São quase 16 horas. Estou na Academia Fórmula da rua Consolação, em São Paulo, para entrevistar o ex-pugilista Eder Jofre. O local, todo enfeitado para o Halloween, é frequentado por pessoas da classe média alta paulistana

Entre caveiras e assombrações, dondocas e garotões sarados, encontro na lanchonete um homem de cabelos grisalhos, magro e bem mais baixo do que o atleta que eu via na televisão, em revistas e jornais da minha infância. Aos 74 anos, de jaqueta de náilon creme, camisa esporte branca e calça jeans, Jofre é um homem elegante e brincalhão. Faz piadinhas comigo e com as balconistas na lanchonete da academia. Elas confessaram não saber que aquele é o mais importante boxea-dor brasileiro de todos os tempos.
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Cinquenta anos depois de conquistar seu primeiro título mundial – foi campeão como peso-galo e depois como peso-pena -, Eder revela sua vida pessoal e familiar, longe dos ringues e da fama. “Levo uma vida comum. Levanto entre 9 e 11 horas e preparo o meu café com leite, pão e manteiga. Depois, leio jornal e venho treinar. À tarde, faço alguns contatos por telefone e recebo ligações de amigos e parentes. Alguns me convidam para almoçar ou jantar.”

Ainda na lanchonete, Harry, o personal trainer, entrega: “Ele costumava vir três vezes por semana, fazer musculação e pular corda. Ultimamente, anda paradinho. Tem de vir mais, né?… Vou começar a pegar no seu pé”, brinca.

“É o esquecimento. Sinto muita dor de cabeça, estou fazendo exames neurológicos. Hoje mesmo, minha mulher pediu para eu fazer umas compras e esqueci um negócio”, responde o campeão.

Um senhor de meia idade se aproxima: “Assisti a um filme seu, do Ugo Georgetti”. “Ah, sei, Quebrando a Cara“, lembrou Eder, acenando “positivo”.

Primeira namorada
Eder Jofre está casado há 49 anos com Cidinha, a primeira namorada. “Hoje, ela é bonita, mas já foi linda. Quando saíamos juntos, além de me reconhecerem, os caras ficavam com os olhos nela.”

O intenso assédio das mulheres também era intenso, mas não chegou a abalar o casamento. “As mulheres davam em cima mesmo. Mandavam bilhetes, às vezes iam na porta de casa. Mas escolhi ficar com a família”, conta ele. Cidinha revela que eles se dão muito bem. “Nossa vida é boa, tranquila. Sou dona de casa e não paro. Ele faz compras e, às vezes, lava a louça. Tenho boas recordações do tempo em que ele era famoso, de nossas viagens, sempre o acompanhei, não tinha ciúmes. Não passeamos mais porque não estou muito bem de saúde.”

Os filhos, Marcel, 45 anos, e Andrea, 40, estão sempre por perto. Eder brinca feito criança com Lanika, 11, e Axcel, 14 anos, filhos da Andrea; e Eder Jofre Neto, de 8 anos, herdeiro do Marcel. Na casa de praia em Ilha Comprida, no litoral paulista, sentem-se à vontade, olhando o mar, da varanda. “Adoro nadar, mergulhar, pular onda. Fico de olho nas crianças, não deixo ir no fundo.”

Atualmente, Marcel cuida do Instituto Eder Jofre, entidade que promove atividades esportivas gratuitas a atletas iniciantes. “Meu pai é o amigo, o ídolo, a pessoa em quem pude me espelhar. Eu o tenho como exemplo, a síntese de um ser humano bacana. Apesar de nossa pouca idade, pelos comentários dos amiguinhos sabíamos de sua importância. Ele era o nosso super-herói, indestrutível, aquele que nunca perdia.”

Herança genética
Jofre não foi bicampeão mundial por acaso. Além do preparo físico e da habilidade técnica, tinha a herança genética. “Vim de uma família de pugilistas. “Meu pai, Aristides Kid Jofre, era argentino e técnico de boxe. Veio para o Brasil ajudar o irmão Armando na academia, primeiro no Rio e depois aqui em São Paulo. Meu pai foi o melhor técnico de boxe do País. Professor de Educação Física, formou campeões paulista, brasileiro, sul-americano e mundial, que fui eu”, diz, sem falsa modéstia.

E o boxe estava no sangue. Os oito tios por parte da mãe, Angelina Zumbano, também eram pugilistas: Valdemar, Higino, Erasmo, Antonio, Ralph, Ricardo, Walter e a irmã Olga, que lutou na Alemanha.

O atleta teve dois irmãos, Dogalberto e Lucrécia. Fez a primeira exibição aos quatro anos, lutando com a irmã. “Lucrécia é a mais velha. Mora em Santos, está muito bem, aparenta menos de 50 anos. Casou com um boxeador e tem um filho que pratica boxe como outros sobrinhos e primos da nova geração da família.”

O ringue era o seu quintal. Alunos da academia do pai o carregavam no colo para bater no pushing ball e no saco de areia. Só não queria ir à escola. Parou de estudar no ginásio e cursou um pouco de técnico em edificações. “Desde molequinho eu gostava de desenhar. Tirava nota 10 nos desenhos e – pelo incentivo dos familiares – fui me entusiasmando.” Talentoso, começou a trabalhar como decorador e desenhista de móveis. “Fiz vários painéis em casas, lojas e restaurantes. Na época, a luta era quase um hobby. Às vezes, desenho uma paisagem, um objeto, uma pessoa. Não continuei porque o boxe me dava mais vantagens.”

O jovem Eder gostava de futebol. “Cresci no Parque Peruche, um bairro simples da Zona Norte. No jogo de bola, não levava pancada, era pura diversão, a alegria de marcar o gol, mas nasci para ser boxeador.” Seus ídolos: Joe Louis e Muhammad Ali, ambos pesos-pesados (90,7 kg). “Não acompanhava as lutas, mas quando assistia, adorava.”

O pai, Aristides Jofre, ou “Kid Jofre”, tinha um sonho: ensinar ao herdeiro os segredos do boxe. “Uma vez, eu quis parar, ele ficou aborrecido; então, voltei. Ele não me obrigava, só queria que eu estudasse, fosse à escola. Lutei a primeira vez aos oito anos, no Pacaembu, com um menino mais velho, e ganhei.”

Éder conta que não incentivou os filhos a praticar o esporte. Marcel chegou a treinar e parou; seguiu outros caminhos. “O boxe é um esporte de levar pancada na cara, no corpo, e mais cedo ou mais tarde irá causar sequelas. Quando o pugilista sofre muitos nocautes, fica ‘sonado’, meio abobalhado. Já vi vários assim. Aprovo o treino de boxe para a mulher, mas sem ‘fazer luvas’, sem competição.”

Mandamentos
Os treinos como amador começaram aos 16 anos. “Fui campeão do SESI, da Gazeta, Novos, Novíssimos, Brasileiro e Sul-Americano. Nessa época, só ganhava medalhas.” Um campeão dorme cedo, às 21 horas no máximo, para acordar no escuro ainda e fazer cooper. Depois, treina mais duas horas na academia. Eder corria na Chácara dos Padres, perto de sua casa, no Parque Peruche.

“Meu pai era gente de verdade. Eu era ainda um garotão quando ele me chamou: ‘Eder, venha cá’. Pensei que fosse levar uma bronca. E ele perguntou: ‘Qual é a sua religião?’. Respondi: ‘Sou católico’. Ele continuou: ‘Tudo bem. Só quero que você faça quatro coisas: não mate, não roube, não tenha inveja de ninguém e ajude as pessoas quando puder. Faça essas quatro coisas e Deus estará com você, ficará tudo bem’.”

“Kid Jofre treinou os melhores pugilistas que o Brasil teve. Se o mundo pensasse e agisse igual a ele, estaríamos num paraíso. Era corretíssimo. Não tirava um tostão de ninguém. Ajudava todo mundo, pagava direitinho. Se eu fosse receber tudo que deviam para ele, daria milhões. Ele orientava os alunos sobre saúde, nunca vi um técnico assim. A concentração de uma semana antes da luta era obrigatória, abstinência total, tudo isso aprendi com ele.”

A fama
A carreira profissional começou em 1957. Três anos depois, recebeu o cinturão de campeão mundial, em Los Angeles. A chegada a São Paulo foi triunfal. Cerca de 20 mil pessoas esperavam por ele no Aeroporto de Congonhas. Eder, de cima do carro do Corpo de Bombeiros, acenou para mais de 100 mil admiradores espalhados pelas ruas da cidade até o Parque Peruche.

“O que mais me marcou na vida foi ser o primeiro campeão mundial brasileiro de boxe. Meu pai lutou a vida inteira para fazer um vencedor e conseguiu com o filho. Centenas de lutadores passaram pelas suas mãos e nenhum chegou a ser campeão. Quando conquistei o primeiro título mundial, me senti o maioral. Só perdi duas vezes. Anos depois, saí invicto como campeão do mundo peso-pena (57,2 kg), não perdi nenhuma luta.”

Eder Jofre tem seu nome no Hall da Fama do Boxe, em Nova York, EUA. Sentiu o sabor da notoriedade, soube o que é ter dinheiro.

As lutas eram acompanhadas pelo rádio, nem todos possuíam televisão para assistir aos videoteipes. Rendiam em média 50 mil dólares, o suficiente para presentear com um Mercedes o irmão Dogalberto. Conheceu Japão, Filipinas, Estados Unidos, Colômbia, Venezuela, Uruguai, Argentina, México, França, Alemanha, Itália e Inglaterra, às vezes lutando; outras, passeando. “A Cidinha ia sempre, os filhos também. Gostávamos de parar em Los Angeles. Comprava o que eu queria, tive vários carros último tipo, morei em uma cobertura na Alameda Casa Branca e frequentava os melhores restaurantes, vivia bem.”

Sentiu na própria pele os dissabores da vida. Um dia, confiou em um amigo investidor e emprestou-lhe uma grande soma em dinheiro. Isso foi o suficiente para abalar o seu lado financeiro. “Fugiram com tudo, eu não esperava. De tudo o que eu tinha, restaram apenas um apartamento, a casa na praia e o carro.” Não chegou a pedir emprestado. “Meu pai ainda estava bem, tinha academia na Santa Ifigênia e na Barra Funda e me ajudou”, lembra.

Inesquecível
Éder parou de lutar em 1966, um ano depois de perder no Japão para Fighting Harada pela segunda vez. “Ele me deu duas cabeçadas, o que é proibido, e batia com os punhos e a cabeça junto, não dava para eu me esquivar.”

“Um fato que recordo até hoje foi a luta com o mexicano Medel, no Olimpic Auditorium, em Los Angeles. Após um hook (golpe), doía o fígado e a alma, não podia nem respirar direito. Falei para o meu pai: ‘Acho que não vai dar’. Ele disse: ‘Filho, respira fundo’. E me fez massagem. ‘Eder, a sua mãe, está ali no canto, torcendo por você, a sua mulher também, e o povo. Vai que você ganha!’. Respondi: ‘Me joga água que eu vou’. Foi o banho mais gostoso que eu já tomei na vida. Ele me enxugou o rosto, eu fui e ganhei por nocaute. Foi meu pai quem venceu aquela luta.

Rotina espartana
O Galinho de Ouro, como ficou conhecido, fazia dieta, um verdadeiro sacrifício para conseguir os exatos 53,5 kg, peso-teto da categoria. “A pressão era grande, chegava a delirar de fome e sede. Colocava um agasalho de plástico e outro de lã por cima e ia correr, dando socos no ar. Perdia até 1 kg por dia.”

Hoje, mantém a alimentação vegetariana que adotou aos 16 anos. “Raramente como peixe, às vezes uma vez por ano. Gosto de legumes, verduras, frutas, grãos, iogurte e leite em pó. Você não acredita o que eu como de doce. Em casa sempre tem sorvete. Agora, o médico me proibiu o açúcar por causa da memória, vai me deixar mais esquecido.”

O adeus
Era 1969 e, com mais de 30 anos, voltou a lutar, agora como peso-pena. O povo queria e ele precisava – deu certo. “Fui campeão mundial de novo. É uma história bonita.” Depois de ganhar mais uma vez o cinturão de ouro, continuou disputando títulos, que lhe rendiam mais dinheiro. Em toda a sua carreira profissional, foram 72 vitórias, quatro empates e duas derrotas. “Nocauteei 53 adversários e, nas duas vezes em que perdi, nunca fiquei prostrado, no chão.”

Em 1977, no auge, encerrou a carreira definitivamente. Com a morte do pai, e, dois anos depois, do irmão, subir ao ringue não era a mesma coisa. “Não tinha mais motivação. Estava cansado de lutar.”

Após pendurar as luvas, Jofre tentou alguns negócios, como a confecção Galo de Ouro, de roupa de cama, mesa e banho. “Isso me tomava muito tempo e era uma concorrência danada. Você tem o mesmo produto parecido com o dos grandes e eles te engolem.”

A política
Conhecido por ajudar as pessoas, principalmente a família, um primo o convenceu a ingressar na carreira política. Em 1986, foi eleito vereador por São Paulo, sendo sucessivamente reeleito durante 16 anos. “A política me deu muita dor de cabeça. Chegavam abaixo-assinados de montão pedindo saneamento básico – como asfalto e esgoto -, a maioria consegui. Muitos queriam emprego, bens materiais, como casa e apartamento, e eu não podia satisfazer todo mundo, até me desculpava.”

Depois de quatro mandatos, Jofre perdeu a eleição. “Os quatro lugares para os aposentados no ônibus foram projeto meu. E a passagem gratuita também.”

Com a vida feita
Atualmente, Eder Jofre vive de renda. Tem dinheiro aplicado e casas de aluguel. Mora em um apartamento de três quartos no Jardim Paulista e seu Audi A4 sai da garagem quando vai ao médico ou fazer compras maiores no supermercado. “Este prédio é bom, criamos os filhos aqui, tem o Parque Trianon a poucos metros. As crianças brincavam muito lá. Ultimamente não vou mais.”

O hall de entrada é revestido em mármore e os móveis, de mogno. Ele conhece poucas pessoas, mas cumprimenta todo mundo. “Esse condômino dá muito trabalho, mas a gente tem medo de falar alguma coisa porque de repente…” (risos), comenta a síndica, Marion, de uns 70 anos, com forte sotaque francês. “Ele não dá trabalho, não, é boa pessoa. Só quando a televisão não pega. Ainda ouço o nome dele nas notícias da Jovem Pan. É um bom vizinho.”

Eder Jofre adora televisão. Nas horas vagas, assiste a filmes dos mais variados temas e programas esportivos. “Não gosto de internet, mas reconheço que é um grande avanço da tecnologia.”

Nos fins de semana, sai a pé com a mulher, para almoçar nos restaurantes do bairro. “Na rua, um ou outro me reconhece, bem menos que antes, mas ainda me param. Antigamente, era bem mais assediado. Sinto falta da emoção, de ouvir – Oi, campeão! Meu… é gostoso… vai te envaidecendo. Noventa por cento das pessoas me tratavam assim. Não era para eu ser convencido?”

Jofre nunca gostou muito da vida social, da falta de privacidade. “Eu queria mesmo era a vida do boxe. Fugi muitas vezes de jornalistas pelos fundos dos restaurantes. Até hoje me convidam para casamentos e festas de formatura, vou quando posso.”

O primeiro brasileiro a ser campeão do mundo, era reconhecido, também, no exterior. “Me paravam na rua, queriam conversar, admiravam-se com o meu tamanho, pensavam que eu fosse mais forte e grandão.”

Conserva poucos amigos. “Enquanto eu era o bom, estavam sempre por perto, depois que parei, muitos sumiram. De vez em quando, encontro um ou outro. Visito parentes, como o meu primo Silvano, também ex-boxeador, filho do Walter Zumbano.”

Eder se diz realizado. “Não posso reclamar da vida. Tenho tudo que preciso. Nunca soube de alguém que me chamou de antipático, mascarado. Guardo algumas placas, distintivos, os dois cinturões banhados a ouro e troféus, a maioria deles está no São Paulo Futebol Clube.”

E nem acha tão ruim envelhecer. “Poxa, fisicamente, maravilha, faço tudo que eu quero. Se tiver de correr, posso sair correndo agora, na rua. Num campo de futebol, eu jogo. Num ringue, posso lutar. Há um ano, na academia, um cara com mais de 1,80 m me convidou pra lutar. Dei várias pancadas. Ele desistiu e nunca mais apareceu.”

Subiria em um ringue por uma boa causa, uma exibição. “Numa luta normal de amador são três rounds de três minutos e um de descanso ou como for combinado. Mais que isso, não dá. O boxe é o esporte que mais cansa. Imagine ficar três minutos dando soco em um cara e se mexendo. Ensinar, nunca mais, é cansativo convencer os caras que não têm muito jeito e insistem em lutar.”

“Não tenho nenhuma decepção com o boxe, só alegria. O que sou hoje em dia, conhecido pelo mundo, devo ao boxe. Antes de tudo ao meu pai e à minha mãe que me puseram no mundo. Se pudesse voltar no tempo, moraria de novo no Parque Peruche, não queria ser mais nem menos. Você não imagina a minha infância como foi linda, linda, linda. Jogava bola de gude, ia nadar na biquinha, subia em árvore, caçava passarinho com arapuca e estilingue que eu mesmo fazia, descalço, nem existia tênis. Meu pai foi meu professor, o que eu sei, aprendi com ele.”

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