O ano é 1995. A cidade Amparo, São Paulo. O céu, como é de costume no interior paulista, está azul, sem nenhuma nuvem. Dois garotos de 12 anos, montados em suas respectivas bicicletas, encontram-se, por acaso, em um terreno baldio. O mato é alto, a terra vermelha. Como dois cachorros se rodeando, eles se encaram sem dizer palavra. O misto de desconfiança e surpresa, causado pelo encontro inesperado, é quebrado quando Guilherme Caleffi faz seu primeiro movimento. Ele pedala rapidamente e dá um salto espetacular em uma rampinha feita de terra. Diogo Canina fica impressionado e, logo em seguida, tenta repetir os movimentos do outro.Nesse dia, nenhum dos dois voltou para casa na hora do almoço e, no final da tarde, já eram grandes amigos. A singela memória, contada por Diogo, aos 28 anos, seria determinante em sua vida. Ele nunca mais conseguiria descer de cima das duas rodas.Los Angeles, Califórnia. O Summer X-Games, evento que acontece anualmente na cidade americana, é uma verdadeira olimpíada de esportes radicais. Organizado pela emissora de TV ESPN, as categorias da competição são skate, rally, moto-X e BMX – os dois últimos significam, respectivamente, motocross e bicycle motocross. O verão de 2008 reservava duas surpresas para fãs e atletas de BMX. A primeira era uma nova pista: o Super Park, uma espécie de piscina de concreto gigante, que combina rampas, curvas e corrimões. A segunda novidade viria nas cores verde, amarelo e prata e atendia pelo nome de Diogo Canina. Em seu ano de estreia nos X-Games, ele foi convidado para “esquentar banco”, já que só competiria se um dos 20 pilotos principais se machucasse. Foi o que aconteceu. Inscrito de última hora, ele ficou em segundo lugar napontuação da superfinal, etapa que reúne as cinco melhores linhas (como são chamadas as voltas de cada piloto) da competição. “A pista, apesar de desconhecida por todos, era parecida com a que eu aprendi a andar em Amparo”, conta ele. A intensidade com que pedala, a altura que atinge nos saltos e a velocidade com que aterrissa explicam a medalha de prata que ele levou para casa.[nggallery id=14881]Em 2009, passado um ano, Diogo chegou ao evento como um dos principais candidatos a faturar o ouro. Sua linha, como um todo, foi mais consistente que a de 2008, e ele parecia muito mais à vontade na pista, que já não era mais novidade para ninguém. Culpa de uma queda em sua volta final ou por injustiça dos jurados, ele ficou um ponto atrás do primeiro colocado e levou a prata novamente.Diogo mede 1,80 m e pesa 83 kg. O tronco largo e os braços fortes não são produtos de academia, mas resultado de horas de treino na bike. Ao contrário do estereótipo do atleta de esportes radicais, ele não usa boné para o lado, medalhão no pescoço ou brinco na orelha. Mas também não julga quem o faça. “Um cara que, já adulto, julga um menino como o Neymar, pelo jeito que ele se veste, se esqueceu da sua própria adolescência ou é muito bobo.” A única peça de roupa que o denuncia são as calças coladas, típicas dos pilotos de BMX.Atualmente, ele mora em Greenville, Carolina do Norte (EUA), e passa férias, entre um campeonato e outro, em Amparo. Desde que virou piloto profissional, o prêmio mais alto que recebeu foi de 26 mil dólares – ele ainda ganha um salário mensal de seus patrocinadores Vans e Diamondback, marcas ligadas ao mundo dos esportes radicais. Para ele, no entanto, a oportunidade de viajar o mundo é muito mais importante que o dinheiro e as premiações.Voar, segundo ele, é uma obsessão humana, que, de certa forma, também é a sua. O risco de cair é constante e ele sabe muito bem disso. A queda, como fica claro em uma discussão com sua mãe, Iara Carvalho, é considerada por ele. “Eu só peço a Deus para que ele não se machuque”, diz a mãe. Diogo, no entanto, rechaça a fé materna. “Mãe, não fala essas coisas, você acaba me passando seu medo. É óbvio que eu vou cair, eu tenho de cair em algum momento”, argumenta, logo após mostrar uma série de fotos de suas quedas. E como ele lida com a dor? “Isso é o de menos, doer dói, mas o ruim mesmo é que em um momento você está feliz e andando bem, no outro você está no chão e sabe que vai demorar um tempão para se recuperar.”Tudo para Diogo é uma grande história e, muitas vezes, seu cérebro funciona mais rápido que sua fala. “Qual é a palavra mesmo? Eu sempre esqueço a palavra certa! Espera um pouquinho que eu já vou lembrar.”Apesar de ter um pôster de Dave Mirra, um dos principais pilotos de BMX do mundo, fixado na porta de seu quarto, seu maior ídolo viveu muito antes da primeira bicicleta: Marco Polo. “Eu li toda a saga dele e o fato de ele ter aberto mão da comodidade de viver em sua terra natal, com sua língua materna e família, é uma inspiração para mim.”Depois do encontro premonitório com Guilherme Caleffi, em 1995, os dois meninos espalhariam uma febre de bicicleta por Amparo. Uma das modalidades do BMX, o Dirt é praticado em pistas de terra e foi onde tudo começou para o grupo de garotos que praticava o esporte, sem nunca ter ouvido falar dele. “Queríamos imitar, com nossas bicicletas, os saltos que os caras davam no motocross”, conta Diogo.Por volta de 1998, Diogo descobriu o nome do esporte que ele e seus amigos vinham praticando. “A primeira vez que vi algo parecido com o que fazíamos foi quando assisti a um vídeo de Ryan Nyquist, um dos principais nomes do BMX”, conta. Um pouco antes disso, em 1996, ele fez um movimento junto à prefeitura para a construção de uma pista de concreto – que, mencionada anteriormente, preconizava o Super Park do X-Games. Durante muitos anos, foi seu local de treino. Quando a idade de tirar a habilitação de motorista começou a chegar, todos os garotos foram parando de andar de bicicleta. “Eu era o único que ainda andava na cidade”, relembra Diogo. Guilherme, por exemplo, trocou os pedais da bicicleta pelo acelerador de uma moto e se arriscou, durante alguns anos, nas pistas de terra. A época coincidiu com um momento de intensas mudanças na vida de Diogo. “Meus pais estavam se separando, o que resultaria, entre outras coisas, em um período de 10 anos sem falar com meu pai.” Além disso, ele estava dividido entre fazer cursinho e levar a brincadeira da bicicleta a outro patamar. Sob as pedaladas de Diogo, o asfalto passava ao largo dos problemas familiares que, com a separação dos pais, tornaram-se financeiros.Aos 18 anos, 45 reais era o preço do sonho de Diogo. A quantia era suficiente para ir, voltar e comer em São Paulo. A hospedagem ficava por conta de amigos. “Ao longo da semana, eu fazia de tudo para conseguir essa grana, menos pedir dinheiro para minha mãe.” Na capital paulista, ele treinou forte e se aproximou de pessoas ligadas ao mundo do BMX. Em pouco tempo, ele já participava de campeonatos nacionais e tinha se transformado em um dos melhores pilotos do Brasil.

“Mãe é foda, né”, começa Diogo. “Ela tinha consciência de tudo o que eu estava passando, quer dizer, eu não me lembro de nenhum momento da minha vida sem a bicicleta, e ela sabia que eu precisava tentar fazer daquilo minha vida”, conclui. Para isso, no entanto, ele precisava viajar para os Estados Unidos. Aos 19 anos, largou os estudos, uma das decisões mais difíceis de sua vida; se matriculou em um curso intensivo de inglês e pedalou muito.Depois de algumas idas e vindas, em 2004, com ajuda total da mãe, conseguiu viajar para os EUA. “Fui sem informação nenhuma, desembarquei em Nova York, entrei em um ônibus e fui direto para uma pista em New Jersey.” Chegou e pedalou, durante horas. Sem perceber, passou o dia inteiro na pista, não comeu, não procurou hotel e, às 22 horas, se deu conta de que estava nos Estados Unidos, sem lugar para dormir.De um jeito ou de outro, Diogo se acertou. Ficou de favor em uma casa, fez conhecidos na pista e marcou seu terreno. Voltou para o Brasil e no ano seguinte foi para os Estados Unidos novamente, dessa vez com a intenção de concretizar seu sonho: ser piloto profissional de BMX e viajar o mundo. “A partir daí, eu entrei no mix internacional: muitas viagens, treinos, festas e, durante quase quatro anos, não pensei em mais nada a não ser em pedalar.”Para muita gente, 2010 seria o ano de Diogo. No entanto, sua terceira participação nos X-Games não rendeu nenhumamedalha. Ele ficou em quinto lugar. Sua queda de rendimento, no entanto, teve motivo claro.Desde o primeiro semestre de 2009, ele passou a dividir o tempo de treino com os estudos. Cursando Economia na East Carolina University, em Greenville, ele é um dos melhores alunos da sala. “Cansei dos campeonatos e do ritmo de viagens, mas o principal é que eu queria entender melhor o mundo e, para isso, precisava entrar em uma universidade”, explica.Com 28 anos, um atleta não é mais uma criança, mas ele, pelo que vem mostrando, ainda tem muita lenha para queimar. A decisão de fazer faculdade não é uma despedida do esporte, por enquanto ele tem conciliado bem as duas coisas. No entanto, ele acredita estar em um momento de grandes mudanças em sua vida. “Posso dizer que meu sonho de andar de bike está dando lugar ao meu sonho de fazer alguma coisa significativa pelo mundo.”Encontramos Diogo 15 dias antes do X-Games 2011 (28 a 31 de julho). Apesar de ansioso para a competição, ele admite que sua cabeça está cada vez mais voltada para os estudos e ele já vislumbra, até mesmo, a possibilidade de abrir mão da bike aos poucos.A decisão de cursar Economia nasceu junto com suas preocupações sociais. “Pode soar piegas, mas não consigo ficar indiferente ao ver uma criança que não tem as mesmas oportunidades que tive. Se todos partissem do mesmo ponto, confesso que não ligaria para o destino de cada um, mas não é o caso.”No terceiro ano da faculdade, é possível que, em pouco tempo, Diogo esteja trabalhando em uma multinacional ou em um banco, e que, a bicicleta, se torne apenas uma lembrança em sua vida. No entanto, ele não tem certeza de qual caminho seguirá. “Não consigo me acostumar com a ideia de trabalhar para alguém que tem práticas com as quais eu não concordo”, diz. Mas está seguro de que seu futuro será no Brasil. “Aqui estão as minhas preocupações.” E não pretende viver da bike pelo resto da vida. “Uma hora tudo isso vai acabar e não quero viver do passado.” Ao falar sobre sua decisão, faz uma analogia entre o pôr do sol e o momento pelo qual passa na vida. “O pôr do sol é um espetáculo, mas você tem de abrir mão do final, senão fica escuro e você perde o caminho de volta para casa, eu não quero perder o meu caminho.”

Nota: Enquanto esta matéria estava sendo fechada, Diogo foi capa de uma das principais revistas de BMX do mundo, a americana Ride BMX.

» Vídeo dos bastidores da entrevista» O atleta no X-Games 2009» No Digitais


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