Olfato afetivo

Tenho certa dificuldade em apurar com precisão, no vasto mundo das lembranças da infância, quando foi que começou minha curiosidade por cheiros. Nossa, quantos cheiros! Cada combinação que dona Nobuko executava na cozinha era uma explosão de cheiros, mas o mais marcante é a minha relação com o perfume super delicado do arroz. Vou citar algumas variedades como Koshihikari, Akita komachi, Nishiki, etc. Cada grão com seu design. A textura e o sabor dependem de como você irá conduzi-lo. Dona Nobuko conduzia com leveza. O arroz e ela eram como o músico e seu instrumento ou o cozinheiro e sua faca! Mas sinto agora a sensação de estar engatinhando pela cozinha, explorando cada canto para chegar a algum lugar sem nunca chegar a lugar algum, mas sempre engatinhando em direção à minha própria vida. Meu! Quero dividir esse momento mágico de escrever pela primeira vez uma coluna. Será uma regressão? Ou uma ereção? Que tesão!

Voltando ao texto… Ela acordava bem cedo, dona de casa. Fazia de tudo, principalmente amava o ato de cozinhar como o ato de fazer amor. Teve quatro filhos, todos gulosos por simplicidade na mesa. Isso quer dizer a natureza na mesa como ela é. Com seu avental branco com detalhe vermelho como a bandeira do Japão, ela prendia o cabelo lentamente para começar o ritual dos cheiros. Vem-me à mente A Festa de Babette na versão japonesa.

Era um mistério para essa criança o processo do preparo do arroz até chegar à mesa. O menino observava atentamente a velocidade dos dedos para separar os grãos que vão e que ficam. Cinematográfico o esperado momento do banho ou do processo de lavagem do arroz. Os grãos entre os dedos, roçando entre eles e a água do filtro batizando o arroz com o seu primeiro contato com o líquido emocional… Esse momento era sensual! Continua roçando até a água ficar leitosa. Ela repetia esse processo mais duas vezes. Na última, a água já estava cristalina, pronta para o próximo passo: conhecer as várias fases do fogo que, em contato com o ferro do Donabe (panela clássica para o arroz), inicia o jogo entre o fogo alto e o baixo, para a transformação e libertação do nosso arroz de cada dia. Nessa etapa, o perfume deixa a criança em transe… Que cheiro excitante! Um cheiro meio malicioso, que delícia! Vamos com calma, estamos no balcão do Kinoshita…

O que faz o arroz respirar durante o cozimento é a tampa de madeira, diferentemente do que acontece nas máquinas a gás ou elétricas, que sufocam e matam a poesia do Gohan (arroz em japonês). Sentir que cada grão está simplesmente um encostado no outro e, ainda, que cada um tem sua própria história e seu brilho natural. Imagina um Onigiri (tradicional bolinho de arroz) nas mãos. É demais! Feliz das culturas que têm o hábito de tocar antes de degustar. Tocar e degustar, isso é muito erótico, vocês não acham?

Queridos e grandes leitores desta humilde coluna, vai ser um imenso prazer apresentar pessoalmente o cheiro do Gohan!

Agora, entre nós, tenho de confessar que abriu mais um novo caminho na minha vida: “Sempre escrever”. Alguns poucos, mas grandes amigos, já me falavam isso… Acessar essa criança dentro de mim foi terapêutico. Revigorante. Agradeço à dona Nobuko por me permitir engatinhar até agora. Sinto internamente que estou começando a dar meus primeiros passos. Queridos e queridas, espero vocês no meu balcão! Arigato gozaimashita!


*Kappo Cuisine é o conceito que Tsuyoshi Murakami trouxe ao Brasil e tem como base a transparência, o cozinhar em frente ao cliente e o uso de alimentos sazonais. Murakami é sócio e chef do restaurante Kinoshita.
murakami@restaurantekinoshita.com.br


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