Mas o senhor quer contar a história da minha vida mesmo, de verdade?
– Claro, estou aqui para isso, seu Ico…
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Estranhei que ele me fizesse essa pergunta, depois de passarmos horas conversando no quintal da casa do seu amigão Edvaldo Santana, cantor e compositor que descobriu o poceiro Ico do Violão quando foi morar em Itu, no interior paulista, e bancou a gravação do primeiro disco dele, aos 65 anos. Compositor, cantor e tocador de violão, artista anônimo desde menino, até então a fama de Ico na cidade vinha apenas do seu talento no ofício de abrir poços com a forquilhinha e no braço, como era antigamente.
Naquela ensolarada manhã de sábado, 21 de março, dia do seu aniversário de 74 anos, Almiro de Paulo Filho, o poceiro que virou cantador, já tinha me contado, nos mínimos detalhes, a história da sua vida, a vida de um brasileiro comum, desde que nasceu na Fazenda Soledade, em Inconfidente, antigo distrito de Ouro Fino, Minas Gerais.
Já estávamos caminhando de volta para o carro, depois de ele me mostrar o lugar onde trabalhou por vários anos na Pedreira do Varvito, hoje transformada num belo parque público, quando do nada lascou a pergunta que me deixou intrigado. O que seria “a vida mesmo de verdade”?
Como tinha deixado meu caderno no carro, fui fazendo anotações no talão de cheque, enquanto ele me contava baixinho um segredo bem guardado.
– O senhor não sabe, mas eu sou neto do Wenceslau Braz…
– Aquele que foi presidente da República?
– Este mesmo!
Difícil acreditar que aquele homem pobre e rude, semianalfabeto, que até hoje tem dificuldades para dar autógrafos em seus discos, pudesse ser neto bastardo do doutor Wenceslau Braz Pereira Gomes, o nono presidente da República do Brasil (1914-1918), que morreu em 1966, aos 98 anos, na cidade mineira de Itajubá. Diante da minha cara de incredulidade, Ico puxou pela memória para me contar como surgiu esse tão nobre parentesco.
Acontece que o talão de cheque acabou antes de eu começar a escrever esta reportagem, e com ele foram para o lixo minhas anotações. Por sorte, havia comprado dois discos de Ico em que tinha um telefone de “contato para show”: (011) 4023-3659. Ele mesmo atendeu, para meu alívio e, pacientemente, contou-me tudo outra vez, com uma novidade: pela primeira vez na vida, decidiu ir atrás da sua história e já planejava uma viagem a Itajubá, onde ainda vivem os descendentes do ex-presidente.
Foi assim: sua avó, de quem não sabe nem o nome, ainda era bem menina quando trabalhou como empregada na casa da família de Wenceslau Braz. “Aconteceu que ele pegou ela e fez o meu pai”, resume Ico, com a maior naturalidade, repetindo o que Almiro de Paulo, o pai, lhe contou, e amigos dele confirmariam mais tarde.
Ico não tem nenhum documento para provar o que está dizendo. “A gente que trabalha a vida toda não tem força para nada dessas coisas, nem para conversar. Eu trabalho desde os cinco anos na roça, nunca fui atrás desses documentos, mas em algum lugar eles devem estar.”
Por isso, agora, depois daquela nossa primeira conversa, o poceiro cantador se animou a ir a Itajubá para tirar as dúvidas sobre a sua origem. Ele só sabe que seu pai foi entregue aos cuidados de um amigo de Wenceslau Braz, o coronel Afonso Ribeiro. Em seguida, o coronel repassou-o ao fazendeiro Afonso Rebelo, que o criou, na fazenda onde iria trabalhar mais tarde, em Ouro Fino.
Almiro pai puxava um carroção com seis burros e teve seis filhos na Fazenda Soledade, a mesma onde Ico começou a trabalhar ainda pequeno. Ano que vem, pelas suas contas, completa 70 anos de trabalho. A mãe, Ana Jacinta de Paulo, trabalhava na colheita de café e ele a ajudava varrendo os grãos.
Como não havia escola por perto da fazenda, e a cidade ficava a 21 quilômetros, Ico não tem “nem primeiro ano”. Aprendeu a escrever o nome com uma vizinha, Angelina de Oliveira, que não era professora, mas procurava ensinar alguma coisa aos meninos da fazenda. Ficou trabalhando na roça até os 15 anos, época em que já tinha aprendido algumas músicas de Tonico e Tinoco, que lembra até hoje. A primeira foi “Camisa Preta”:
“Por esta camisa preta
Que eu muito tenho chorado
É o maior significado
De quem não posso esquecer”
Os pais já tinham se separado quando ele foi com a mãe e cinco irmãos morar em Campinas, na Fazenda Nova Esperança. “Eu era o mais velho e tive que ajudar a criar os irmãos. A mãe cuidava da casa da fazenda e eu trabalhava na lavoura, carpindo café, plantando algodão, milho, arroz… Os mais novinhos foram para a escola, estudaram até o quarto ano, mas eu tinha que trabalhar.”
Em 1956, veio parar em Itu, onde vive até hoje, entre idas e voltas, depois de rodar bastante, trabalhar e bater cabeça por vários outros lugares. “Tinha um senhor que morava lá em Campinas, que tinha um parente que morava em Itu. Vim com ele e acabei ficando, gostei daqui.” Foi também nesse ano que Ico começou a trabalhar na Pedreira do Varvito, oito horas por dia tirando pedras, literalmente. Só sairia de lá nove anos depois para arriscar a vida em Santo André, cidade da Região Metropolitana de São Paulo.
Para onde ia, levava com ele o violão que ganhou de um tio chamado Joaquim quando tinha dez anos. “A música para mim é tudo. Este tio tocava mal-e-mal, mas fui pegando o violão e apanhando as posição. Ponteava na corda fina e tinha vontade de tocar nas cordas grossas. O que mais toco agora é na corda grossa.” Logo que aprendeu algumas posições, começou a fazer suas próprias músicas. A primeira foi “Gotinha D’Água”, depois vieram “Mazuquinha de Ouro Fino” e “As Cordas Falam por Mim”, a música de que ele mais gosta.
Suas composições só tinham a parte instrumental, mas esta não foi uma escolha, não havia outra opção. “Minhas músicas não tinham letra porque faltava para mim saber escrever. As que eu cantava do Tonico e Tinoco lembrava tudo de memória.” Mas não ganhava nada com isso. Tocava e cantava em troca de uma pinguinha, uma cervejinha, nas festas dos fazendeiros.
Trinta anos atrás, quando voltou para Itu e já tinha 30 composições de solos para violão, virou o Ico Poceiro. Na falta de outro trabalho, aceitou ser ajudante de Luiz Poceiro. “Era um sujeito muito enjoado que dava o cano nos empregados, não pagava direito, mas aprendi tudo com ele.”
O mais importante foi aprender a usar a forquilhinha, uma técnica milenar de achar onde tem veio d’água caminhando pelos pastos das fazendas. Consiste em segurar as duas pontas de um galho, de preferência de goiabeira, com bastante força nas mãos, e apontar o terceiro para o chão, até ele vibrar. Ico explica:
“A forquilhinha é uma bênção de Deus e eu logo vi que tinha o dom. Você vai andando pelo pasto, apontando a forquilhinha para o chão, tem que ficar bem concentrado. Quando vai chegando a meio metro de um veio, o corpo fica pesado, não aguenta mais andar, parece que estão acorrentando o teu pé. Ela bodoca (verga) para a frente com força, ninguém segura…”
Assim ele já abriu 150 poços em Itu, o mais profundo com 31 metros. Com a chegada da luz, das bombas elétricas e da água encanada, o trabalho de achar veios com a forquilhinha e abrir poços foi fracassando. Só tem surgido pedido para abrir fossas sépticas. Em seu último trabalho nesse ramo, abriu sete fossas, de dois metros de diâmetro por quatro de profundidade. Levou um mês para entregar o serviço. Com três ajudantes, ganhou R$ 1 mil por fossa. “Eu quero continuar no serviço de poceiro, mas a turma em casa não quer, acha que estou velho…”
Ico do Violão agora é só artista, com três discos gravados e tudo. No final do ano passado, ganhou o primeiro diploma da sua vida, por sua participação na 10ª edição do Concurso Banco Real de Talentos da Maturidade, na categoria “música vocal”.
A vida do poceiro começou a dar uma guinada em 2000 por causa de um jogo de futebol de várzea que ele nem viu. Em campo, estava Edvaldo Santana, 53 anos, líder da banda Matéria Prima, parceiro de Tom Zé, cantor e compositor popular, fanático por futebol, que tinha acabado de se mudar para Itu.
Edvaldo logo arrumou um time para jogar e foi no campo que conheceu Beto, um dos cinco filhos de Ico e Terezinha de Jesus Ortiz de Paulo, ela também cantora, casados faz mais de 50 anos. Tomando a cerveja de lei depois da pelada, ficou sabendo que o pai de Beto também era compositor e bom de violão. Pegou sua bicicleta e foi direto para a modesta casa de Ico, no Parque Nossa Senhora da Candelária.
A partir daí, os dois nunca mais se largaram. Depois de ouvir, encantado, algumas das suas composições, Edvaldo perguntou a Ico se já tinha gravado aquelas músicas. “Eu tenho muita vontade de gravar, mas não tem jeito, não tenho dinheiro pra isso.” Como Edvaldo ainda tinha direito a algumas horas de gravação num estúdio de Salto, cidade vizinha, em troca de um serviço que prestara, levou Ico para lá e cuidou de tudo, arcando com os custos.
Com os cem CDs gravados debaixo do braço, o novo artista velho de guerra tratou de vendê-los ele mesmo, a R$ 10,00 cada. Como há muitos anos toca de graça num programa musical da Rádio Convenção de Itu, Ico aproveitou para fazer também a divulgação do seu disco.
Cercados de amigos que estão começando a preparar um churrasco no quintal da casa de Edvaldo, os dois se divertem ao lembrar do início da carreira artística de Ico como profissional. “Agora ele até aprendeu a cobrar um pouquinho pelos shows”, conta o compositor de “Cara Carol”, “Lobo Solitário e “O Jogador”, entre outros sucessos, que já levou Ico para acompanhá-lo em palcos de Campinas e no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Não é muito, mas ajuda, um dinheirão para quem antes se apresentava de graça: são R$ 200, R$ 300, R$ 500, por apresentação, conforme o lugar.
Abrir poços ou fazer música, o que ele prefere?
Ico dá uma gostosa gargalhada quando lhe faço essa pergunta besta – “para mim parece que é a mesma coisa…” – e responde com os versos de Edvaldo Santana, como costumava fazer o grande Patativa do Assaré :
“O toque da viola
Fala pela roça
Quando fura poço
Quando vira poça.
Água com viola
Samba de ponteio
A água só para
Quando chega o veio.
Terra tá molhada
Boteco tá cheio
Onde tem viola
O homem tá no meio”
O momento em que fazem mais sucesso nesses shows é quando cantam “O Sol e a Lua”, que não é música deles, mas do pai de Terezinha, Sebastião Roque Ortiz, falecido faz 20 anos e, segundo Ico, foi “o número um dos cantadores de cururu no Estado de São Paulo”.
O acaso que marcou o encontro desses dois artistas brasileiros vindos para Itu de pontos tão distantes e de origens tão diferentes – Edvaldo é de São Miguel Paulista, periferia da zona leste paulistana, e sempre foi ligado aos movimentos populares – é celebrado quando eles empunham a viola e soltam o vozeirão para cantar os primeiros versos de “O Sol e a Lua”, um sem olhar para o outro:
“O sol com a lua se encontraram um belo dia
Os dois planetas começaram a conversar.
Mas a lua para o sol ela dizia
Que deste jeito nós não pode continuar.
Você sai e enche o povo de alegria
E quando eu saio todo mundo vai deitar”
Feliz com a primeira entrevista que deu na vida, Ico do Violão agradece e brinca comigo: “Quem sabe agora começo a ganhar um dinheirinho…” Danado que só ele, guardou o melhor da história, o seu secreto parentesco presidencial, para me contar quando eu já tinha me dado por satisfeito e guardado o caderno, faltando só o Mané Marques fazer a parte dele.
Da Pedreira do Varvito, onde ele me contou o segredo de Wenceslau Braz, seguimos para a casa de Ico, que ele mesmo construiu, tijolo a tijolo e telhado de amianto, onde a família preparou um belo almoço de aniversário para este novo pop star de Itu.
Tinha de tudo: galinhada, churrasco, feijão gordo, pernil e maionese, aquela farta misturança que nunca falta nas festas dos brasileiros mais humildes. Só foi difícil ajeitar para tirar a foto o monte de parentes, vizinhos e amigos, umas 70 pessoas para 40 quilos de carne, na sala de visitas e em torno da mesa no puxadinho da entrada da casa. É o sucesso, ainda que tarde.
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