Uma ferrovia no norte do Paraná salvou do extermínio nazista 80 famílias de judeus alemães. Quantas pessoas sabem disso? Duas teses acadêmicas haviam sido publicadas sobre o assunto. Mas essa história grandiosa, épica, repleta de aventura, permanecia pouco divulgada. Foi o que chamou a atenção, sete anos atrás, do escritor e jornalista Lucius de Mello. Ele percebeu que a saga da Ferrovia São Paulo-Paraná merecia um caprichado tratamento jornalístico ou até mesmo serviria de enredo para um romance. Acabou juntando as duas vertentes. Assim, pesquisou durante quatro anos para escrever o romance A Travessia da Terra Vermelha – Uma Saga dos Refugiados Judeus no Brasil, publicado pela Editora Novo Século. “Guardadas as proporções, é uma espécie de Lista de Schindler“, compara Lucius, autor da biografia Eny e o Grande Bordel, do romance Mestiços da Casa Velha e redator do programa Hoje em Dia, da Rede Record.
Na década de 1930, ao mesmo tempo em que o nazismo se fortalecia na Alemanha, os ingleses investiam no então ainda despovoado norte do Paraná. Estavam impressionados com a fertilidade da “terra roxa” da região. Dessa aproximação, surgiram a cidade de Londrina, a Ferrovia São Paulo-Paraná e, também, o acordo para trazer os refugiados judeus ao Brasil.
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“Foi uma operação triangular”, conta Lucius. “A partir de 1933, com a interferência de Johannes Schauf, um deputado alemão não-judeu, os judeus compravam peças de uma indústria alemã para a ferrovia, faziam com que chegassem aos ingleses e, em troca, recebiam títulos de terras em Rolândia, onde vieram morar.”
Rolândia, a 10 km de Londrina, nem constava do mapa. Tampouco dispunha de luz elétrica. Ainda hoje, não vai além dos 46 mil moradores. Na década de 1930, o lugarejo recebeu judeus de formação urbana, vindos de Berlim, de uma hora para outra transformados em fazendeiros. É desses ricos personagens que trata o romance. “Eram profissionais liberais, um ex-ministro da República de Weimar, uma grande soprano, uma física de renome, entre muitos outros de nível cultural semelhante”, lembra o escritor. “De uma hora para outra, naquele fim de mundo, havia, enfim, uma comunidade intelectual comparável à da capital paulista.”
A adaptação desses personagens de extração urbana ao cotidiano rural criou situações insólitas. A soprano, por exemplo, batizou uma vaca com o nome Berenice, em homenagem à tragédia escrita por Jean Racine. Durante a ordenha, cantava uma ária de Madame Butterfly, de Puccini, por acreditar que a música auxiliava na produção do leite. Outro fato que demonstra a atenção dada à vida cultural pelos fazendeiros neófitos, já então afeitos à arte produzida no Brasil, foi a chegada a Rolândia de quatro quadros de Cândido Portinari, amigo de uma das famílias.
Para poder se aprofundar nos personagens, Lucius optou por nomes fictícios, embora as histórias sejam absolutamente reais. Durante a feitura do livro, o escritor pôde entrevistar quatro dos imigrantes originais, que viriam a morrer nesse meio tempo. Ao longo dessas conversas, eles se lembraram de fatos marcantes, como o movimento nazista no norte do Paraná, que, embora assustador, não chegou a causar danos físicos aos judeus de Rolândia. “Publiquei no livro fotos inéditas desses encontros”, conta Lucius. Os descendentes dos refugiados não ficaram em Rolândia. Alguns estão na Alemanha, onde o escritor foi ouvi-los. Os demais espalharam-se pelo Brasil. Em Rolândia, sobraram apenas as fazendas, além de uma grande história de resistência e esperança, recontada com uma emocionante visão humanista.
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