Vai começar o espetáculo com transmissão ao vivo pela TV, direto de Avaré. Os poucos hotéis da cidadezinha estão lotados. As sedes das fazendas também. Sob uma lona, fervilham quase todos os sotaques do Brasil e curiosos personagens: pode ser um negro alto que não tira o chapéu nem em noite de gala; um ex-governador de tez pálida e rosto comprido; um falante e alegre exportador de castanhas-do-pará; um mineiro que já sofreu muito na “panha” do café e que só foi calçar sapatos aos 12 anos de idade; ou mesmo uma bonita e esguia apresentadora de TV.
São apenas algumas das figuras atraídas pelas luzes da abertura do milionário circuito de leilões de gado nelore de elite no Brasil. Muitos criadores, peões, empresários, políticos, artistas, doutores, experts, apaixonados ou apenas curiosos que querem dar uma bicadinha. Se o dia é reservado para o julgamento dos animais, a grande atração fica para a noite, quando alguns dos melhores da raça vão a leilão e o martelo vai bater nervoso ofertas milionárias.
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Pode uma vaca valer tanto? Dinheiro que dá para comprar uma, duas, três fazendas? Pode. No show milionário do sagrado boi branco da Índia tudo é possível. Por entre a fumaça de cigarros e charutos, mulheres bonitas, tilintar de copos de uísque, musiquinhas de telefone celular, corre muito dinheiro, suspense e paixão. noite lembra um pouco a festa do Oscar. Fotógrafos, cinegrafistas, homens e mulheres chiques descendo de carrões e gente se aglomerando na porta só para ver quem está chegando.
Quem é este homem franzino que desce agora de um carro preto, cercado de assessores, seguranças e até de um violeiro? Ele é recebido com muita festa. É o mineirinho de Inconfidentes, o tal que só calçou sapatos aos 12 anos: Norival Bonamichi, o dono da Ouro Fino – um conjunto de indústrias de produtos veterinários, com sede em Ribeirão Preto (SP), que abastece o mercado nacional e exporta para 28 países. Vende remédio até para os criadores de dromedário na Mauritânia.
Há quatro anos, Norival resolveu entrar também para o milionário negócio do nelore de elite. Montou um criatório próximo a Ribeirão que hoje está entre os melhores da raça no País. Não foi tarefa fácil. Entre os criadores de nelore fino estão não só grandes fazendeiros, mas também pesos pesados do empresariado nacional. Acompanhado por um verdadeiro séquito, chamando a todos de “amigo querido”, Norival circula com desenvoltura entre os criadores de gado de elite.
Não é amigo só, por exemplo, do principal executivo da Nestlé, Ivan Zurita, o homem que promove o leilão desta noite, ou de políticos e grandes fazendeiros, como também dos garçons e das garçonetes, dos peões que cuidam dos bois. De todos recebe abraços e sorrisos. Não esquece sua origem humilde e dá atenção aos empregados. Tira discretamente uma nota de R$ 50 do bolso e passa a um garçom, fazendo de tudo para que ninguém perceba, gesto que repetiria muitas vezes com trabalhadores anônimos da festa milionária.
Chifres e juízes
Antes de começar o leilão propriamente dito, em amplos ambientes com sofás e mesas espalhados com bom gosto, homens e mulheres circulam entre bois, vacas e bezerros contidos em baias. O recinto lembra um circo muito chique. Um cassino caboclo. Garçons de gravata-borboleta e garotas bonitas rodam servindo bebidas e petiscos. Circulando, pode-se ouvir:
– Ô, Norival, me vende aquela novilha, a “Perobinha”! – propõe um fazendeiro.
– Pra você eu não vendo. Eu dou, amigo querido! – responde Norival.
O fazendeiro ri, certamente sabendo que era uma brincadeira, um jeito simpático de recusar a oferta pela novilha. Ouvem-se também coisas que nada têm a ver com gado:
– O ex dela está casadíssimo agora! – conta uma mãe ao ouvido da filha.
Qual rês é a mais bonita, a melhor, quanto vale? Para o leigo são perguntas impossíveis de responder. São todas bonitas, sadias, gordas e brancas. Só os chifres mostram diferenças umas têm, outras não; umas os têm para cima, outras para trás, “penteados”, como eles dizem. Mas os chifres são apenas um detalhe. Há muitos outros componentes que se deve levar em conta. Quais?
Um doutor entre os convivas
Um dos maiores especialistas em nelore, considerado referência internacional, é o médico veterinário Arnaldo Borges, o doutor Arnaldo ou, para os mais íntimos, o Arnaldinho de Uberaba. Mineiro de fala mansa e pausada, de jeito tímido e calmo, passeia pelo salão, entrando e saindo de rodas de conversa. Ele, sim, pode dizer quais são as características de um bom nelore.
– São muitos itens importantes. É preciso fazer cursos e conviver muito com gado para distinguir uma rês de qualidade. A gente está sempre aprendendo.
Arnaldinho, de tradicional família de pioneiros do zebu de Uberaba, os Borges, é considerado um dos melhores juízes de pista do país – aquele que avalia quem são os melhores animais da raça – e um dos mais requisitados para os julgamentos, leilões, ou para prestar assessoria aos criadores. Sua agenda está sempre cheia, com viagens pelo País e pelo exterior.
Chega um ex-governador
Um homem alto e magro, de rosto pálido, entra no circo. Rodas se formam à sua volta. Abraços e sorrisos para fotos. É o ex-governador de São Paulo Orestes Quércia. Empresário e cafeicultor de sucesso, ele agora também está no negócio do boi branco de elite. Difícil se aproximar para uma conversa sobre bois. Depois de certa insistência, ele se dispõe, com aquele seu jeitão, levantando levemente o corpo nas pontas dos pés e sempre com um braço enfiado às costas. Pergunta com voz forte, tarimbada nos palanques da vida:
– Diga, homem, o que você quer?
– O nelore é um bom negócio?
Ele ri:
– Espero que seja…
Nascido na roça, onde o pai criava um gadinho mestiço sem muito valor, em Pedregulho, interior de São Paulo, o ambiente já não lhe é estranho:
– Há quatro anos entrei para o negócio do nelore de elite e estou gostando. Já produzo café fino, agora é a vez do gado fino…
Ele entrou no ramo para valer, com disposição profissional, e já é dono de alguns animais importantes, como metade da novilha “Nalisha”, avaliada em mais de R$ 2 milhões. Ser dono de metade de uma rês é coisa comum no negócio de nelore. Às vezes, formam-se até condomínios de criadores para comprar um animal valioso. Antes de começar, Quércia tomou o cuidado de aprender sobre a raça e chegou a fazer um curso de juiz com o pessoal da Associação Brasileira de Criadores de Zebu (ABCZ), de Uberaba. Para ele, concursos e leilões são importantes para a pecuária nacional:
– Aumentam as disputas entre os criadores, que investem mais no aprimoramento genético do gado, o que acaba se espalhando pelos pastos.
Como Quércia é o atual presidente do PMDB paulista, a pergunta sobre política é inevitável:
– Qual seu candidato à Presidência da República em 2010?
O homem matreiro de Pedregulho olha para o chão, pensa durante uns dez segundos, dá um tapinha amigável no braço do repórter:
– Meu negócio agora é café e nelore, de política eu tô fora(*).
E sai, recebendo abraços e posando para fotos, com o sorrisão de político-fazendeiro.
Beldades da TV
Na prévia do leilão, o gado é retirado das baias e levado para uma passarela forrada com serragem vermelha, como se fosse um tapete. É a apresentação formal do rebanho a ser leiloado. Um locutor vai discorrendo sobre cada animal: nome, idade, proprietário, ascendência. Umas 500 pessoas se aglomeram próximo à passarela para ver as estrelas da noite.
Por volta das 23 horas, os convidados vão para um imenso salão onde será realizado o leilão. A iluminação é especial, o ar-condicionado faz algumas pessoas tiritar de frio e a música é alta. À frente das mesas, num plano mais alto, o palco onde, puxadas pelos peões, desfilarão as reses. É lá que também fica o púlpito e o microfone onde o leiloeiro vai berrar os reais ofertados pelos criadores. É ali que um casal jovem entra em cena: os apresentadores de TV Edu Guedes e a loira altíssima Ana Hickmann. Surge também um dos principais personagens da noite, o leiloeiro João Gabriel, homem de voz forte e frases de efeito: agradece a Deus pelo momento e ao patrocinador do leilão.
Vai começar o leilão
O executivo Ivan Zurita, em sua faceta de criador, sobe ao palco e abre oficialmente o primeiro leilão de nelore de elite de 2008. Aplausos. João Gabriel anuncia o “Hino Nacional”. Todos ficam de pé. Tem gente que segura o chapéu debaixo de um braço e coloca a outra mão sobre o coração. Atenção, senhoras e senhores, vai começar o leilão. A rês mais valiosa do rebanho deslocada para Avaré, a “Vala”, uma vaca de 5 anos, é a primeira a ser apresentada. Aos olhos do leigo, um primor: enorme, gorda, bonita, altiva, chifres penteados. Que defeito pode ter? Quanto vale? João Gabriel explica que as vendas desta noite serão em 14 parcelas mensais, faz uma minuciosa descrição da vaca, seus pais, seus avós, bisavós, criador etc., e pergunta, gritando ao microfone com insistência:
– Eu quero saber quanto vale! Eu quero saber quanto vale! Olha que animal espetacular! Olha o aprumo dessa vaca!
O primeiro lance já vem alto: R$ 100 mil de parcela, R$ 1,4 milhão no total pela rês. Mas logo alguém faz um gesto oferecendo R$ 210. Outro gesto: R$ 220! Mais: R$ 230! Outros mais: R$ 240! R$ 250! Quanto mais alto o lance, mais o público aplaude.
– R$ 250! Eu tenho R$ 250! Quem dá mais? – grita o leiloeiro.
E os pisteiros, os homens que ficam espalhados pelo salão para receber os lances e transmiti-los com um gesto de mão ao leiloeiro, gritam:
– Ê, leilão! Ê, nelore!
Recorde mundial
Um pisteiro faz um gesto e o leilão vai à loucura. O leiloeiro grita animado:
– R$ 260 mil de parcela! Eu tenho R$ 260 mil! Quem dá mais? Quem dá mais?
Aplausos.
– Ê, leilão! Ê, nelore! – R$ 260 mil! Quem dá mais, quem dá mais? Vou vender! Vou vender! Posso vender?
Abaixa um pouco a voz:
– Esperei! Vou vender! Vou vender! Esperei… Corre os olhos pelas mesas. Bate forte o martelo:
– Vendi! “Vala” é vendida por R$ 260 mil de parcela.
Segundo o leiloeiro, acabava de ser batido em Avaré o recorde mundial para um animal da raça nelore: R$ 3.640.000. Aplausos calorosos e João Gabriel brinca ao microfone:
– A Ana Hickmann bem que deveria ter aceitado receber o seu cachê em vaca…
Ela arregala os olhos boquiaberta com o preço atingido pela vaca:
– É mesmo!
“Vala” pertencia a dois criadores, Benedito Mutran Filho e José Francisco Diamantino, ambos do Pará, e foi comprada por um deles, o José, que, como já era dono de metade da vaca, teve de desembolsar só a metade, pouco mais de R$ 1,5 milhão. Curioso é que o penúltimo lance, de R$ 250 mil de parcela, fora dado pelo outro sócio, Benedito Mutran. O leilão continua, mas sem nenhum lance tão sensacional. Ao final, por volta das 2 da madrugada, os promotores, Ivan Zurita e Silvio Profheta, contabilizam o sucesso da noite: 29 lotes vendidos pelo valor total de R$ 13.335.000, com média de R$ 480.517,24 por animal.
É hora dos comentários
É servido o jantar. É hora de comentar os negócios. A apresentadora Ana Hickmann não imaginava que um leilão fosse tão empolgante.
– A beleza dos animais, a energia do leiloeiro, a velocidade dos negócios me impressionaram – diz ela. Ficou tão entusiasmada que já pensa em entrar para o negócio, como outros do showbiz que já são criadores: Ivete Sangalo, as duplas sertanejas Bruno e Marrone, Teodoro e Sampaio, Rionegro e Solimões, Zezé Di Camargo.
– Tive vontade de levar todas as reses para casa! Estou estudando esse negócio para ver se tenho condições de entrar e fazer uma boa gestão.
Se ela entrar, não estará sozinha. A presidência da Associação dos Criadores de Nelore é ocupada por uma mulher, Alice Ferreira, e há várias criadoras de sucesso, como Cláudia Junqueira, a Claudinha, e Bia Biagi, ambas da região de Ribeirão Preto, Isabela Figueiredo, do Vale do Paraíba, e Rosana Gambá, de Uberaba.
Quércia e Bonamichi
O ex-governador Orestes Quércia bate papo com Norival Bonamichi. Os dois, que gostam de moda de viola e de um jogo de truco, têm muito em comum: origem caipira, criados na roça e, como se diz, “subiram” na vida. Provocado pelo repórter sobre se gostaria de ter comprado a “Vala”, o ex-governador dá mais um risadão e aponta para o amigo:
– Não é para o meu bico. Isso é coisa para o Norival! Norival até que chegou a dar alguns lances, mas, quando percebeu que os dois proprietários estavam na briga pela posse da vaca, elegantemente interrompeu as ofertas.
O olho clínico de peão
José Bonifácio de Almeida Filho, o Zezão, um negro alto e risonho de 38 anos, que nasceu em Veríssimo, perto de Uberaba, e que não tira nunca o chapéu branco da cabeça, ainda não subiu tanto como Quércia e Norival, mas está a caminho. Peão na região de Uberaba, não demorou a descobrir que tinha um olho clínico danado para enxergar os defeitos e as qualidades de uma rês.
– Eu tenho a cabeça boa para lembrar quem é o pai, o avô da rês. Sempre dou notícia de tudo… – diz, referindo-se ao conhecimento que tem da genealogia do gado.
Ele foi contratado pelo Grupo Opportunity, de Daniel Dantas e Carlos Rotemburgo, para cuidar do rebanho PO (puro de origem) nas fazendas do grupo em Uberaba e no sul do Pará. Zezão, que estudou até a 4ª série ginasial, explica com simplicidade como se escolhe uma entre dez:
– É que nem mulher. Se “pôr” dez na passarela, a gente num vai saber qual é a mais bonita… A fêmea tem de ser uma miss, feminina, delicada. O macho tem de ter ossatura forte, estrutura boa, um atleta…
Mas acaba concordando que o olho para reconhecer uma boa rês é um dom raro:
– Tem gente que mexe com gado a vida inteira e não sabe separar o bom do ruim.
Moda de viola
O leilão acabou, o jantar já foi servido e num outro ambiente distante há um show com um grupo cantando músicas dos Beatles. A madrugada já se adianta, mas muitos ainda permanecem em rodas de conversa animadas. Norival Bonamichi, que não anda sem seu violeiro preferido, o Nenê, um mulato paranaense alto, pede que ele cante. E ouve-se, então: “As garça dão meia vorta senta na beira da praia / Ai, ai… / O coração fica afrito bate uma outra faia…”.
A primeira noite do primeiro leilão do circuito milionário do boi indiano está acabando – até o final do circuito serão mais de cem leilões. Benedito Mutran Filho, um alegre e falante exportador de castanhas-do-pará, o homem que acaba de vender a metade da vaca nelore mais cara do mundo, é quem define em três palavras o que o leilão significa:
– Emoção, vaidade e dinheiro.
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