O trânsito entre linguagens de Nando Olival

Ele nem desconfiava. Quase vinte anos depois, percebe que as noites de boemia nos botecos do Bexiga e as calorosas discussões de filmes que via com os amigos ajudaram a transformar aquele cineclubista, cheio de ansiedades e expectativas, no profissional que transita com facilidade da publicidade para o cinema. Gradua-do em cinema pela FAAP, Nando Olival ingressou na publicidade no começo dos anos 1990. Logo, entusiasmou-se com a possibilidade de lidar com as ferramentas que aprendera a manipular, disputadas nos dias de faculdade, e abundantes no novo ofício.

O aparente desvio de rota resultou em uma carreira invejável, que acumula a direção de mais de 600 peças publicitárias, um sem-número de prêmios, Leões de Ouro em Cannes, e a inclusão recente de mais um grande feito em sua lista de êxitos: a co-direção de Paixão, filme que subverteu a cadência da já clássica canção Cidade Maravilhosa, sincronizado a cenas idílicas do Rio de Janeiro, e sensibilizou o Comitê Olímpico Internacional (COI). Para muitos, o filme foi determinante na escolha do Rio para sediar as Olimpíadas de 2016; para Nando, porém, isso é relativo: “Não vejo toda essa importância. A conquista do Rio como sede é resultado de um conjunto de ações”. Os cariocas agradecem sua modéstia.
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Muitos dos índices superlativos de Nando foram alcançados vestindo a camisa da O2 Filmes, produtora criada em 1992, que experimentou uma ascensão meteórica no mercado publicitário e lhe rendeu mais do que os louros profissionais. Foi lá que estabeleceu a grande amizade e parceria com o arquiteto, publicitário e cineasta Fernando Meirelles. Com ele, Nando dividiu a direção de dois curtas e, em 2001, o filme Domésticas, primeira experiência em longa-metragem de ambos.

Quando fui pautado para cobrir os bastidores da gravação de Ela, ele, eu, a aguardada estreia solo de Olival, ouço o comentário de que ele é reservado e pouco afeito à exposição. Encontro o cineasta no set, instalado em um antigo e decadente galpão, em uma rua com nome de general romano, no bairro da Lapa, em São Paulo. Ele tem cabelos acentuadamente grisalhos, que se chocam com uma efusiva jovialidade, sorriso largo e fácil. Em minutos, enveredamos pela entrevista e vou percebendo que sua aparente despretensão vem acompanhada de uma aguda percepção do trabalho coletivo e da valorização dos seus resultados.

Cinema X Publicidade
Quando a falecida Embrafilme, estatal criada em 1969 pelos militares para “fomentar” a produção cinematográfica do país, foi extinta pelo Programa Nacional de Desestatização de Fernando Collor, o cinema nacional, que já vivia dias aflitivos, entrou em um estado de “quase-morte” e ainda definhou por alguns anos, até que encontrasse o elixir dos incentivos fiscais e a Lei Rouanet. Boa parte da mão de obra – de operários a diretores – migrou para o terreno da publicidade. O trânsito de profissionais das duas áreas é algo natural – do gênio italiano Federico Fellini, ao chinês colecionador de Oscars Ang Lee; do cultuado mexicano Alejandro González Iñárritu de Amores Brutos, ao britânico Ridley Scott, do célebre Blade Runner -, perde-se a conta de cineastas que colocaram o olhar a serviço da propaganda. Aqui, um País da tradição pautada nos êxitos de grandes autores, como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos ou gente anárquica e livre como Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, esse êxito em publicidade sempre foi visto como um atestado de óbito em cinema. Nando tem a resposta na ponta da língua para esta questão: “Acho que o Fernando Meirelles e outros desta geração, como o Walter Salles, o Beto Brant, o João Moreira Salles, que em algum momento se envolveram com a publicidade, tornaram-se uma espécie de embaixadores desta reunião de mídias. Do ponto de vista técnico, na publicidade, ao longo de um ano, você faz o equivalente a dois, três longas. Acredito muito na coisa da mecânica e dos artefatos do cinema. Na publicidade, você é chamado para contar e decupar histórias rápidas, de maneira muito sintética. Aqui, faço tudo diferente. Uma coisa mais estática, com movimentos de câmera quase imperceptíveis”. Apesar de evidenciar tais diferenças, Nando faz questão de defender que o caminho inverso também resultou em pequenas revoluções: “É indiscutível que nossa grande marca na O2 foi impor um pouco de cinema na publicidade”.

Seu jeito de fazer
Ele dá pistas de que tem certa disposição em resolver as coisas à sua maneira. Quando pretendeu criar um projeto itinerante de exibição de filmes para crianças, deu de cara com a inviabilidade de obter patrocínio, uma vez que os direitos de execução pública são blindados pelas grandes distribuidoras americanas e europeias. Criou, então, às própias custas, em 2005, o Cine Bumba, utilizando como “sala” um ônibus antigo e tão deteriorado que, eventualmente, precisava ser rebocado por guincho para as exibições. Transformado em arena com ar-condicionado, ambiente escuro e 36 poltronas de cinema – que muitas vezes acolhiam o dobro de crianças -, o velho ônibus rodou, de segunda a sábado, pelas periferias de São Paulo, levando produções infantis gratuitas para mais de 20 mil crianças ao longo de dois anos. Um público repleto de privações, que jamais tivera qualquer contato com a sétima arte: “A expectativa era tamanha que a chegada do ônibus parecia mais importante do que o cinema”, recorda. Devido aos muitos compromissos, Nando raramente podia acompanhar as visitas. “As professoras conduziam as discussões após a exibição e, às vezes, recebíamos centenas de desenhos das crianças, ilustrando o que tinham visto. Quando eu não podia ir, ligava pra equipe, formada por três marmanjos e perguntava: ‘E aí, como foi hoje?’. Eles respondiam, aos prantos: ‘Pôxa, Nando, você perdeu, foi muito bonitinho!’”

Universo jovem
Nando esclarece que Ela, ele, eu deverá inaugurar um selo de cinema, ainda sem nome, em parceria com o amigo e diretor de fotografia Ricardo Della Rosa, que tem no currículo premiadas campanhas publicitárias e a fotografia de filmes como Olga, de Jayme Monjardim; O Passado, de Hector Babenco e À deriva, de Heitor Dhalia.

O filme conta a saga de três jovens que vêm a São Paulo estudar Comunicação, moram juntos por quatro anos em um apartamento, cujo cenário é montado na sobreloja do galpão onde o set está instalado, com direito a uma inusitada piscina improvisada em uma caixa d’água azul estacionada no terraço, que dá vistas para chaminés e velhas indústrias falidas, à margem dos trilhos de trens que fazem parte da história do bairro.

Como o próprio título do filme sugere, a história é contada pela perspectiva de um dos rapazes, Rafael. Como ele, Camila e Cazé chegam a São Paulo carregados de compromissos formais e sonhos. Já na festa de calouros, quando travam o primeiro contato, decidem morar juntos e, indiferentes à entediante rotina acadêmica, dias depois, passam a assinar coletivamente algumas provas como “o trio”.

Ao longo dos quatro anos de convívio, o relacionamento diário vai ganhando contornos cada vez mais simbióticos, fundindo gestos e personalidades. Rafael, vivido pelo ator Victor Mendes, é órfão, passou a infância transitando por várias creches, teve a sorte de ser acolhido por senhoras católicas que o encaminharam à faculdade. Escreve poesias e quer ser escritor. Camila é catarinense, filha única, parte do sul para estudar na maior metrópole do País com a falsa promessa de voltar depois da graduação. Quer mesmo é ser atriz. Juliana Schalch dá a personagem leveza e desenvoltura. O intempestivo, equivocado e intenso Cazé, vivido por Gabriel Godoy, é vidrado no dinheiro dos pais, mas foge do seio familiar com a desculpa da faculdade. Os três preenchem e impregnam o espaço do grande apartamento, repleto de móveis recolhidos da rua, com uma aragem de juventude e beleza. Uma leve espiada no monitor e percebe-se que há uma alquimia unindo a grande equipe, o que resulta em uma exuberância plástica de encher os olhos.

Pensando na investida popular realizada em Domésticas, suspeito que haja intenções de retratar os conflitos dos jovens da chamada geração 00. Ele nega a intenção de registro geracional: “A última coisa que quero neste filme é espelhar a juventude, a geração atual. Quero algo completamente diferente do que seria um filme pra gente jovem, com câmera na mão, gente correndo e se divertindo, tudo multicolorido. O filme tem muito mais a ver com a questão da amizade, da paixão e da dependência que temos de outras pessoas. São personagens em formação, sujeitos a um turbilhão que os transforma em seres absolutamente diferentes. A jovialidade e a alegria vai sendo trocada por uma melancolia”.

Esse processo de transformação descrito por Nando tem um ponto de partida. Os três precisam entregar o trabalho de conclusão de curso da faculdade e criam um projeto canhestro de reality show, com hospedagem na internet, para mostrar a rotina de gente comum e vender alguns produtos numa loja virtual. Contra todas as expectativas, encontram alguém que banca a ideia e se propõe a montar o reality show no próprio apartamento dos três. Depois de dias com a rotina exposta, vinte quatro horas no ar e nenhuma venda, celebram seu fracasso em uma noite de excessos. “Eles dançam, bebem e dormem os três na mesma cama. Sem que suspeitem, duas câmeras ainda estão no ar e o registro desta noite estimula uma quantidade recorde de acessos”, esclarece Nando.

Vislumbrando a possibilidade de ganhar dinheiro e poderem continuar juntos em tempo integral, eles assumem essa ficção, mas vão perdendo a espontaneidade. “Como nos reality shows, a maneira como aquilo é registrado cria realidades completamente antagônicas. Histórias diferentes, dependendo do registro da história. Como ver uma foto de seu avô sorridente e concluir que ele era um homem feliz e sua mãe lhe dizer: ‘Você está muito enganado. Não sabe o quanto ele era amargo e chato’.”

Intervalo na filmagem. O sol tímido se põe no horizonte e do lado de fora, suspensos em andaimes, dois potentes holofotes iluminam o set. São quase 19 horas e o ambiente vai se impregnado dos excitantes aromas da refeição que aguarda a equipe para o jantar no salão inferior. Uma rotina exaustiva de doze horas que só vai encerrar às duas da manhã. Tudo em nome do cinema. Como todos ali, sou tomado por grande expectativa. Presumir resultado final é uma tarefa que, por hora, não dá para especular. Nando não confirma, mas o resultado deve sair em 2010.

ELA, ELE, EU
POR NANDO OLIVAL
Eu sempre acreditei muito no processo da feitura de um filme. No artesanato. Sempre gostei da maneira pela qual um filme vai se construindo, tomando forma nas diferentes etapas e se modificando com as sugestões da equipe, dos testes com atores, das escolhas de locação, da música. Meu sonho era, ao final, ter um filme que, a meus olhos, parecesse bastante diferente do roteiro que escrevi. Que alguns temas, que no início pareciam importantes, quase sumissem. Outros, que nem eu imaginava que estivessem por ali, rondando, surgissem. Que a narrativa pudesse ser desconstruída, reconstruída e reelaborada não só no roteiro, mas também na filmagem e na edição. Para isso, achei que o filme tinha de ser independente. Que não deveria nascer cheio de amarras, de imposições. Isso, de forma nenhuma, quer dizer que eu queria impor ao filme uma autoralidade rígida. Ao contrário, era justamente a participação dos outros durante o processo que me daria as ferramentas para criar esse “novo filme”. Durante as filmagens, cortei cenas imensas, reescrevi e criei outras na hora, algumas que tinham um tom alegre e jovial ganharam um ar triste e melancólico. E só na última semana de filmagem descobri do que falava o filme e porque uma certa melancolia foi emergindo aos poucos.
Desde sempre, quis fazer um filme com jovens, em que houvesse uma certa precisão na interpretação, sem improvisações, e que o texto não fosse recheado de gírias contemporâneas. Em que as pausas e os olhares tivessem mais importância do que o movimento frenético da câmera. Era justamente ali que estava o tema. Na importância das palavras, dos gestos. Na juventude, tudo parece ter certa carga de irresponsabilidade, de inconsequência. Nos beijamos, nos abraçamos, nos tocamos afetivamente e sem pudores. Falávamos palavras de amor e de ódio com a naturalidade de quem pede um sanduíche na padaria. Acho, porém, que em certo momento tudo
ganha um outro valor. É como um ritual de passagem não tem nada a ver com a responsabilidade profissional, de ter que arcar financeiramente com sua vida, de ser jogado na boleia do mundo. É uma outra transformação. É quando você descobre o quanto todas aquelas palavras e aqueles gestos que pareciam impunes ganham outro peso. Tocar em alguém passa a ter outro sentido. Pode ser devastador para quem toca ou é tocado. Dizer eu te amo vem carregado de consequências. Falar “tô fora” ou dizer que vai se mandar presume você conhecer um pouco de quem você é, de onde você veio, já que agora existe um passado.
Construir um filme assim pode ser um erro. Fico apavorado quando me perguntam sobre o que é o filme; gaguejo antes de responder, mas isso só vou saber lá no final. O que não é ruim, porque senão seria como dirigir filmes publicitários, quando entro no set, tendo a certeza e a segurança de como sairá o produto final. Com relação a ser um diretor que por vezes não aparece no set, a realidade é a seguinte: “Não gosto de diretor esporrento, gritão, que pressiona e faz questão de mostrar que quem manda ali é ele”. Pode funcionar para alguns, não para mim. Gosto de um set leve, harmônico. Confio na equipe que tenho. Respeito o trabalho deles e gosto de pensar que eles respeitam o meu trabalho e não minha posição. Ser diretor é um pouco fazer com que opiniões diferentes confluam na mesma direção, que o melhor de cada uma delas seja jogada no balaio do filme. E no mais, não me interessa o conforto num set. A cadeira de diretor me dá arrepios. Não fiz faculdade de cinema para ficar sentado. Prefiro empurrar sofás numa mudança de cena do que me sentar num deles. Sou diretor, mas teria o mesmo prazer sendo assistente de câmera, contrarregra, maquinista. Gosto de filmagens, independentemente do que eu esteja fazendo lá. Se for para contar uma história minha tanto melhor.

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