Nos últimos anos, divulgou-se que o Aquífero Guarani era a maior reserva subterrânea de água doce do mundo – um imenso mar de água doce sob o solo, compartilhado de forma contínua e homogênea por quatro países do Mercosul -, com capacidade para abastecer a população mundial por 2.500 anos, despertando um grande interesse em relação a essa reserva e gerando muitas informações falsas a respeito da mesma. Na realidade, ele não é um lençol de água e sim uma rocha, cuja extensão o coloca na posição de 3o maior do mundo, e não 1o, como se pensava. O Guarani fica atrás do Arenito Núbia – que cruza Líbia, Egito, Chade e Sudão -, e o maior deles, o aquífero da Grande Bacia Artesiana, localizado na Austrália.
O Aquífero Guarani tem uma superfície de quase 1,2 milhões de km2 e está inserido na Bacia Geológica Sedimentar do Paraná, abrangendo parte do Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. A área de ocorrência do Guarani congrega uma população aproximada de 34,3 milhões de habitantes e caracteriza-se por concentrar as zonas agropecuárias mais importantes de cada país, com terras férteis e solos com altos índices de produtividade, onde são desenvolvidas as culturas de soja, milho, trigo, cevada, sucroalcooleira, etc., com excelente potencial de desenvolvimento da pecuária de corte, além de uma indústria bastante diversificada.
As regiões do aquífero compunham um deserto pré-histórico, da Era Mesozoica, com pouca vida animal e vegetal. Com o passar do tempo, os ventos acumularam grandes depósitos arenosos (na Bacia Sedimentar do Paraná), representando um extenso campo de dunas, recoberto por um dos mais volumosos episódios de vulcanismo intracontinental do planeta, cuja lava solidificada originou a Formação Serra Geral, uma capa protetora do Aquífero Guarani. Essa lava, em sua solidificação, estancou a areia de alta porosidade e condutividade hídrica, permitindo o acúmulo de água nessa unidade sedimentar. Esses mecanismos geológicos é que originaram as rochas (formações geológicas), em cujos poros armazenam-se as águas do Aquífero Guarani, que foram intensamente estudadas na década de 1950, mas somente a partir dos anos 1970 é que empresas de prospecção de petróleo e captação de água intensificaram suas atividades, permitindo o conhecimento mais detalhado de sua extensão, espessura e volume de água estocada.
O termo Guarani foi sugerido pelo geólogo uruguaio Danilo Antón, em uma conversa informal com seus colegas, e aprovado com o respaldo dos quatro países da abrangência do aquífero, em uma reunião em Curitiba (Paraná), em maio de 1996. O objetivo era unificar a nomenclatura das formações geológicas que constituem o aquífero – que recebiam nomes diferentes nos quatro países – e, simultaneamente, prestar uma homenagem aos índios guaranis que habitavam a área de sua ocorrência na época do descobrimento da América.
O Brasil é o País com a maior área do Guarani (69,8%), o que equivale a 9,6% da área total do território nacional, seguido pela Argentina com 19,2%, Paraguai com 6,1% e Uruguai com 5% representando a menor área do Guarani, mas que equivale a 33,4% de seu território.
No Brasil, as rochas do Guarani, espalham-se pelo subsolo de oito Estados – Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Apenas uma capital, Campo Grande, está situada sobre a Formação Serra Geral, sobrejacente ao Aquífero Guarani. O Mato Grosso do Sul é o Estado com a maior área do Guarani (26%), seguido por Rio Grande do Sul e São Paulo. O Estado que contém a menor área é Mato Grosso (0,9%).
O Guarani é um aquífero do tipo poroso e recoberto pelas espessas camadas de rochas de basalto da Formação Serra Geral e, em algumas regiões, pelos sedimentos que constituem os grupos Bauru e Caiuá. Portanto, apenas 12,5%, aproximadamente, da sua área total encontra-se rente à superfície, em forma de faixas alongadas aflorantes, expondo as rochas arenosas ao longo das regiões marginais da Bacia Sedimentar do Paraná.
A espessura total varia de valores superiores a 800 m (Alegrete, RS), até a ausência completa em áreas internas da bacia (Muitos Capões, RS). As espessuras dos basaltos (Formação Serra Geral) que recobrem o Guarani aumentam da borda em relação ao centro da bacia, ultrapassando em algumas regiões a marca de 1.000 m. Esse confinamento do aquífero impõe condições de artesianismo (exploração do subsolo) a partir de algumas dezenas de quilômetros de distância das áreas de afloramento.
O quimismo (conjunto das reações químicas, orgânicas e biológicas) das águas do Guarani é muito variável, principalmente nas zonas confinadas e, até o presente momento, pode-se dizer que as águas do Guarani são potáveis em 20% a 30% da sua área. Nas regiões onde o aquífero ocorre em maiores profundidades, a água (in natura) pode conter elevado teor de sólidos totais dissolvidos, alta concentração de sulfatos e presença de flúor acima dos limites recomendáveis. Essas concentrações estão relacionadas com as condições de grande confinamento e de um tempo elevado de residência das águas no aquífero. Por isso, é equivocada a afirmação de que o Aquífero Guarani é a maior reserva de água subterrânea potável do mundo. Normalmente, quando as águas do aquífero são muito quentes, elas não são adequadas ao consumo humano pela alta salinidade.
As águas do Guarani podem atingir temperaturas relativamente elevadas, em geral, entre 30 °C e 68 °C, com temperatura média de 25 °C a 30 °C, e o geotermalismo das águas desse aquífero não se deve à existência de câmaras magmáticas (reservatórios subterrâneos de magma que abastecem um ou vários vulcões), mas sim em função do gradiente geotérmico (aumento da temperatura em decorrência da profundidade). O valor médio terrestre de gradiente térmico é cerca de 1 °C/34 m, ou seja, a temperatura da água aumenta 1 °C a cada 34 m de profundidade. A temperatura máxima de 68 °C foi registrada no município de Cianorte (Paraná), à profundidade de 1.565 m. A energia geotérmica do sistema Aquífero Guarani, estimada em 280 MW ano/km2, representa um potencial de aproveitamento energético significativo, que ainda depende de estudos e soluções de infraestrutura para a captação desses recursos.
Uma estimativa da área do Guarani, com potencial de produção de águas termais superiores a 38 °C, atinge aproximadamente 380.000 km2, equivalente a, aproximadamente, 45% da área de sua ocorrência no Brasil, ou cerca de 30% da sua extensão total. Nas regiões de maior confinamento é que estão localizadas as principais estâncias hidrotermais naturais, com temperaturas predominantes até 43 °C, podendo, em alguns casos, a exemplo de Cianorte (Paraná) e do norte do Uruguai, atingir valores superiores a 55 °C. As regiões onde ocorrem o termalismo são aquelas confinadas pela Formação Serra Geral, na parte mais central da Bacia Sedimentar do Paraná.
Estudos recentes revelaram que o Aquífero Guarani apresenta-se, em vários locais, compartimentado por falhas geológicas expressivas que funcionam como barreiras hidráulicas (diques), segmentando o sistema aquífero e afetando o fluxo subterrâneo e a qualidade da água, podendo-se afirmar, então, que o Aquífero Guarani é um sistema compartimentado e a quantidade e a qualidade de suas águas variam de região para região. Há situações nas quais as vazões de explotação (extração para fins econômicos) dos poços tubulares podem se esgotar rapidamente, pois não se percebe uma taxa de recarga efetiva de águas modernas (as águas armazenadas no aquífero podem atingir 30 mil anos).
Essa compartimentação é determinante, inclusive na hipótese de aquífero transfronteiriço imposta ao Guarani, ou seja, além de sua descontinuidade estrutural, esse sistema não apresenta as características típicas de um aquífero com fluxos de água transfronteiriços. Embora as formações geológicas constituintes do sistema aquífero ocorram em todos os quatro países do Mercosul, sob o ponto de vista hidráulico, a condição de continuidade é presente apenas na região entre o Mato Grosso do Sul e Paraguai, e entre o sudoeste do Rio Grande do Sul, Argentina e Uruguai.
Em relação à sustentabilidade do uso em termos de qualidade, o maior problema pode ocorrer nas zonas aflorantes onde não existe saneamento e o recurso é utilizado para o abastecimento da população. O principal fator de risco da utilização das águas subterrâneas resulta do grande número de poços rasos e profundos que são construídos, operados e abandonados sem tecnologia adequada, devido à falta de controle e fiscalização nas esferas federal, estaduais e municipais. Estudos têm revelado que as águas do Aquífero Guarani ainda estão livres de contaminação. Contudo, considerando que a área de recarga coincide com importantes áreas agrícolas brasileiras, onde se tem usado intensamente herbicidas, é de se esperar que sejam necessárias medidas urgentes de controle, monitoramento e redução da carga de agrotóxicos. Outro perigo quanto à explotação de água do Guarani diz respeito a seu uso descontrolado e excessivo, principalmente nos locais que apresentam artesianismo, sendo necessário um rígido controle para se evitar o desperdício de água e consequente diminuição da pressão interna do sistema, o que viria a prejudicar os outros usuários das redondezas do poço jorrante.
Entre os vários usos das águas captadas desse Aquífero e as possibilidades de incrementar outras modalidades que favoreçam a implantação de empreendimentos nas regiões de incidência, tem-se, basicamente, o abastecimento público, o desenvolvimento de atividades industriais e agroindustriais e o desenvolvimento do turismo com a instalação de estâncias hidrotermais.
O uso mais intensivo das águas extraídas do Guarani está concentrado em território brasileiro, onde a diversidade de aplicações é maior. Já, nos demais países, a maior utilização se baseia no hidrotermalismo, com fins recreativos e hidroterapêuticos. Na Argentina, a zona de exploração hidrotermal do Guarani está localizada na margem direita do rio Uruguai, destacando-se os Complexos Turísticos Termais de Colón, Federación e Concórdia nas cidades homônimas, cujas águas possuem temperatura média de 33,6 °C, 43 °C e 46 °C, respectivamente. No Paraguai, o Guarani é utilizado principalmente no abastecimento da população por meio de poços perfurados em áreas de afloramento. Os poços desse aquífero localizam-se principalmente na Zona Centro e Sul, e provém o abastecimento de pequenas comunidades com até 4 mil habitantes. No Uruguai, as águas do Guarani têm maior aproveitamento no hidrotermalismo recreativo, em Salto e Paysandu, representando o segundo polo turístico do país, com uma receita de aproximadamente US$ 130 milhões/ano.
No Brasil, as águas do Guarani são majoritariamente destinadas ao abastecimento da população (70%), seguido do setor industrial (25%) e para fins de irrigação, hidrotermalismo recreativo e terapêutico, com 5%. Como exemplo de utilização das águas para abastecimento público pode ser citada a cidade de Ribeirão Preto (São Paulo), que tem hoje, segundo dados recentes da Sabesp, quase 100% do abastecimento proveniente do Guarani. Os complexos hidrotermais encontram-se principalmente nos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, onde podemos citar as Termas Minerais Águas do Prado, no município de Vicente Dutra. Uma fonte de água termomineral com propriedades medicinais e temperatura na casa dos 36 °C. O balneário oferece a hidroterapia e tratamento com lodo sulforoso. Por fim, vale ressaltar que o País tem outros dois aquíferos de proporções semelhantes: a Bacia Sedimentar Paraná e a recém-descoberta Bacia Sedimentar Amazonas, supostamente maior que o Guarani, segundo defendem alguns pesquisadores. Discussões à parte, temos motivos para comemorar.
RADIOGRAFIA DO AQUÍFERO GUARANI
Considerado a terceira maior reserva subterrânea
de água doce do mundo, tem uma superfície de cerca de 1,2 milhões de km2, 69,8% desse total, localizado no Brasil. Estima-se que o Guarani possua 46.000 km3 de água, volume 575 vezes maior que o do Rio Amazonas, o maior do mundo. Estudos definirão o percentual de aproveitamento desse volume
*Bióloga e membro do Grupo Integrado de Aquicultura e Estudos Ambientais (GIA), da UFPR. É também coautora de A Integração das Águas: Revelando o Verdadeiro Aquífero Guarani (Fundação Roberto Marinho, 2011), com José Roberto Borghetti e Ernani Francisco da Rosa Filho.
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