O entusiasmado público que lotou o auditório do SESC Pinheiros na noite do último sábado (27) testemunhou a aparição de uma lenda da música popular do século XX. Protagonista de um dos mais fascinantes e controversos capítulos da história do jazz, aos 81 anos, o papa do free, Ornette Coleman, surgiu acompanhado de seu trio e foi recebido sob intensa ovação. Foram mais de três minutos de entusiasmados aplausos, em pé. Do primeiro ao último instante da apresentação, ele não falou uma palavra sequer e, mesmo assim, ganhou a empatia de todos. Não foi para menos. Inspirado, Ornette armou-se de seu sax alto, e estabeleceu um generoso e emocionante diálogo com a plateia. A música foi, desde sempre, sua mais rica manifestação de linguagem, e ele exerceu essa vocação em uma apresentação exemplar e emocionante.
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Do começo difícil no Texas – onde viveu dias de anonimato e, por quase uma década, foi desdenhado pela indústria fonográfica -, desde que debutou em Something Else!!!! – The Music of Ornette Coleman, de 1958, Coleman construiu uma sólida, prolífica e regular carreira, que soma quase cinquenta títulos lançados. Free Jazz, de 1960 elevou a extremos absurdos a fórmula inovadora do be-bop de Charlie Parker, Dizzy Gillespie e John Coltrane – inventores radicais que já haviam causado um estrago de proporções assombrosas para o jazz ortodoxo que vinha sendo feito nos anos 1950. Em 1962, quando enfim, consegue inscrever seu nome no topo da lista dos defensores de novos rumos para o jazz moderno – e também ajuda a resgatar a importância do sax alto, seu instrumento de berço, que vivia dias de abandono -, Ornette experimentava um êxito comercial inédito e, curiosamente, optou por embarcar em uma temporada de dois anos de reclusão, e passa a dedicar-se ao aprendizado do violino e do trompete.
Quando esses elementos passam a integrar sua música, em um primeiro momento, ele sofre grande represália da crítica especializada, que vê na incipiência de Coleman, na execução dos instrumentos, um argumento fácil para condenar sua empreitada. Logo depois, entenderiam que seus propósitos iam muito além de ser um virtuose. Ao adotar os novos instrumentos, o saxofonista queria mesmo era provocar essa reação de estranhamento, agregando a sua rica teia de referências – música atonal, camerística, erudita, blues rurais e spirituals – uma pitada de cacofonia e desconcerto. Quem conhece a obra de Coleman bem sabe que existem predicados que não podem ser aplicados a ele, e a previsibilidade deveria estar no topo dessa lista.
Acompanhado do filho Denardo – que aos 10 anos debutou ao lado dele no álbum The Empty Foxhole, tocando bateria -, o exímio contrabaixista-acústico Tony Falanga, e o contrabaixista-elétrico Albert MacDowell, Ornette vem criando novos temas e realizando apresentações regulares, com esse quarteto, desde 2000. A parceria rendeu, em 2006, o álbum inédito Sound Grammar, e é patente um entrosamento total dos músicos. Denardo, em particular, parece ter herdado do pai a sede pelo improviso. Deu um show à parte em seu kit. O ponto baixo da cozinha foi o contrabaixo elétrico de MacDowell. Desnecessário ser um profundo conhecedor dos timbres de instrumentos de corda para concluir que, do amplificador de MacDowell, surgiria um timbre cru de guitarra bluesy, resultante da integração de um pedal de efeitos, que emula o som do instrumento de seis cordas. Sim, MacDowell é um virtuose, mas é bom que se diga que ele agrega pouco valor à música de Coleman. As perguntas que ficam: dada a excelência de Tony Falanga, seria mesmo necessário um contrabaixo elétrico? Por que não adotar de vez uma guitarra?
Convenhamos que diante da presença de um gigante essas se tornam questões secundárias. Quem esteve no SESC Pinheiros testemunhou que esse não foi agravante para o desdobramento de uma apresentação histórica. Em sua defesa da liberdade criativa do free, mais de uma vez, Ornette sentenciou que “o músico de jazz é um compositor instantâneo”. Seu show pode não ter sido pontuado por grandes momentos de improvisação, mas a lógica particular de Ornette ao lidar com o sax alto e com as convenções do jazz estiveram presentes em muitos instantes iluminados. Em um tema que abriu com uma frase veloz, tipicamente free, Coleman atrasou o breque em milésimos de segundos e, nesse átimo de silêncio, fez-se ouvir uma gargalhada do tímido saxofonista. Ao final do espetáculo, depois de um generoso bis, o quarteto agradeceu o entusiasmo do público reverenciando a plateia. Ao erguer-se, Coleman levou as palmas das mãos aos olhos, aparentemente marejados. Ele pode não ter falado um reles “boa noite” ou “obrigado”, mas deu a todos ali muito mais que meras formalidades cerimoniosas. Mostrou, com a sensibilidade na ponta dos dedos, com quantas notas se faz a história de um gênero que marcou a humanidade.
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