Verão em São Paulo. Tarde amena de garoa. O asfalto úmido da Rua Augusta registra os passos de Wilson das Neves. Estacionados na guia irregular, sob um par de sandálias de couro, os pés aguardam um táxi que nos leva à Praça Roosevelt, sede de várias companhias teatrais e reduto boêmio da classe. Minutos antes, dentro da discreta suíte do hotel – onde um piano de cauda, branco, com ares de John Lennon “Imagine” jaz solitário no hall -, das Neves veste uma camisa elegante, o usual chapéu, e me pergunta se deveria calçar sapatos. Hesitante, concluí que não seria eu quem diria a ele o que fazer com aquele par de pés calejados por infinitas horas no comando de pedais de bumbos e de chimbais. Pés que deixaram suas marcas em álbuns de mais de 600 diferentes artistas da música brasileira e mundial. Das Neves tem hoje 72 anos. Desde 1959, quando debutou em um estúdio da Copacabana Discos, é um dos coringas da indústria fonográfica quando o assunto é bateria. Há 11 anos, assumiu a faceta de cantor e compositor de samba. Já esteve a serviço de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Roberto Carlos, João Gilberto, Tim Maia, Wilson Simonal, Jorge Ben Jor e um sem-número de artistas. Já tocou samba, bossa nova, tropicália, jovem guarda e o que viesse pela frente com a mesma intensidade e alegria com que tocava sua própria música em álbuns instrumentais que soam como retratos de um longínquo Brasil dos anos 1960 e 1970.
Chegamos ao Papo, Pinga e Petisco, olhos atentos, das Neves logo põe à prova a velha memória. O local, reza a lenda, foi o primeiro a receber a cantora Elis Regina em São Paulo. O baterista não confirma, nem desmente, diz que ali era o velho Djalma’s, mas que a gauchinha mandava brasa, de fato, era no bar vizinho, o famigerado Baiúca, onde cantava assessorada pelo Zimbo Trio. Wilson passa a relembrar de seu início de carreira. Revela que a paixão pela percussão e pelo ritmo nasceu, ainda na infância, vivida no Méier, subúrbio da zona norte carioca, nas copiosas festas de uma tia e nas frequentes visitas aos cultos de candomblé, onde o batuque hipnótico dos tambores acabaria por levá-lo do transe ao desejo de tocar. Nos bailes da tia, a coisa foi ficando tão séria que, não tardou, havia um conjunto para animar a festa. Logo, ficaria íntimo do baterista Edgard Nunes Rocca, vulgo Bituca, que também tocava em orquestras de bailes. Das Neves já tinha 18 anos e ingressara no Exército, quando, de tanto frequentar os bailes com Bituca, viu-se seduzido pela vontade de assumir o comando das baquetas.
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Viver de música e mergulhar em um incrível ciclo de criação passou a ser o norte do baterista. Do período áureo da música criada às sombras do desenvolvimentismo bossa nova de Juscelino Kubitschek até o final daquele primeiro quinquênio dos anos 1960 – quando a bossa ainda não competia com a jovem guarda, mas começava a ser colocada em xeque pelas patrulhas da canção de protesto -, das Neves envolveu-se em registros instrumentais antológicos como o célebre Coisas do Maestro Moacir Santos, Os Ipanemas, álbum de 1964 do combo homônimo, e Aquele Som dos Gatos do grupo Os Gatos. Ao lado dos Catedráticos de Eumir Deodato, imprimiu, às belas e intrincadas melodias, a cadência malandra de sua bateria em álbuns primorosos como Idéias, Ataque! e Samba Nova Concepção. Das Neves alcança prestígio popular com o álbum Elza Soares – Baterista: Wilson das Neves. Ao final da década de 1960 decide lançar seus próprios álbuns. Sem abrir mão da brasilidade, lança seu primeiro disco solo, intitulado Juventude 2000 e o novo repertório ganha acentos bem sintonizados com a música pop produzida naqueles idos de 1968. Do rock ao funk, do soul aos ritmos caribenhos, do samba ao boogaloo, do jazz ao baião, a bossa de das Neves vai se impregnando de modernidade neste e nos outros três álbuns que viriam a seguir: Som quente é o das Neves (1969), Samba Tropi, até aí morreu Neves (1970) e O Som quente é o das Neves (1976).
Os anos 1980 parecem fechar um ciclo. Marcam a volta de Wilson às compulsivas horas de estúdio e o baterista associa-se ao conjunto que suporta o compositor Chico Buarque, de onde reina absoluto no comando das baquetas até hoje. Segredo para muitos, tinha ambição de ser compositor e escrevia suas coisas, desde meados da década de 1970. Ao receber um convite para um novo álbum instrumental, em 1997, decidiu propor um disco com suas canções. Por conta de uma simples fita de amostra do repertório, foi convidado a assumir os vocais. Desde então, Wilson acumula dois álbuns autorais: O Som Sagrado de Wilson das Neves, de 1997 e Brasão de Orfeu, lançado em 2004. Na ocasião desta entrevista, esteve em São Paulo, para o último de uma série de shows no Studio SP, casa noturna na mesma Rua Augusta onde estava hospedado. Horas mais tarde, Brasileiros foi conferir a apresentação e, a despeito do samba de Wilson não trazer nada de novo e revolucionário, um público bastante jovem e empolgado lotou a casa para recebê-lo no exercício de sua expansiva simpatia. Elegante e discreto crooner, acompanhado de seu bem entrosado quinteto, das Neves segue desfilando uma série de canções que reverenciam o samba, exibindo, orgulhoso, o verde da sua Império Serrano estampado no lenço que ornamenta o bolso do paletó. Ao fim de cada canção é aplaudido calorosamente, com direito a assovios e casais dançando coladinho, ao que volta a fascinar a todos com a astúcia de quem, do fundo do palco, conhece bem os maneirismos do showbiz. É conhecido pelo bordão “Ô sorte!” e concluo que seu elevado bom humor talvez se deva muito a ele se impor como um afortunado diante das coisas da vida. Em sua mais famosa canção, escrita em parceria com Paulo César Pinheiro, insiste em afirmar que o samba é seu dom. Alguém ali haveria de duvidar?
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