O último Dostoiévski

Como fica evidente em Diário, a obra de Dostoiévski não se esgota, no sentido de proporcionar novas visões sobre o próprio mundo contemporâneo. Retrato: Vasily Perov, de 1872
Como fica evidente em Diário, a obra de Dostoiévski não se esgota, no sentido de proporcionar novas visões sobre o próprio mundo contemporâneo. Retrato: Vasily Perov, de 1872

Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881) pode ser colocado ao lado de Karl Marx e Sigmund Freud entre os construtores dos séculos XX e XXI. Vários movimentos artísticos ou filosóficos referendam esse escritor-filósofo. Friedrich Nietzsche concebe o seu conceito de super-homem a partir do autor russo; o expressionismo alemão e outros movimentos de vanguarda seguem em sua trilha e o mesmo se pode falar do existencialismo francês. A ponto de Albert Camus erguer uma de suas principais obras, O Estrangeiro, a partir do artigo “Sobre o processo Kroneberg”, publicado em O Diário de um Escritor, em 1876.

Tal diário concentra a produção jornalística do autor, assim como alguns contos, e começa a ser publicado pela Editora Hedra. É o último dos trabalhos de fôlego de Dostoiévski que faltava chegar ao Brasil em versão direta e integral. A difícil tarefa coube a Daniela Mountian (doutoranda do curso de Russo da USP) e seu pai, Moissei Mountian (natural da Moldávia, ex-URSS), com a colaboração de Aurora Bernardini (professora do curso de Russo da USP). Serão quatro volumes; o primeiro de 1873, seguido dos anos 1876, 1877 e 1880-1881 (este ainda vai trazer textos avulsos de outra publicação).

O livro inaugural traz os textos da coluna “Diário de um Escritor”, publicados no jornal O Cidadão, onde o escritor atuou como editor-chefe. Os outros volumes reúnem artigos de periodicidade irregular, que devem muito à sua mulher, Anna Grigorievna Dostoievskaia (1846-1918). Ela atuou como empresária do marido, assumindo toda a vida financeira e dando-lhe tranquilidade para criar. Anna é uma personagem histórica na Rússia, não apenas por ser o pilar da vida de
Dostoiévski, mas também porque foi a primeira mulher editora no país a trabalhar diretamente na gráfica, em ambiente insalubre e machista. Ela ainda compôs o grande acervo de documentos do marido – de rascunhos à correspondência –, que hoje formam amplo manancial para pesquisadores de todo o mundo.

Em sua juventude, Dostoiévski teve uma trajetória acidentada por várias redações de jornais, fora a sua prisão na Sibéria e outros contratempos. No início da maturidade, fundou o jornal Tempo com seu irmão Mikhail, que funcionou de janeiro de 1861 a abril de 1863, sucedido por Época (1864-1865). Após temporada na Europa com Anna, em 1873 e 1874, assumiu, então, o cargo de editor-chefe no jornal Cidadão.

A importância do Diário no conjunto de trabalhos de Dostoiévski pode ser medida pela reação de seus contemporâneos. Por exemplo, Eleva Stakenhneider, responsável por um dos mais prestigiados salões literários de São Petersburgo entre 1860 e 1870, lembrou que ele não ficou famoso apenas por sua estadia na prisão, por Recordação da Casa dos Mortos ou seus outros romances, mas, principalmente, por criar o Diário: “Esse trabalho fez seu nome bem conhecido por toda juventude russa e também por todos os interessados nas mudanças profundas da sociedade”.

Nascido sob o signo da polêmica, o Diário expõe seu ideário e define suas posições pelo engajamento, forjando pontos de vista pelo estabelecimento de tipos característicos, experiências e observações. Os temas envolvem questões políticas, econômicas, jurídicas e culturais, entre outras. Os eleitos das contendas eram escritores como Tolstói, Turgueniev e Leskov, ou críticos, pensadores, acadêmicos e jornalistas de Moscou e São Petersburgo.

Diário de um Escritor (1873) Fiódor Dostoiévski. Tradução de Moissei e Daniela Mountian. Hedra, 256 páginas. Foto: Reprodução
Diário de um Escritor (1873) Fiódor Dostoiévski. Tradução de Moissei e Daniela Mountian.Hedra, 256 páginas. Foto: Reprodução

O fundador do curso de Russo da USP, Boris Schnaiderman, e a professora da Columbia University e presidente do International Dostoevsky Society (que congrega pesquisadores em todo o mundo), Deborah Martinsen, concordam sobre a importância do Diário sob os mais variados aspectos. Ambos destacam a qualidade da publicação, extremamente atual. Schnaiderman a identifica como vital para compreender todas as outras criações de Dostoiévski: “Foi um verdadeiro laboratório de debate dos temas mais importantes presentes na sua obra literária”.

“Seu envolvimento com o jornalismo formou sua ficção”, define Martinsen. Para tanto, lembra Recordações da Casa dos Mortos, em que se conta a fictícia e semiautobiográfica trajetória de Dostoiévski no sistema prisional da Rússia, uma combinação de jornalismo e literatura que deixou impressão duradoura.

Outro tema abordado pelo autor no Diário é o da identidade nacional russa e os rumos do império. Em dezembro de 1876, ele escreveu: “A maior meta do Diário até o momento tem sido, na medida do possível, esclarecer a ideia de nossa independência espiritual e nacional e apontá-la, representando os fatos cotidianos”. Martinsen também sinaliza como esses artigos são representativos: “Uma vez que ele se tornou mais interessado no envolvimento da Rússia na guerra dos Balcãs e no relacionamento do império com o Ocidente, descartou a sutileza filosófica em favor da retórica ultranacionalista”. Para ela, aqui e em outros momentos do Diário, Dostoiévski assume a sua personagem jornalística como “um homem comum tentando entender os assuntos do dia, levando leitores em extremos do espectro político a se identificar com ele porque descreve o conflito da Rússia com a Europa como um drama de personalidades”. E que se desdobra ainda em outras polaridades com esse mesmo recurso: a Igreja Ortodoxa Russa, a Alemanha protestante e a católica França. “O Diário cria uma imagem universal e original da Rússia, apelando para um público atormentado por autoimagem. O nacionalismo de Dostoiévski, embora idiossincrático e polêmico, era muito atraente”, delimita Martinsen.

Outro tema – reacionário – do Diário apontado por Schnaiderman está na difusão do ideário antijudaico, uma das bases da sociedade russa. “Leio o Diário pulando essas páginas”, revela. Mas isso é minoria no conjunto de mais de mil páginas, adverte o especialista, pois algumas das melhores passagens do autor estão no Diário, com destaque a contos como “Bobók” (presente no primeiro volume).

“Uma vez que ele se tornou mais interessado no envolvimento da Rússia na guerra dos Balcãs e no relacionamento do império com o Ocidente,  descartou a sutileza filosófica em favor  da retórica ultranacionalista”, Deborah Martinsen. Foto: Arquivo pessoal
“Uma vez que ele se tornou mais interessado no envolvimento da Rússia na guerra dos Balcãs e no relacionamento do império com o Ocidente,descartou a sutileza filosófica em favor da retórica ultranacionalista”, Deborah Martinsen. Foto: Arquivo pessoal

Jornalismo e literatura
“Bobók” é um conto que traz a marca da relação entre jornalismo e literatura em Dostoiévski. Aliás, ambos se fundem em todos os textos do autor, observa Schnaiderman. Em linhas gerais, conta, com extremo humor, a história de um escritor que visita um cemitério à noite e ouve o diálogo entre mortos de várias posições sociais. Todos tiram as suas máscaras usadas em vida e falam verdades inconfessáveis, num movimento de profunda crítica social. O Diário ainda foi um campo de provas para a criação de seu romance mais importante, Os Irmãos Karamazov, e uma experiência jornalística muito original – por ser monojornal escrito, editado e publicado por um único autor, argumenta Martinsen.

Para ela, o Diário de 1876, comprometido com questões sociais como a reforma judicial, famílias desfeitas e educação, é o mais interessante em termos artísticos. Já o de 1877 é o mais político, menos diversificado e fechado em si mesmo. “No entanto, o Diário permanece uma janela fascinante aberta sobre a Rússia da década de 1870 e as tensões entre a visão utópica e artística com a sua visão política cada vez mais estreita.”

Schnaiderman concorda com o pensador russo Iúri Lotman – cuja obra introduziu no Brasil – quando este aponta que Dostoiévski foi um atento leitor de jornais e colecionador de reportagens, especialmente da editoria de polícia, e que via, no campo dos fatos jornalísticos, sintomas evidentes de doenças ocultas da sociedade. Nesse sentido, observa que Dostoiévski mergulha nas profundezas de acontecimentos contemporâneos ao adotar diferentes vozes e perspectivas para representar a complexidade e heterogeneidade da vida russa: “Ele lê jornais contemporâneos e revistas vorazmente em busca de evidências de sua visão utópica, mas fala com voz unificada que não tolera oposição alguma e insiste em uma única interpretação dos acontecimentos”.

Schnaiderman em foto de 1945, no Rio de Janeiro. Aos 99 anos, ele continua trabalhando. Schnaiderman em foto de 1945, no Rio de Janeiro. Aos 99 anos, ele continua trabalhando. Sua tradução de O Amor de Mítia (Editora 34), de Ivan Búnin, mal foi lançada e ele já prepara dois livros, além de sua autobiografia. Foto: Arquivo pessoal
Schnaiderman em foto de 1945, no Rio de Janeiro. Aos 99 anos, ele continua trabalhando. Schnaiderman em foto de 1945, no Rio de Janeiro. Aos 99 anos, ele continua trabalhando. Sua tradução de O Amor de Mítia (Editora 34), de Ivan Búnin, mal foi lançada e ele já prepara dois livros, além de sua autobiografia. Foto: Arquivo pessoal

Da modernidade
Dostoiévski não apenas polemizou com as questões do seu cotidiano, atuando como construtor de memória. Entre os sintomas mais profundos de seu tempo, tocou num tema transversal que une os séculos XIX e XXI: as fraturas da modernidade. 

Martinsen ressalta essa importante característica ao indicar o recente estudo de Kate Holland The Novel in the Age of Disintegration: Dostoevsky and the Problem of Genre in the 1870s (Northwestern University Press, 2013). Holland afirma que o Diário revela a luta entre o reconhecimento da fragmentação social – produto da modernidade – e o compromisso jornalístico para compor outra via em contraste a essa fragmentação, oferecendo à sociedade russa “uma nova palavra” ou visão de renovação espiritual nacional. O conflito entre o realismo de Dostoiévski e o seu otimismo utópico permeia todo o Diário.

Para Martinsen, a obra provoca uma série de questões ainda pertinentes. O que significa ser uma pessoa moderna vivendo em um mundo midiático que nos puxa em direções diferentes? Como vamos encontrar um equilíbrio entre o individual e o coletivo? Como podemos equilibrar razão e emoção? Como podemos manter a flexibilidade e a complexidade em nosso pensamento em um mundo que exige oposições em preto e branco, maniqueístas? Dostoiévski não deu as respostas, como se poderia esperar de um jornalista. Porém, fundamental escritor-filósofo que era, soube fazer as perguntas certas.

Um mestre quase centenário
Não é exagero reconhecer que todos os leitores interessados em literatura e cultura russa no Brasil devem muito à obra de Boris Schnaiderman. Ele está para completar 99 anos (em maio) e continua bastante ativo. Acabou de relançar pela Editora 34 a tradução de O Amor de Mítia, de Ivan Búnin, das que mais gostou de fazer. No ano passado, lançou Caderno Italiano, sobre a sua participação como pracinha da FEB.

Sua vida foi decidida pela paixão pela literatura. Formou-se em Agronomia em 1940 a pedido dos pais, mas lançou-se na tradução em 1942. Procurou uma das mais importantes editoras do País, a carioca Vecchi, e se ofereceu como tradutor em pleno boom da literatura russa no Brasil, por conta da entrada da URSS na guerra contra a Alemanha nazista. Foi quando fez a versão pioneira de Os Irmãos Karamazov. Copiava listas de palavras e as consultava na Biblioteca Nacional no único dicionário disponível do russo ao francês. Paulo Bezerra, também tradutor dessa obra, garante que se serviu de várias soluções do tradutor iniciante.

Ao voltar da guerra, trabalhou como “secretário” do correspondente da TASS (agência de notícias da URSS), Iúri Kalúguin. Fazia um pouco de tudo: pré-pauta, pauta, produção, subedição e edição final.

Também trabalhou na empresa do pai, a distribuidora Swiss Films, talvez a primeira a trazer filmes russos ao Brasil. Em 1946, trouxe a primeira parte de Ivan, o Terrível – fracasso de bilheteria. “Eu me lembro de alguém sair do cinema xingando: ‘Terrível é o filme, e não o Ivan’”. Em 1953, respondeu a anúncio em O Estado de São Paulo “Pessoas cultas: precisa-se”. E escreveu sozinho os verbetes da Enciclopédia Mérito. Eram 14.516 páginas em 20 volumes. Sem menção ao verdadeiro autor.

Tradutor de clássicos como Bábel, Dostoiévski, Górki, Khlébnikov, Maiakóvski, Mandelstam, Pushkin e Tchékhov, entre outros, hoje Boris trabalha em duas publicações: uma coletânea de textos seus publicados em jornais e revistas com o título Meu Século, Minha Fera e, ao lado de sua mulher, a professora da PUC-SP Jerusa Pires Ferreira, uma coletânea de artigos de Iúri Lotman. Além de sua autobiografia, na qual vai relatar sua passagem pelo PCB entre 1950 e 1959.

"O Amor de Mítia" (Editora 34), de Ivan Búnin, com tradução de Boris Schnaiderman. Foto: Reprodução
“O Amor de Mítia” (Editora 34), de Ivan Búnin, com tradução de Boris Schnaiderman. Foto: Reprodução

 


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