O “vice-cara”

No cada vez mais conturbado cenário político brasileiro, trata-se de uma figura rara, raríssima. Talvez seja, hoje, o único homem público de quem todo mundo só fala bem, torce por ele. Emociona a todos com seu sorriso franco, chegando ou saindo do hospital, em sua luta diária contra o câncer, que já dura 12 anos e o levou a 15 cirurgias, duas delas em julho último.

Aos 77 anos, casado há 51 com dona Mariza, três filhos, cinco netos e um bisneto a caminho, o empresário mineiro José Alencar encarna a nobre figura do avô que todo mundo gostaria de ter na família. Em 1994, quando já havia construído um dos maiores impérios industriais do país, a Coteminas, entregou as empresas aos cuidados do filho Josué, e iniciou sua tardia carreira política.
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No mesmo ano, perdeu sua primeira e única eleição, para governador de Minas Gerais. Eleito senador pelo PMDB em 1998, o vice-presidente – que o presidente chama de Zé – teve papel fundamental nas vitórias de Lula em 2002 e 2006. Discreto e leal, é o vice que qualquer presidente pediria a Deus.

No quarto do Hospital Sírio-Libanês, às vésperas de viajar para prosseguir seu tratamento em Houston, nos Estados Unidos, ele falou por quase duas horas com os repórteres da Brasileiros, sempre vigiado pela onipresente Mariza e por Adriano Silva, seu fiel e único assessor há mais de 30 anos.

Nas páginas seguintes, você vai conhecer melhor a história deste brasileiro que não se entrega. Entrou tarde na política e virou amigo de infância de Lula na mesma noite em que se conheceram, faz apenas nove anos.

Brasileiros – Estamos no dia 3 de agosto, segunda-feira, aqui no seu quarto no Hospital Sírio-Libanês, e amanhã o senhor vai sair daqui direto para o aeroporto, rumo aos Estados Unidos, onde vai prosseguir com o seu tratamento. O que o senhor gostaria de dizer neste momento aos brasileiros?
José Alencar – Olha, Kotscho, em primeiro lugar, quero agradecer aos brasileiros pela corrente que acabaram criando em torno desse meu caso. Eu tenho recebido manifestações de toda natureza, do Brasil inteiro, trazendo solidariedade, orientação, indicação de vários tipos de remédios, ervas e coisas assim. Além disso, são tantas orações que mandam pra mim, e as orações que as famílias têm feito. Então eu agradeço muito aos brasileiros de modo geral, e agradeço também a oportunidade que tive de ser aceito como voluntário nesse tratamento experimental, feito sob a orientação de uma equipe médica de cientistas do MD Anderson, que é um hospital em Houston, famosíssimo no tratamento do câncer. Por intermédio do meu médico, o doutor Paulo Hoff, eles aceitaram a nossa proposta de participar como voluntário. Eu sou um dos pacientes desse tratamento experimental. Parece que somos trinta no mundo inteiro. Os últimos exames mostram que o tratamento tem dado certo no meu caso.

Brasileiros – O senhor acaba de sair de duas cirurgias em uma semana, já foram três só neste ano…
J.A. – Pois é, em razão dessas cirurgias o tratamento teve de ser interrompido, e a minha volta aos Estados Unidos adiada por duas semanas. O Dr. Paulo mandou todos os exames que foram feitos aqui para eles, e eles chegaram à conclusão de que eu deveria continuar o tratamento, ainda que com atraso, sem nenhum problema. Vou receber a primeira dose do terceiro ciclo, que não me custa nada. Mas eu também tive de assinar um documento de que não cobrarei nada por servir de cobaia…

Brasileiros – Quer dizer, não cobra como cobaia e não paga como paciente…
J.A. – Primeiro você tem de assinar, porque eles podem te matar sem querer… Isso aí foi uma oportunidade rara, foi uma sorte. O Dr. Paulo tem muita amizade lá dentro, estudou e trabalhou no hospital por 11 anos. Conhece todo mundo e todo mundo gosta dele, é uma figura assim diplomática… Pois bem, o resultado disso pode ser uma graça de Deus, então eu tenho de agradecer ao Dr. Paulo também. Não posso deixar de falar sobre este hospital aqui, o corpo médico, o corpo de enfermagem, corpo de técnicos, corpo de serviçais do hospital que cuida da limpeza… Você precisa ver o carinho com que eles me tratam, mas é uma coisa que observo em todo lugar, não por ser o vice-presidente da República, não. Eles são assim. Este hospital é de uma qualidade incomum.

Brasileiros – A gente costuma dizer que na vida não basta só o trabalho, fazer as coisas direito, a gente precisa ter sorte também…
J.A. – Lógico, isso aí também tem me ajudado muito. E outra coisa que eu deveria ter posto em primeiro lugar como agradecimento é Deus. Porque é aquela história… Eu acho que o cidadão não deve temer a morte, eu não tenho medo da morte, nunca tive. Costumo até plagiar um filósofo grego, não sei se foi Péricles ou Sócrates, que teria dito que não se deve ter medo da morte, mas medo da desonra. A verdade é que eu não tenho medo da morte porque, como o próprio Eclesiastes nos ensina, há um tempo para cada coisa. Há tempo de nascer e há tempo de morrer. Quem sabe o dia que você vai morrer? É só Deus quem sabe.

Brasileiros – Mas não precisa ter pressa…
J.A. – Não precisa ter pressa. E se Deus não quiser me levar não há câncer que o faça, não há. Agora, se Deus quiser que eu vá, Ele não precisa do câncer pra me levar… Aí não há médico que impeça, não tem conversa.

Brasileiros – O senhor viaja daqui a pouco para Houston, Estados Unidos. Viaja tranquilo? Neste momento, o senhor está mais preocupado com a sua saúde ou com a situação política do país?
J.A. – Olha, é claro que na vida pública a gente está presente mesmo à distância, porque isto está na alma e também faz parte dos deveres que nós assumimos. O quadro político obviamente é preocupante, a situação no Senado em especial é muito preocupante, passa por uma fase duríssima, mas é uma instituição que precisamos preservar. O Senado foi mutilado na Constituinte de 1988, antes não era assim. Na Constituição de 1946, por exemplo, o presidente do Senado era o vice-presidente da República. Só que o vice não era igual ao José Alencar…

Brasileiros – Era eleito diretamente como o presidente…
J.A. – Era eleito diretamente. José Alencar, não. Eu sou vice-presidente graças à eleição do presidente que é o nosso Lula. Eu sou consciente disso e sou absolutamente agradecido ao Lula pela confiança com que ele sempre me distinguiu, isso é um fato. Agora, é aquela história, o Senado tem de passar por uma grande reforma. Aliás, precisamos de uma reforma política, que é a reforma das reformas. Se não houver uma reforma política, dificilmente vamos chegar às outras também de que o Brasil tanto precisa. A reforma política é de importância fundamental, a começar pelo Senado.

Brasileiros – Qual é a receita de reforma política que o senhor acha que deve ser feita? Em poucas palavras, se isso for possível, como seria para o senhor um quadro político reformado?
J.A. – Nós tivemos uma oportunidade excelente que foi a Constituinte de 1988, que aconteceu num momento histórico da mais alta importância da vida política brasileira, logo depois no fim daquele período de exceção que foi o período militar no Brasil. Era o momento ideal para que, por meio de uma nova Constituição, fizéssemos a reforma política. Mas se perdeu a grande oportunidade de fazer as reformas de que o Brasil tanto necessita.

Brasileiros – Mas se todo mundo é a favor da reforma política, o presidente Lula também é, e todos os que o antecederam também eram, por que não é feita? Tem gente que diz que a reforma política não sai porque depende dos políticos…
J.A. – Vivemos num regime democrático. É como dizia o Winston Churchill: “A democracia é um regime cheio de defeitos, só que ainda não inventaram outro melhor”. Na democracia, quanto mais democrático você for, mais você dificulta uma decisão dessa natureza. Então, isso não é fácil de fazer. Vai ter de haver uma nova Assembleia Constituinte, talvez até exclusiva, para fazermos essa reforma política. Mas temos de partir de uma proposta concreta, porque senão cada um dos constituintes vai trazer a sua Constituição na cabeça ou o seu modelo político na cabeça. Aí é um desastre.

Brasileiros – Pelo jeito, o senhor está mais preocupado com a situação política do que com a sua saúde…
J.A. – Política não tem fim, né… Falar de política não tem fim até porque você sabe que ela está presente em tudo na vida de cada um de nós, desde o chefe de família, as mães de família, até os alunos, os filhos, os netos… Isso é importante porque o Brasil ainda é um país jovem, a verdade é essa, nós somos um país jovem. Você vê que agora tudo está fazendo 200 anos, é a idade do Banco do Brasil, idade da Associação Comercial do Rio de Janeiro, da imprensa brasileira, tudo nasceu ali com a vinda do príncipe regente D. João. Vamos ter de passar por muitos e muitos anos de experiência para irmos amadurecendo também a nossa ideia sobre política.

Brasileiros – O senhor entrou tarde na política. Antes, fez uma carreira de empresário muito bem-sucedido, foi presidente da Federação das Indústrias de Minas Gerais e, já numa idade em que outros pensam em ir embora pra fazenda descansar, o senhor mudou de ramo. O que o levou a entrar na política?
J.A. – Primeiro, que toda vida eu gostei muito de política. Não diretamente, como candidato, mas sempre participei das discussões. A minha condição de líder classista sempre foi alimentada com essa, vamos dizer, veia política. Mas eu acho que há uma incompatibilidade entre negócio e política. Então, quando meu filho caçula, o Josué, voltou do MBA que fez nos Estados Unidos, em Wanderbill, como primeiro aluno da escola, um menino brilhante, depois de se formar aqui em Engenharia e Direito, eu achei que era a hora de mudar. Pois bem, ele voltou, vamos ver se ele dá no couro para tomar conta das empresas. Quando ele começou a trabalhar comigo, aceitei um convite antigo para entrar no PMDB.

De tempos em tempos, a nossa conversa é interrompida pelos cuidados de dona Mariza, o tempo todo a seu lado no hospital, para lembrá-lo dos remédios que precisa tomar, do lanche que já passou da hora, mas ele sempre pede para esperar um pouco. “É por isso que este casamento não vai pra frente…”, brinca ele, após mais uma discussão com a mulher, com quem está casado há 51 anos. Aproveitamos para mudar um pouco de assunto.

Brasileiros – Na hora em que o senhor conseguir se livrar dos hospitais e dos médicos e enfermeiros, todos, qual a primeira coisa que tem vontade de fazer?
J.A. – Ah, se eu puder, tomar um gole de cachaça e comer um torresmo… (risos)

Brasileiros – O senhor continua fabricando aquela cachaça fantástica, a Maria da Cruz?
J.A. – Aquilo é um artesanato feito na minha fazenda.

Brasileiros – Tem algum lugar onde faz tempo que o senhor não vai por causa dos problemas de saúde e que gostaria de voltar?
J.A. – Ah, tem! Por exemplo, cidades como Ubá, Muriaé, onde eu nasci, Miraí, onde eu morei… Eu saí da Zona da Mata há 41 anos. De vez em quando, ia lá porque tenho ligações de família, muitos amigos, mas na vice-presidência é difícil porque a Zona da Mata é uma região que, como vocês sabem, tem uma topografia muito acidentada… Para fazer um deslocamento com maior segurança até um desses municípios é complicado, tem de ir de avião até Ipatinga ou Governador Valadares. Para fazer apenas um passeio, fica caro para a Força Aérea… Eu estou só esperando terminar o mandato pra poder matar saudades das minhas terras, né.

Brasileiros – Falta só um ano e meio… Depois o senhor vai fazer uma excursão lá pelo interior de Minas?
J.A. – Vou fazer. Vou ficar uns dias em cada uma dessas cidades. O pior é você perguntar pelas pessoas com quem conviveu na época e acontece muito de ouvir: “Ah, fulano já faleceu…”.

Brasileiros – Vai encontrar os filhos…
J.A. – Pois é, mas eles não me interessam…

Brasileiros – E por falar em filho, vamos retomar a conversa no ponto em que estávamos falando da entrada do Josué nas empresas e do seu ingresso no PMDB.
J.A. – Ele já chegou ao Brasil trabalhando nas empresas, em 1989. Quatro anos depois, atendendo a um convite de um grande amigo meu, o então presidente do partido Joaquim de Melo Freitas de Passos, que é do sudoeste de Minas, gente muito boa, eu me filiei ao PMDB. Em 1994, fui candidato do partido a governador. Mas é aquele negócio… Eu tinha sido presidente da Federação das Indústrias, militei em algumas associações comerciais desde o meu tempo de interior, então eu tinha uma grande segurança de que era muito conhecido, só que… Só que eu pensava que era conhecido, mas só era de fato no universo empresarial. Eu não sabia que o empresário esquece o dia da eleição, não está nem aí pra eleição, não gosta de política. Então, eu não era conhecido coisa nenhuma. Mas acabei fazendo uma campanha muito digna, graças a Deus, e fiquei muito conhecido politicamente também. Meu lema de campanha era o trabalho…

Brasileiros – Oito anos depois, o senhor seria o candidato a vice-presidente na chapa de um operário que foi líder sindical para formar uma aliança entre capital e trabalho…
J.A. – Foi. É, o Lula me convidou… Eu já era senador por Minas Gerais, que é o segundo maior colégio eleitoral do país, e ele era pernambucano, mas representava São Paulo porque tinha feito toda a sua carreira de liderança sindical em São Paulo. Então, ele conseguiu unir São Paulo e Minas. Eu costumo dizer o seguinte: posso não ter ajudado muito, mas eu não atrapalhei. Isso eu tenho consciência de que não atrapalhei…

Brasileiros – O senhor ajudou e muito, o senhor sabe disso. Naquela chapa lá de capital e trabalho foi uma coisa nova na política brasileira. Como é que vocês se conheceram pessoalmente?
J.A. – Em 2000, eu fiz uma festa grande porque eu estava completando 50 anos de vida empresarial. Eu fui emancipado pelo meu pai quando tinha 18 anos e abri uma casinha comercial, chamada “A Queimadeira”. Era de madeira. Então, com 68 anos, 50 anos de vida empresarial, fiz uma festa no Palácio das Artes em Belo Horizonte e mandei convidar todo mundo. Como a minha empresa está em vários Estados, então mandei convidar os governadores e os três senadores de cada um. Convidei as autoridades e o pessoal que estava organizando, disse: “Mas o senhor é senador, o senhor não vai convidar os senadores?”. Convidei todos os senadores. E os deputados? Convidei todos os deputados da bancada federal mineira e os estaduais, os vereadores…

Brasileiros – Mas o Lula não era autoridade nem tinha mandato…
J.A. – Vai escutando… Então, a menina dos convites chegou e me perguntou: “Mas e os partidos?”. Falei para ela convidar os presidentes dos partidos. Então ela chegou de novo e disse: “Mas o PT tem dois presidentes, o José Dirceu, que é o presidente efetivo e o Lula, que é o presidente de honra”. Então convida os dois… Foi assim. Apareceu lá ele e o Zé Dirceu, foi quando eu conheci o presidente. Eu já conhecia o Lula, claro, mas ele não me conhecia. Naquela festa nós nos entendemos, conversamos e…

Brasileiros – O que o senhor lembra desse primeiro contato com o Lula, da primeira conversa que vocês tiveram?
J.A. – O Lula conta que quando eu terminei de fazer o meu discurso, ele bateu no braço do Zé Dirceu e disse assim: “Encontrei meu candidato a vice”.

Brasileiros – E o que o senhor disse nesse discurso?
J.A. – Olha, essa festa, como vocês viram, foi bem organizadinha. Eu tinha um discurso pronto muito bonito, mas eu disse: “Não vou ler. Porque pelo que eu estou sentindo aqui, a curiosidade de vocês quando viram essas fotos, esses painéis mostrando fábricas, folhetos, eu acho que vocês querem saber mais ou menos como é que foi feito isso. Então, eu vou contar pra vocês alguma coisa da minha vida”. Aí contei pra eles e fui muito aplaudido. Uma coisa emocionante. O Lula não é bobo, ele é muito inteligente, não tem ninguém mais arguto que o Lula para fazer política.

Brasileiros – Mas o senhor já tinha alguma admiração por ele antes, alguma empatia?
J.A. – Eu já conhecia toda a história do Lula desde o sindicato. Outro dia até aconteceu um fato muito interessante. Um médico aqui do hospital falou assim: “Eu agora estou na equipe que trata do vice-presidente, mas eu não sei há quantos anos, quando o Lula não era nada, ele foi meu paciente”. Eu falei pra ele: “Tudo bem, agora eu só não tenho condições de me lembrar do tempo em que o Lula não era nada…”. Ele exerceu uma liderança importante no campo sindical. Você tem que ver o clima que nós vivíamos na época, e ele corajosamente enfrentou aquilo, porém com inteligência, porque ele não dá murro em ponta de faca. Já era um negociador, mas ao mesmo tempo bastante afirmativo.

Brasileiros – O senhor já tinha votado no Lula?
J.A. – Em 1989, eu e Mariza votamos nele no segundo turno contra o Collor. Nós não o conhecíamos pessoalmente, e muito menos ele a nós, e votamos nele. No primeiro turno, votamos no Dr. Ulysses Guimarães, que era o presidente do PMDB. Ele perdeu aquela eleição porque ainda não me conhecia, porque, se ele me conhecesse, o Lula teria ganho a eleição.

Brasileiros – Como assim? Já teria ganho em 1989, não precisaria ter esperado tanto?
J.A. – Teria conseguido, teria conseguido. No primeiro debate do segundo turno, ele ganhou o debate. Depois disso, o pessoal do Collor ficou meio desesperado e antes do segundo debate um irmão do atual senador Collor convenceu uma senhora a ir para a televisão falar mal do Lula no horário da propaganda eleitoral. Eu era presidente da Federação das Indústrias, chamei meus assessores e falei: “Por favor, olhem o que está acontecendo”. Quando terminou o programa, eu disse: “Se o Lula me conhecesse, eu ligaria pra ele agora dizendo pra ele não ir ao segundo debate”.

Brasileiros – O Lula se recusava mesmo a ir a esse debate, mas foi convencido a comparecer por dirigentes e assessores do PT…
J.A. – Eu, se fosse ele, apenas gravaria uma mensagem explicando os motivos. Falaria assim: “Eu não tenho condições de me encontrar com esse cidadão e não posso desrespeitar os brasileiros indo com ele a um debate na televisão em que está em jogo a presidência da República. Eu não vou participar deste debate e vocês vão saber por quê”. Explicava tudo e pronto: estava ganha a eleição.

Brasileiros – Além dos juros, aquela velha história, desde o começo do governo, em que o senhor tem uma posição e o governo tem outra, eu nunca vi uma divergência entre o senhor e o presidente. Tem alguma outra coisa sobre a qual vocês discordam?
J.A. – Sobre os juros nós nunca discordamos, não… Acontece que o Lula é o presidente do Brasil, ele tem responsabilidade, sabe que a maior defesa que pode fazer para o trabalhador é manter a moeda estável. Juro alto é um instrumento de controle da inflação porque inibe o consumo e inibe investimento. Só que durante todo o nosso tempo de campanha e de governo, nós pregamos mais investimentos que geram mais empregos… Agora, o Lula tem toda razão e eu compreendo. Se ele tem dor de barriga, ele não vai buscar um engenheiro, ele vai buscar um médico; se ele tem algum problema na economia, tem que ouvir um economista e não um analfabeto igual ao Zé Alencar… Ele não pode, ele tem responsabilidade como chefe de governo. Mas que ele fica satisfeito quando critico os juros altos, fica… (risos).

Dona Mariza entra novamente no quarto empurrando o carrinho com o lanche da tarde, mas José Alencar resiste a interromper novamente a entrevista. Sem chance. A mulher-enfermeira lembra que ele precisa se alimentar de três em três horas.

Sempre de bom humor, sem perder a firmeza, ela fala para o marido ouvir:

– É aquela história… Eu fico como a implicante, mas sou eu que tiro ele do hospital. Eles fazem a operação, mas quem recupera ele sou eu…

Brasileiros – Vocês têm duas filhas (Maria da Graça e Patrícia) e um filho, o Josué, e cinco netos, o primeiro bisneto a caminho. O senhor era mais duro com o Josué ou com as meninas?
J.A. –
É que o Josué é o que ficou mais comigo, as meninas foram mais educadas pela mãe. Neto é diferente, porque o neto às vezes você só usufrui né, mas o filho, não, filho é responsabilidade sua.

Brasileiros – O senhor tem planos políticos para o futuro?
J.A. – Olha, só Deus é que sabe, a gente nunca pode fazer uma previsão. Eu, por exemplo, dificilmente sairia candidato a um cargo executivo. Estou botando no condicional pelo seguinte: eu não estou bem de saúde. Se eu não estiver em condições de cumprir com um mandato, não levarei meu nome, na hora de subir a um palanque e pedir voto… Vamos supor, se Deus me curar e as lideranças quiserem, as pessoas quiserem que eu seja candidato, e sendo um cargo para o Legislativo, eu poderia aceitar. Porque, na minha idade, daqui a dois anos eu terei 79, assumir uma responsabilidade de cargo executivo com quase 80 anos pode ser meio temerário.

Brasileiros – Mas muita gente acha que se o senhor não tivesse quase 80 anos, tivesse dez anos a menos e a saúde boa, o senhor seria o candidato natural para a sucessão do presidente Lula. Alguma vez isso passou pela sua cabeça?
J.A. – Não. Eu acho que todo homem público, de vez em quando, pensa em, obviamente, ser candidato à presidência da República, isso é natural. Meu neto caçula, o David, fez nove anos esse mês agora. Mas, desde os sete, se você pergunta para ele o que quer ser quando crescer, diz que vai ser cientista e político. Político? É, ele responde. Mas qual é o seu partido? Vou entrar no PT. Mas você vai ser o quê? Vou ser candidato à presidência da República.

Brasileiros – O Ricardo, que já conhece o senhor faz tempo, quando me sugeriu tentar fazer uma entrevista com o José Alencar, eu falei: “Maravilhoso”. Então, eu que não o conhecia pessoalmente, o que me atrai é essa imagem de guerreiro, porque à distância é isso que me passa, um guerreiro do bem. Como é que o senhor consegue essa força toda para carregar seu fardo, esses problemas de saúde que vem enfrentando?
J.A. – Primeira coisa, não é só para o caso meu, não, é para qualquer caso: a coragem advém também do desprendimento. Não é só do desprendimento, mas o desprendimento é uma coisa muito importante para a coragem. Se a pessoa se apegar demais às coisas, tem dificuldades às vezes de adotar determinadas atitudes. E também tem o seguinte, essa força que as pessoas enxergam em mim, essa coragem na minha vida, vem exatamente da força que eu recebo dessas pessoas. E eu tenho recebido estímulos suficientes para ter coragem de enfrentar as dificuldades. Tenho até o dever, porque o apoio é uma coisa que impinge também a responsabilidade maior para quem está sendo alvo desse apoio. Isso é natural.

Brasileiros – É uma coisa que funciona em duas vias. As pessoas dão força para o senhor e o seu exemplo serve de apoio para eles também.
J.A. – Mas, às vezes, falam umas coisas que não têm sentido. Por exemplo, falam que José Alencar, além do mais, é um camarada altruísta, por participar de um programa experimental e tomar um remédio que nem nome tem. Mas que altruísmo tem nisso se o interessado maior sou eu mesmo? Não tem altruísmo nenhum… As pessoas falam isso porque há uma boa vontade em torno do meu nome.

Brasileiros – Qual foi o momento mais feliz da sua vida depois que entrou para a política?
J.A. – Em 2002, eu abri mão de quatro anos que ainda tinha de senador para assumir a vice-presidência, mas só abdiquei do Senado para tomar posse. Eu fui diplomado vice-presidente ainda como senador porque não era impeditivo, a opção era só pra tomar posse. Então, eu ganhei o diploma de vice-presidente, um diploma desse tamanho, uma beleza. O Lula chorou quando recebeu, eu também chorei…

A SINCERIDADE DE MEU PAI
por Nirlando Beirão
José Alencar é o oposto daquilo que a lenda diz que o político de Minas é. Reza a lenda: o político mineiro é tortuoso, tinhoso, evasivo, contraditório, barroco, se faz de bobo para dissimular sua esperteza, tem o prazer de confundir, complica de propósito dizendo que é para simplificar. Político mineiro, suspeita-se, está sempre fincado numa autoironia que, se de um lado, o protege, aos outros apunhala, com a objetividade serena mas implacável, digna de um cortesão florentino.

Ao encontrá-lo no hospital, às vésperas de sua partida para os Estados Unidos – onde a insaciável fome de viver submete o vice-presidente da República Federativa do Brasil à humildade de ser cobaia de um tratamento ainda experimental -, cotejo mais uma vez José Alencar e o político da caricatura, remanescente mítico de uma República que será sempre Velha.

José Alencar é a sinceridade em pessoa. Fala com a alma. Age às claras. Odeia manobras sorrateiras. Tem, sim, aquela picardia que a vida ensina, especialmente a quem teve de aplainar sua própria estrada, mas a picardia está aqui a serviço da clareza – e não da confusão. José Alencar trafega pela convicção – inusitada, para um político – de que o caminho mais curto é, sim, o que une, em reta, os dois pontos.

Muita gente estranhou à época que ele – empresário de fôlego multinacional – viesse a fazer parceria, na chapa presidencial, com o ex-metalúrgico. Mas ele também teve de ralar, nunca é demais lembrar que Lula e Alencar são parentes por parte dos Da Silva – e que os Da Silva são, onde quer que estejam no elevador social, o melhor retrato da enorme e diferenciada família Brasil.

Não por acaso, José Alencar dá qualidade moral ao governo Lula. Mas nunca fez da virtude um alarde, ao contrário de certos políticos – e aí não só os mineiros, muitos deles – cujos discursos moralistas mal escondem o mau cheiro da hipocrisia de palanque. Porque é um homem de bem, José Alencar não precisa ficar se vangloriando por aí afora.

Meu pai, enquanto viveu, sempre falou dele com uma admiração extraordinária. Sinto – agora, nesse encontro no hospital – que o respeito foi recíproco. José Alencar se refere ao “homem de bom coração” que foi o original, legítimo Nirlando Beirão – empresário como ele. Eu tratei de fazer intimamente a tradução: meu pai era dono de uma escandalosa credulidade, de ilimitada boa fé. Por isso é que a gente sempre teve de dar certo desconto naquela efusão de sentimentos com que meu pai se referia a seus eventuais amigos.

No caso de José Alencar, meu pai tinha toda razão: ele é mesmo especial.

Brasileiros – Foi o primeiro diploma dele e do senhor…
J.A. – Foi o primeiro diploma que nós recebemos na vida, o diploma de presidente e vice da República. Então foi aquele negócio, pois bem, foi uma sessão solene, grave, no Superior Tribunal Eleitoral (José Alencar se emociona de novo, como naquele dia).

Brasileiros – Nesses seis anos e meio de governo, qual foi o episódio mais marcante, o melhor momento?
J.A. – Olha, eu digo que há muitos, muitos momentos que nos trazem esse retorno muito grande. O retorno a que eu me refiro é sempre o retorno espiritual, e a gente tem recebido manifestações de agradecimento em coisas que nem precisava ter recebido, porque é um dever absolutamente natural de quem está exercendo o cargo. Mas uma das coisas que aconteceu comigo, que me emocionou, foi ter ganho o título de presidente de honra da Associação Comercial de Minas. Por quê? Porque em 1978, por aí, eu fui procurado pelos companheiros. Éramos 70 diretores para indicar o candidato à presidência, e eu topei. Aí veio o pessoal da antiga, os ex-presidentes, que eram todos meus amigos, mas resolveram impedir que houvesse a eleição de um candidato à revelia deles. Então, eles trabalharam contra mim e eu não fui indicado. Aquilo ficou marcado em mim. Pois bem, já agora na vice-presidência da República, a entidade resolveu me prestar essa grande homenagem, em setembro do ano passado. Foi uma coisa muito bonita, como se estivessem resgatando a minha história.

Brasileiros – Na mesma época, no final dos anos 1970, em que o senhor teve esses problemas com a Associação Comercial que o rejeitava, o Lula também vivia uma situação difícil no sindicato dele quando os militares estavam botando a diretoria dele para fora e depois para a cadeia.
J.A. – Porque, de certa forma, se você procurar na nossa trajetória, há alguma semelhança porque o Lula foi também uma liderança classista. Eu sempre fui uma liderança classista. Só que a minha classe era representativa das classes produtoras e a dele das classes trabalhadoras. Você não pode separar os dois. O trabalho é um dos fatores de produção e pra nós, por exemplo, ele tem que ser melhor remunerado do que o capital, que é outro. Uma das coisas que me leva contra a taxa de juros alta é exatamente isso, quem produz é que paga. E aí eu não estou falando mais de taxa básica, não, estou falando de taxas reais cobradas pelos bancos, essas taxas que você conhece, que eles exigem e o diabo, isso é uma coisa absurda.

Brasileiros – Eu sei por quê hoje eu mudei de lado no balcão, pela primeira vez eu virei dono de alguma coisa e capital de giro para mim deixou de ser um termo jornalístico para ser uma coisa que eu sinto na pele, com as contrapartidas que o senhor está dizendo que exigem.
J.A. – Então é assim: o capital é um dos fatores de produção, o trabalho é outro. Mas o trabalho no Brasil sempre foi mal remunerado. Agora, tem uma certa compensação no governo presidido pelo Lula. É só ver em dólar quanto representa hoje o salário mínimo. Hoje, o salário mínimo, e pouca gente ganha apenas salário mínimo, mas vamos dizer, lá no interiorzão ganha-se salário mínimo, e são quantos dólares? São 250 dólares de salário mínimo, por aí. Antes do nosso governo, o salário mínimo valia 50 dólares.

Brasileiros – O senhor acha que o início do processo de distribuição de renda vai ser a grande marca do governo de vocês?
J.A. – Sem dúvida, a distribuição de renda e, mais do que isso, a respeitabilidade do Brasil no cenário internacional. Isso aí é uma coisa que nem eu, que aceitei o convite pra ser candidato a vice, esperava do Lula. Foi uma boa surpresa pra mim também, porque o trabalho que ele realiza nesse campo é admirável. Ele se encontra com qualquer chefe de Estado por aí, pode ser a rainha da Inglaterra, ele sai contando casos, bate na barriga dela, ri com ela, não é verdade?

Brasileiros – Trata todo mundo da mesma forma…
J.A. – …E o tradutor que se vire. Ele faz aquilo com muita naturalidade porque tem certeza que a rainha está entendendo tudo o que ele está falando. Não é uma coisa formidável? E o pessoal gosta dele. Agora, por exemplo, em Montes Claros, recebi uma homenagem. Estavam lá nove governadores, nove discursos falando do meu trabalho. Quando terminou o discurso do governador de Minas, o Lula lá da mesa falou bem alto assim: “Você que é o cara, Zé Alencar! Você é o cara!”. Aí eu respondi: “O vice-cara, presidente…”. Ele tinha acabado de voltar dos Estados Unidos e tinha sido chamado pelo Obama de “o cara”.

Muito bom isso… (risos). Olha, nós já abusamos demais do senhor, queria agradecer bastante, ouvimos uma bela história de vida. Nós agora precisamos correr para escrever porque a revista já está na gráfica.

O MÉDICO DO VICE-PRESIDENTE

por Helena Wolfenson
O oncologista Paulo Marcelo Gehm Hoff é um dos principais responsáveis pelo tratamento experimental contra o câncer ao qual está sendo submetido o vice-presidente da República, José Alencar. Embora tenha apenas 40 anos, Paulo Hoff é diretor executivo do Centro de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês e já foi professor da Universidade do Texas, responsável pelo Centro Oncológico MD Anderson, para onde Alencar embarcou no dia 4 de agosto, para a terceira etapa de seu tratamento iniciado em maio deste ano. Em entrevista à Brasileiros, o oncologista descreve o procedimento inovador utilizado no tratamento, que é feito somente em Houston e em Nova York, com apenas 30 pacientes envolvidos. Segundo Hoff, Alencar é voluntário nesse tratamento como qualquer outra pessoa e assinou todos os termos, ciente do risco de ser cobaia de um experimento. O oncologista crê que a nova medicação poderá controlar a reprodução de sarcomas (células cancerosas). “Diferente da quimioterapia, este não é um tratamento no tumor em si, mas na raiz, na origem dos tumores”, explica Hoff.

Brasileiros – Em linhas gerais, como o senhor poderia nos explicar o tratamento que o vice-presidente, José Alencar, vem fazendo? Quais são os métodos e a eficácia?
Paulo Hoff –Antes de qualquer coisa, gostaria de deixar claro que esse é um tratamento experimental, ou seja, ainda não se sabe se irá funcionar com eficácia ou não. No caso do vice-presidente, o tratamento está funcionando como um controle da doença e da reprodução de células cancerosas, ainda em fase de teste. O remédio age da seguinte forma: o corpo humano produz constantemente uma molécula chamada P53, responsável por ativar os mecanismos que levam à morte celular programada (ou seja, é a responsável por reciclar as nossas células tanto boas quanto ruins). E como nem todas as células boas poderiam morrer o tempo todo, existe uma outra molécula, chamada MDM2, responsável por frear a molécula P53. Dessa forma, chega-se ao equilíbrio (o câncer é uma forma de desequilíbrio entre essas duas moléculas, uma vez que a MDM2 tem ação excessiva, a ponto de coibir radicalmente a P53). O que esse remédio tem feito é agir para o equilíbrio entre as duas moléculas. Ele funciona como um inibidor da molécula de freio, a MDM2, exatamente para que se libere mais a P53, e as células cancerosas voltem a ser recicladas.

Brasileiros – O senhor saberia dizer qual é a previsão de duração do tratamento para o vice-presidente?
P.H. – O tratamento vai durar enquanto o organismo estiver respondendo ao remédio e, por enquanto, está. É importante lembrar de que esse não é um remédio de cura do câncer, mas de controle da doença.

Brasileiros –Já se pode dizer para qual tipo de câncer esse tratamento tem mais eficácia?
P.H. –Não posso afirmar. Para alguns tipos já vemos uma resposta melhor, mas ainda é um processo, que não é feito por mim e que está em estudo de Fase 1. De qualquer maneira, não se recomenda a divulgação, pois algum paciente pode querer buscar desesperadamente esse remédio e ele não pode ser comercializado, nem sair do centro de estudos ainda. Por isso, o vice-presidente tem de ir até lá para as aplicações. Temos de tomar cuidado para não causar a sensação de que se tem uma panaceia (cura para todos os males). É claro que o exemplo do vice-presidente com esse tratamento é muito importante, mas, por ainda estar em fase de estudo, tudo deve ser muito cauteloso.


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