O trágico final do espetáculo

Há pouco mais de 50 anos, na tarde de 17 de dezembro de 1961, um domingo, aconteceu no Brasil a maior tragédia circense da história: o Gran Circo Norte-Americano, que se apresentava em Niterói, então capital do Rio de Janeiro, pegou fogo, matando 503 pessoas, 70% delas crianças. Os números de mortos ainda são controversos. De qualquer forma, a soma das vítimas estampa a tragédia ao posto de maior incêndio da história do Brasil.

Apesar da grandiosidade do fato e da comoção que gerou na época – mobilizando não apenas todo o País, mas várias nações –, a história desse triste acontecimento era pouco conhecida. Com o lançamento do livro-reportagem O Espetáculo Mais Triste da Terra, do jornalista Mauro Ventura, o incêndio do Gran Circo Norte-Americano – e seus desdobramentos –, finalmente, tem sua história contada em uma publicação.

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Ventura passou mais de dois anos envolvido em pesquisas sobre a tragédia. Optou por uma escrita simples, objetiva e sem rodeios. O livro traz ainda depoimentos emocionados de sobreviventes, relatos verdadeiramente contagiantes. Naquele domingo, mais de três mil pessoas estavam sob a lona do Gran Circo Norte-Americano, que, a propósito, de norte-americano só tinha o nome. Gerenciado pelo gaúcho Danilo Stevanovich, reunia artistas argentinos, a maior parte da trupe, e brasileiros.

Como conta Ventura, a família Stevanovich tinha tradição circense e origens europeias. “Aos 41 anos, Danilo, nascido em Cacequi, orgulhava-se de pertencer a uma longa linhagem circense, que remontava ao ano de 1843 e era oriunda do reino que mais tarde se tornaria a Iugoslávia.”

Infelizmente a experiência no ramo e a tradição familiar não foram suficientes para impedir a tragédia. Ao menos se for levada em conta a versão de que as instalações elétricas do circo estavam em situação precária e a lona usada na cobertura era feita de algodão com uma camada de parafina, o que aumenta drasticamente a condição inflável do tecido. “Dependendo do especialista, o circo preenchia todos os requisitos de segurança ou era uma armadilha mortal. As instalações eram confiáveis ou precaríssimas, a lona, apropriada ou inflamável e o material, de primeira qualidade ou inseguro. Não há como saber ao certo a razão para as discordâncias. Essa é uma lacuna que fica”, diz Ventura.

Até hoje não se sabe ao certo o que ou quem provocou o incêndio, se foi acidental ou criminoso. Na época, um personagem assumiu a autoria do incêndio, mas nem a confissão dele pode ser encarada como verdade. Adilson Marcelino Alves, conhecido como Dequinha, morador de Niterói, trabalhou por dois dias na montagem do circo, mas foi demitido. Como não se conformou com a demissão, tentou entrar novamente no circo e foi impedido pelo servente Maciel Felizardo. “Eles trocaram insultos e Dequinha chegou a prometer: – Você ainda vai ver no que isso vai dar.”

O problema da confissão de Dequinha é que sua sanidade mental era questionada, e ele era conhecido por assumir a culpa de ações que não tinha realizado. Apesar disso, foi condenado, juntamente com dois “cúmplices”. Se, em relação à causa do incêndio, o problema pode ter sido a ânsia de eleger um culpado para a tragédia e inocentar os órgãos públicos que fizeram a vistoria do circo e autorizaram o funcionamento, a questão da contagem das vítimas ficou comprometida por conta de algumas pessoas não terem encontrado, nem entre os vivos nem entre os mortos, parentes que estavam no circo naquele dia. De fato, o incêndio no Gran Circo Norte-Americano é muito mais intrincado do que pode parecer e seus desdobramentos são proporcionais à sua gravidade. Por exemplo: foi a partir da tragédia que houve um grande avanço no tratamento de queimaduras graves, promovido especialmente pelo trabalho de médicos brasileiros. Um dos profissionais que atuaram no atendimento das vítimas foi o hoje internacionalmente conhecido cirurgião plástico Ivo Pitanguy. Foi também por causa dessa tragédia que surgiu uma das figuras mais interessantes da história recente do Brasil: o profeta Gentileza, uma personalidade urbana, espécie de pregador, que tornou-se conhecido por fazer inscrições peculiares sob viadutos cariocas.

São esses e outros fatos que Ventura relata em seu O Espetáculo Mais Triste da Terra, um livro que, além de ter como base extensas pesquisas e entrevistas, foi escrito de maneira irrepreensível. Leia, a seguir, os melhores momentos da entrevista.

Brasileiros – Como você soube do incêndio no Gran Circo Norte-Americano? E quando decidiu que iria escrever um livro sobre o assunto?
Mauro Ventura – Eu soube nos anos 1980, quando trabalhava no Jornal do Brasil e via todo dia os escritos do profeta Gentileza nas pilastras do Caju, ao lado do prédio do jornal. Ouvi dizer que ele tinha perdido toda a família no incêndio de um circo em Niterói – informação que só bem mais tarde vim saber que era falsa. Mas só decidi escrever há menos de três anos. Tinha guardado a informação do Gentileza e juntei com outra que tomei conhecimento: na autobiografia, Pitanguy diz que o atendimento às vítimas do circo foi o acontecimento que marcou mais fortemente sua vida. Em seguida, dei-me conta de que em 2011 completou-se 50 anos da tragédia e não havia nada sobre o tema. Como um episódio tão marcante tinha sido esquecido?

Brasileiros – O que não falta no livro são passagens tristes e impactantes. Em algum momento, você ficou sensibilizado a ponto de pensar em desistir do projeto?
M.V. – Não cheguei a pensar em desistir por esse motivo, apesar de ter ficado mexido em vários momentos. E minha filha, Alice, nasceu junto com o projeto. Ao mesmo tempo que ela funcionava como contraponto às histórias dolorosas que eu ouvia, ficava pensando de onde aquelas pessoas tiraram forças para suportar a perda do que tinham de mais importante. Mas ouvir essas histórias me estimulava a contar o que aconteceu, como uma forma de homenagear as vítimas, dar um rosto às estatísticas e reverenciar os heróis anônimos.

Brasileiros – Livros-reportagem como o seu vêm ganhando espaço no mercado editorial. Seria isso resultado da falta de espaço para grandes reportagens em jornais e revistas ou um maior interesse por parte dos leitores em histórias reais?
M.V. – Acho que é mais a falta de espaço para grandes reportagens. Afinal, o interesse por histórias reais sempre existiu e sempre existirá. Os livros são um caminho natural para os jornalistas aprofundarem um tema. E existe um interesse maior por parte das editoras em convocar jornalistas para fazer livros.

Brasileiros – Infelizmente tragédias não param de acontecer…
M.V. – Uma das razões que me levaram a escrever o livro, por mais pretensioso que isso possa parecer, era mostrar o que aconteceu para que não se repetisse. Ou seja, que o livro servisse de alerta. No episódio do circo, nem os donos nem as autoridades foram responsabilizados. O problema é que no Brasil as indenizações são ridículas, os recursos e apelações são intermináveis, as penas pequenas e a impunidade é a regra. Sem punição, estamos condenados a assistir à repetição incessante de tragédias.


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