O silêncio dos casais

O que diferencia o relacionamento de um casal de qualquer outro tipo de relação é a presença das relações sexuais. Em outros contatos pode existir amizade, colaboração, compreensão, aspectos que, é de se esperar, também estejam presentes no casamento. É curioso que duas pessoas, pelo fato de morarem juntas, se considerem casadas, mesmo faltando o elemento principal que caracteriza a união.

A relação de um casal é muito fácil de ser construída e muito difícil de ser sustentada dentro de certo grau de satisfação. É difícil, especialmente porque tem de dar conta de muitas funções ao mesmo tempo, além do desgaste que provoca a convivência. Outras relações, como a de amigos, colegas ou mesmo de funcionários e patrões, são situações mais recortadas e, portanto, menos densas.

O casal, para funcionar bem, precisa contar com uma boa dose de afeto, companheirismo, respeito pelo outro, capacidade de renúncia e tolerância à frustração. Para poder contar com essas capacidades, a pessoa precisa ter alcançado certa maturidade, que não chega como brinde só porque decidiu se casar ou morar junto.

Atualmente, observamos que o número de separações continua aumentando, porém o dado novo é que o casal se encaminha para o divórcio mais rapidamente que em épocas passadas, ou seja, com muito pouco tempo de convivência. Antes, falávamos das crises matrimoniais dos cinco anos, agora acontecem aos cinco meses. Dessa forma, podemos inferir que a intolerância entre os parceiros aumentou e o sofrimento da vida a dois tem de ser resolvido de imediato.

Sabemos que o início do casamento é difícil, pois é preciso tolerância de ambas as partes e ajustes. São dois mundos se encontrando, às vezes totalmente distintos, especialmente se os parceiros pertencem a culturas com valores e costumes que podem chegar a ser, até, contraditórios. Mesmo quando as diferenças não são tão gritantes, podem existir diversas formas de gerenciar a casa, de organizar a economia, de ritmos de trabalho, etc. Esse descompasso já existia na época do namoro, só que naquela etapa ele foi negado ou relevado, e se manifesta mais cruamente na hora da convivência. As diferenças são decorrentes da personalidade de cada um, da história que carregam, do modo como foram educados e da classe social à qual pertencem. A única maneira de não ter de lidar com isso seria poder casar com um clone. Ou seja, em todo casal um tem de aprender a se articular com as diferenças que o outro apresenta. Percebemos que muitos casais atualmente não têm tolerância para atravessar essa primeira fase de adaptação que exige a convivência e, rapidamente, encaminham-se para uma separação, isso porque a ilusão e o glamour que sustentaram a etapa de namoro caem rapidamente quando encontram a difícil realidade do dia a dia.

Outros casais podem ter atravessado melhor a primeira etapa de adaptação, porém desandam com a chegada dos filhos, o que exige uma reacomodação do relacionamento: ao se tornarem pai e mãe, os cônjuges têm de corresponder a todas as demandas que essa empreitada exige. Aqui, os desentendimentos podem ser provocados porque a mulher, geralmente, se apega demais ao filho, ela se sente muito responsável e não encontra espaço para o relacionamento conjugal. Nessas situações, o marido reclama pela “ausência” da esposa, e a mulher se sente totalmente incompreendida e sozinha. Cria-se uma situação de impasse na relação e cada um fica entrincheirado, observando o outro do seu lugar de mágoa e ressentimento. Percebem que cada coisa que tentam defender ou comunicar é mal interpretada. Dessa forma, sentem-se, os dois, mal compreendidos e pouco acolhidos, cada um em suas próprias necessidades. As trocas afetivas diminuem e, as sexuais, se espaçam ou amortecem. O casal pode escolher o silêncio como forma errônea de aliviar o sofrimento. Se não houver entendimento, em vez de acobertar o problema, é melhor procurar ajuda. O silêncio maltrata a relação, afasta os parceiros e cria zonas de distância e vazio, o que pode ser perigoso, dado que cada um vai tentar resolver a falta de gratificação com outras formas de prazer. Podem escolher o refúgio em um mundo próprio, onde o outro não entra. Atualmente, é muito fácil, com a ajuda da internet, inventar relacionamentos virtuais que criam a ilusão de preencher os espaços afeitos dos quais estão carentes.

Observamos outro grupo de casais com mais tolerância à frustração e não pensam em se separar, porém não conseguem viver bem: os administrativos.

Chamo de casal administrativo aquele em que os parceiros podem ser relativamente eficientes para cuidar da casa, dos filhos e de seu trabalho, mas não alcançam um funcionamento razoável entre si. Não conseguem cuidar da relação afetiva e muito menos do relacionamento sexual, que fica com uma frequência comparada à dos casais na faixa de idade dos 60 anos, não na etapa dos 30 ou 40 anos, como eles poderiam estar. São pessoas que, quando têm problemas, preferem se calar para não falar sobre o tema. Sem conversa, não há como administrar diferenças. Sem comunicação, não alcançam um entendimento.

Temos de admitir que o homem, geralmente, é bastante resistente a querer conversar sobre a relação, odeia quando a sua mulher diz: temos de refletir sobre o que está acontecendo conosco e pensar a respeito da nossa relação. Aqui, temos uma diferença grande de gênero.

O homem pensa que pode resolver na horizontal um problema que aconteceu na vertical. Assim sendo, é capaz, depois de passado um tempinho de uma disputa que ficou sem resolver, de já estar pronto para convidar sua mulher para ir para a cama.

A mulher, pelo contrário, só consegue resolver na vertical o que aconteceu na vertical. É incapaz de se aproximar do parceiro se tiver um conflito não resolvido e que ainda está em sua garganta para ser falado e destrinchado.

Essa diferença de gênero, às vezes, deixa os parceiros muito perplexos, porque um não entende a conduta do outro. Assim, sentem-se totalmente incompreendidos pela pessoa que está mais próxima deles e não conseguem conversar, nem sobre a diferença de gênero nem sobre as outras que os separam.

Há outros casais que até conseguem abrir um espaço para tentar falar, porém rapidamente a conversa se encaminha para um lugar de ringue, onde é levantada uma série de cobranças e acusações mútuas, impedindo qualquer reflexão. Nesse clima, nenhum dos cônjuges consegue assumir a sua parte de responsabilidade na construção da situação de conflito que foi criada pelos dois.

Cada parceiro está mais interessado em provar para o outro que está certo, e que é o outro que está errado, no lugar de abaixar a guarda e tentar se entender. Como esse clima belicoso é muito desgastante, o casal tenta desativar as “bombas” que vão aparecendo no dia a dia, escolhendo como “solução” também o silêncio. Não falam especialmente dos temas que, antecipadamente, já sabem que resultarão em desentendimento, evitando transitar por um campo minado. O inconveniente dessa conduta é criar cada vez mais espaços de distância e de desinteresse na relação.

Sabemos que esses distintos tipos de casais são considerados socialmente como tais e que, também, eles assim se reconhecem por terem uma vida chamada “em comum”. Mas, na realidade, seria mais acertado falar que são pessoas que vivem sob o mesmo teto, porém transitando vidas paralelas sem intercâmbios reais nem trocas verdadeiras.

Infelizmente, as pessoas que vivem nesse estado de insatisfação e penúria afetiva existem em muito maior número do que se pensa. A justificativa para tolerar uma vida tão árida pode ser religiosa ou por causa dos filhos, por situações econômicas, ou por medo de mudanças e ter de reconhecer o fracasso do casamento. Seria importante que o casal refletisse para observar como realmente estão vivendo.


*Psicanalista e terapeuta de casal e família e supervisora de Família na Clínica de Anorexia e Bulimia do Instituto Sedes Sapientiae. Autora do livro Introdução à Terapia Familiar (Editora Claridade).


Comentários

Uma resposta para “O silêncio dos casais”

  1. Quantas verdades sao ditas nesse texto

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