Começamos a nossa conversa pela cozinha, como convém por estas bandas, tomando um café bem quente que ele mesmo acabou de preparar. Maria, sua segunda mulher, mora na área urbana de São Bento do Sapucaí, cidade de 100 mil habitantes a 208 quilômetros de São Paulo, e se recusa a sair de lá. Por isso, Quim Costa vem e volta do sítio todo dia a pé, 10 quilômetros de caminhada. De vez em quando, cruza por aqui um dos seus sete filhos, mas ele costuma passar a maior parte do tempo sozinho na oficina montada perto da casa – só ele, as madeiras bem abrigadas do tempo e as ferramentas, algumas delas com mais de 50 anos de uso.
Sua história é bem comprida e o espaço para escrever sempre é pouco, mas vou tentar contar sua trajetória desde o começo, para que todos possam conhecer caminhos e atalhos que forjam um Quim Costa, cidadão brasileiro como não se encontra em qualquer esquina por aí. Nosso personagem nasceu na fazenda Bela Vista, em Piranguçu, no sul de Minas, onde seu pai, Pedro Costa, criava gado e tinha lavoura. Era fazenda boa, de mais de 200 alqueires, com usina de luz própria, moinho e monjolo, que acabaria repartida entre os 11 filhos (sete ainda estão vivos).
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“Comecei a trabalhar desde a idade de 9 anos. Já reinava um pouco com facões, ajudava a fazer cangas para os bois. Aprendi com um carpinteiro chamado Carapina, que trabalhava só com machado. Depois, quem me ensinou tudo passou a ser Antonio Cipriano, que foi meu mestre. Fazia carro de boi, porteira, paiol, até casa de pau-a-pique. Fui olhando e fui aprendendo…”
Com 12 anos, já estava trabalhando na carpintaria de Sebastião Bento, além de ajudar a família nas lavouras de milho, arroz e feijão e na plantação de fumo. Por isso, só cursou até o quarto ano primário. Com pai bravo, ele tinha de caprichar nos estudos, não podia perder aula nem em dia de chuva. “Mas a cachaça minha era mexer com madeira. Era vocação mesmo. Naquele tempo falava que era inclinação. Pegava uma ferramentinha e trabalhava escondido do meu pai…”
No começo da carreira, fazia carrinhos de brinquedo. Pedro Costa só se conformou com a falta de aptidão do filho para os estudos quando viu as porteiras que ele ajudara a fazer para a fazenda. “Já tava dando resultado para ele, né?…” Nesse tempo, com 15 anos, gostava de cantoria de viola. Quando via juntar “os folgazão da fazenda”, como eram chamados os violeiros, lá ia o menino Quim atrás de Bastião Inácio, Joaquim Bento, Antonio Peres, a turma que animava as danças de São Gonçalo, o cateretê, a dança de catira.
Dia de sábado, no galpão da fazenda, faziam sucesso mesmo era quando soltavam os primeiros acordes de “Chico Mineiro”, um clássico da música sertaneja que sobrevive até hoje. Além de tocar viola, cantar e dançar, Quim pegou gosto também de carrear, que é como se denomina o ato de ajeitar as parelhas de boi no carro. O mesmo carro de boi que levava mantimentos da fazenda (arroz, feijão e milho) para a cidade trazia outros de lá (açúcar, sal e óleo).
“Minha alegria era ouvir as rodas do carro cantar. O carro, quando está cantando, o boi joga as orelhas pra trás pra escutar…” Quim lembra até hoje os nomes do sexteto de bois que puxava o carro da fazenda, a sua primeira equipe: “Rochedo” e “Bordado”, na junta de guia, seguindo na frente; “Marmelo” e “Sereno”, na junta de meio; “Delicado” e “Moreno”, na junta de cabeçalho.
Tinha tanta intimidade que conversava com os bois, orientava-os: “Firma o corpo, volta que o carro tá pesado, agora pode seguir…”. Ficou noivo de Jorgina por dois anos, mas não deu certo. “Se tivesse ficado com ela, ainda estava com ela até hoje”, suspira. “Um dia, andando na rua, um sujeito chamado Zé Pereira mexeu com a Jorgina, chamou ela de belezinha, ela riu para ele, e eu não gostei. Fiquei com raiva. O noivado acabou ali mesmo. Eu era muito brioso.”
Pouco tempo depois, em 1951, Quim casava-se pela primeira vez, com Jandira da Silva Costa, que foi criada na casa de um tio dele em Brasópolis, perto de Itajubá, no sul de Minas. “A primeira vez que vi ela… Entrei na casa do tio, ela chegou, tocou meu coração… Parece que a gente já se conhecia. Ela estava noiva, mas desistiu do moço para viver comigo… Casamos logo, foi uma maravilha… Nunca tivemos um desentendimento a vida toda.”
Antes de completar um ano de casamento, nasceu a primeira filha, Maria Aparecida. “Nasceu morta porque demorou demais para nascer. Naquele tempo, parteira dizia que primeiro filho demora para nascer, era assim mesmo. Quando o médico chegou, a criança já tinha morrido.” Naqueles princípios dos anos 50 do século passado, Quim deixou a fazenda do pai e construiu a sua primeira casa, onde hoje mora sua filha Luzia, no mesmo bairro Quilombo, bem perto do lugar onde trabalha agora. Construiu, literalmente, com as próprias mãos. “Eu que fiz tudo. Puxei tijolo, cimento e areia, dava cinco viagens por dia no meu carro de boi. Em dois meses, levantei uma casa de seis cômodos.”
São Bento do Sapucaí, nessa época, era uma pacata estância climática paulista encravada no mapa mineiro, com uns 1.000 habitantes no total e poucas casas na área urbana. Quim lembra que “passava mais carro de boi do que carro de gasolina na cidade”. Outros filhos foram nascendo, cinco homens e três mulheres. Zé Benedito, o mais velho, morreu de diabetes. “Ele fazia muita cavalhada. Comia demais. Tudo que vinha em roda dele ele comia e bebia, cerveja, cachaça, o que tivesse.”
Zé Benedito era o orgulho da família desde que deixara a roça para trabalhar na fábrica da GM, em São José dos Campos. Era operador de empilhadeira, trabalhava à noite. Nos fins de semana, cada vez mais gordo, vinha para matar a saudade do sítio e da família, e comia, e bebia. “Senti muito a perda dele”, encerra o assunto Quim, pegando mais um gole de café na garrafa térmica.
Para criar a prole, Quim se dividia entre a lavoura, o gado e a oficina de carpintaria. Vendeu muitas cangas para a cooperativa de laticínios de São José dos Campos e seus carros de boi começaram a ser procurados por fazendeiros até dos fundões de Minas, onde sua fama de carreiro já chegara. Muita gente, como eu, não sabe que carreiro é o nome que se dá tanto para quem fabrica carro de boi como também para quem o arma e toca na estrada. Então, Quim me explica tudo de novo, só para dizer que é “carreiro duas vezes”.
Mas sua carreira de carreiro já viveu tempos melhores. Em 1972, a cada dois meses, vendia um carro de boi, que custava 30 mil em alguma moeda da época. “Hoje em dia não aparece comprador, mas eu continuo fazendo. Enquanto tiver madeira, vou fabricando meus carros.” A procura por carro de boi começou a diminuir nos anos 1980, quando fazendeiros e sitiantes tiveram condições de comprar caminhonetes e tratores. O último carro de boi legítimo vendido por Quim foi para um fazendeiro de Brasópolis, faz mais de dez anos. Como ele só trabalha com jacarandá, cabreúva e aroeira, madeiras nobres cujo corte está proibido pelo Ibama, ficou mais difícil conseguir matéria-prima. Mesmo para as cangas utilizadas para arar terra com juntas de boi a procura caiu muito. “Eu continuo na lida da madeira só mesmo para gastar meu tempo…”
Aqui nestes 5 alqueires de matas, águas, pastos e pomares do sítio Recanto dos Pássaros, bem ao pé da Serra da Mantiqueira, onde se instalou há 15 anos, quando deixou a outra propriedade para a filha Luzia, Quim diverte-se com os bichos. Para saber a previsão do tempo, por exemplo, fica reparando nas seriemas. “De tardezinha, vêm duas de cima e duas de baixo, e elas se encontram bem defronte daqui de casa. É bonito, parece que você está ouvindo uma orquestra tocando. Quando cantam muito, pode ter certeza, vem chuva, dá um revolto no tempo.”
Maria, com quem se casou há oito anos, só vem ao sítio às segundas-feiras para fazer uma limpeza geral na casa e deixar comida para a semana toda na geladeira. Quim diz que não sente a idade que tem. Ainda tem disposição para pegar na enxada e cuidar das pequenas lavouras de feijão e milho. Acorda todo dia entre 4 e 5 da manhã, faz seu café e vem embora para o sítio. “Debaixo de Deus, não tem outro lugar melhor. Minha vida é aqui.” De tardezinha, volta para a casa de Maria, na entrada de São Bento do Sapucaí.
Uma vez por semana, ainda tem encontro marcado com sua turma de violeiros, acompanha a dupla Campo Belo e Companheiro, e não perde um baile no Clube da Terceira Idade, onde conheceu sua
atual mulher, dançando catira. A conversa na cozinha já vai longe, acabamos com o café, então peço a Quim para me mostrar sua carpintaria.
Primeiro, ele me apresenta as ferramentas: martelos, serrotes, machados, plainas, formões, esquadros, compassos, grosas, raspadores… “As facas pequenas sou eu mesmo que faço”, esclarece, orgulhoso. Estão na linha de montagem, quase prontos, dois carros grandes e um pequeno, que costuma ser usado para decoração. “É tudo feito com cabreúva. Só de madeira, tem uma fortuna aí”, justifica, ao me dar os preços: cobra entre 8 e 10 mil reais por um carro grande e 2,5 mil pelo menor.
“Esse aqui é bonito demais, carro para presidente… Meu sonho é vender um carro desses para o presidente Lula. Pode dizer que pra ele eu faço um desconto…” Capaz de rir dele mesmo, Quim gosta de contar piadas de cachaceiros, um hábito que ele abandonou faz 15 anos. Calça toda remendada, faca na cintura, chapéu de palha, botina preta, vai nos mostrando com calma para que serve cada ferramenta. “Repara só o que um homem sozinho é capaz de fazer. No Brasil não tem mais ninguém que faz um carro de boi desse estilo antigo da roda inteiriça. Só uma roda dessas pesa 50 quilos…”
Está na hora de deixar Quim Costa trabalhar em paz. Na hora da despedida, pergunto se ele não quer ir almoçar com a gente. Agradece o convite, mas diz que prefere ficar no sítio. “Rapaz, eu ando me sentindo tão feliz que nem não estou mais sentindo fome…”
No caminho para a cidade, cruzamos com Marcos Dias da Silva, 40, a bordo do cavalo “Branco”, indo para a venda, como faz todos os sábados. Meu colega fotógrafo Manoel Marques quer saber dele onde ainda tem nas redondezas alguém trabalhando com carro de boi. “Onde tem, eu não sei, mas gostaria muito de comprar um carro desses só para ouvir a roda cantar…” Marcos ouviu dizer que na vizinha Conceição dos Ouros, em Minas, estão vendendo carros velhos por 1 mil reais. “Carro novo, não dá. É bom, mas é muito caro…”
Algumas léguas adiante, encontramos José Cláudio da Rosa, 42, ajeitando as juntas “Gaúcho” e “Viajante”, “Soberano” e “Bandeirante”, “Dourante” e “Rosado” para dar uma volta com a mulher, Helena, e a filha, Eliane, no velho carro que comprou há cinco anos, em Conceição dos Ouros, por 1,5 mil reais. Cada boi de junta custa outro tanto, e são necessários seis para puxar o carro. Agora, reformado, Rosa quer vender seu carro de boi por 5 mil, mas sabe que não será fácil. “Na roça não dá mais dinheiro”, conforma-se ele, personagem de um tempo que vai se apagando da paisagem do velho interior paulista na divisa com o interior mineiro, a terra onde Quim Costa descobriu e viveu sua vocação de carreiro duas vezes.
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