angola C’Amará (gravada depois pela dupla no álbum Louvado Seja). Pouco depois, em parceria com Antônio Carlos, Ildásio Tavares passou a trabalhar como letrista para a JS Discos, em álbuns como o hoje raríssimo Apolo 11, lançado por Maria Creuza, em 1969, que tem quatro letras suas. Foi nessa ocasião que Jocafi topou o caminho de Tavares e pediu a ele a letra de Catendê. Foi também nesse momento que os rivais enfim se aproximaram para formar uma das duplas mais amadas do País nos anos 1970.
Mas, voltando ao início desse texto, perguntará você, caro leitor: “Afinal, que conexão há entre as estreias do Babulina e a desse par de compositores de sambas irresistíveis e modernos?!” Mas, que nada! Com o perdão da citação dupla, bidu, dotado de bons ouvidos, é aquele que justamente perceber a modernidade que há entre o que fez Jorge em Samba Esquema Novo e o que fizeram Antônio Carlos e Jocafi logo na estreia fonográfica.
Lançado em 1971, Mudei de Ideia é obra despretensiosa, mas que lida com a perfeição – predicados para lá de extensíveis a Samba Esquema Novo. Apesar das diferenças estéticas entre os dois álbuns, é inconteste que ambos deram um banho de modernidade e juventude nas tradições do samba – no caso dos baianos, somando a elas informações da bossa, da jovem guarda e até do tal som universal dos tropicalistas – e seduziram a nós ouvintes com a ilusão de estarmos diante de algo simples, prosaico e ordinário, como a vida pode ser nos tropeços e nas dores do dia a dia.
Assim, Antônio Carlos e Jocafi fizeram de seu Mudei de Ideia um disco festivo, com muito frescor, de grande celebração, mas que em momento algum repele a dor. Pelo contrário. Compositores astutos, eles beberam da sabedoria do patriarca do samba baiano Dorival Caymmi e sensibilizaram multidões com o artifício da empatia, como fizeram em Você Abusou, de melodia persistente, que nos faz lembrar que sentir dor de cotovelo é algo universal, com o acréscimo da irônica desculpa pelo simplismo de rimas como: “Mas não faz mal, é tão normal ter desamor…” e “…se o ‘quadradismo’ dos meus versos vai de encontro aos intelectos que não usam o coração como expressão”.
Mas não se deixe enganar pela enorme sensibilidade popular da dupla, caro leitor. As mensagens e a musicalidade irresistível de Antônio Carlos e Jocafi têm segredos para lá de calculados, explorados desde a estreia fonográfica. Os músicos envolvidos e o esmero nos arranjos de Mudei de Ideia – assinados por quatro batutas de arrepiar: H. Silvestre, Alexandre Barreto, José Briamonte e Rogério Duprat – não deixam dúvidas. Multi-instrumentistas talentosos, Antônio Carlos e Jocafi também tiveram um time da pesada a seu dispor, que incluiu até mesmo o incendiário guitarrista Lanny Gordin, coringa de luxo dos tropicalistas. Além de Lanny, participaram das gravações Messias (violão, viola e banjo), Germano (violino), João Carlos (orgão), Ney e Norival (bateria), Zé Carlos, Boneca e Cláudio (contrabaixo), Jorginho Cebion, Zezinho, Oswaldinho, Osmar, Guilherme e Hermes (ritmistas). Mudei de Ideia, lançado pela RCA Victor, também conta com intervenções de gaita de seu coordenador artístico, Rildo Hora (o diretor artístico do LP foi Alfredo Corleto).
Dito tudo isso, julgo desnecessário ficar aqui comentando características de pérolas como a canção que dá nome ao álbum, Kabalurerê, Hipnose, Morte do Amor, Bonita e Deus o Salve – está última também letrada por Ildásio Tavares. Fato é que Antônio Carlos e Jocafi fizeram de Mudei de Ideia belíssimo abre alas para uma discografia exemplar, que cruzou os anos 1970 e 1980 repleta de sambas modernos e absurdamente ritmados, que espalham gestos espasmódicos em nosso corpo e nos convidam a dançar, dançar e dançar ao som das belas harmonias vocais que tanto grudam nos ouvidos, sejam elas cantadas por eles em português, nagô ou em bom yorubá.
Ouça a íntegra de Mudei de Ideia
Boas audições e até a próxima Quintessência!
Veja a dupla em apresentação no programa Elis Regina Especial, de 1971, pouco após o lançamento de Mudei de Ideia
EM TEMPO:
– O áudio desta coluna foi gentilmente cedido pelo amigo Manoel Filho, que mantém um canal no youtube com outras tantas preciosidades de nossa música. Confira.
– No começo dos anos 1970, Você Abusou foi surrupiada pelo compositor Frances Michel Fugain, com o título Fais Comme L´Oiseau (em português Sou Como Um Pássaro, ouça) e fez tamanho sucesso na França que tornou-se hino informal do Partido Socialista. O furto da melodia foi alvo de um complexo processo vencido pelos baianos.
– Você Abusou também seduziu Stevie Wonder. Confira.
– Selecionei abaixo três depoimentos sobre a dupla, dois de Ildásio Tavares e o terceiro de um fã mais que ilustre, o escritor Jorge Amado, que teve sua obra reverenciada em várias canções dos baianos:
“Antônio Carlos e Jocafi debruçaram-se sobre a língua certa do povo. E deveram muito do seu sucesso à linguagem direta, coloquial, mas nova de suas letras. A reapropriação que a dupla fez do vocabulário, sintaxe e poesia popular fê-los adquirir um esquisito sabor de novidade no eixo Centro-Sul, chegando até a difundir palavras, a fazer os cariocas e paulistas falarem como baianos e usar termos populares da Bahia.”
“Na época, a crítica chegou a chamá-los de salvadores do samba. E isto se deve, não só ao suingue diabólico que a dupla implantou – com um estilo definido de cozinha no samba, explorando muito a percussão, com o surdo à frente –, mas principalmente à comunicabilidade de suas letras calcadas em imagens e ressonâncias coloquiais, todas de grande impacto e um estilo de cantar com um mini-breque à la Mario Reis.”
“Há palavras, hoje de domínio nacional, que são baianismos que eles consagraram nas canções. Uma elas é brega, que aparece (cantada) pela primeira vez no Brasil na canção Perambulando (ouça a versão dos Golden Boys) da novela O Primeiro Amor, de 1972. Esta palavra tem uma origem curiosa. Vem da placa corroída da Rua Pe. Manoel da Nóbrega, em Salvador, e esta era uma rua de prostituição. A moçada dizia ‘vamos na rua Brega’, ‘na rua do brega’ e, finalmente, ‘vamos no brega’.”
Ildásio Tavares, poeta, romancista, ensaísta e compositor baiano, morto em 2010
“O sucesso acompanha a dupla Antônio Carlos e Jocafi desde que ela se formou e apareceu diante do público. Sucesso merecido. Aliás, duplamente merecido quando as músicas por eles compostas são interpretadas por Maria Creuza, voz da Bahia.”
Jorge Amado
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