Quando, em março de 1990, o então presidente Fernando Collor deu um fim à Embrafilme, um ambiente sinistro pairava não só sobre nosso cinema, mas por toda a indústria cultural. Somente em dezembro do ano seguinte, com a sanção do presidente Itamar Franco para a Lei Rouanet, novos horizontes começaram a ser vislumbrados. Para a cinematografia brasileira, a ressurreição chegaria em 1995, graças à popularidade de Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, estreia na direção da atriz Carla Camurati. Alvo de polêmicas, pela maneira jocosa como retratou os dias da família real portuguesa no País, o filme acabou sendo o marco zero de uma reconciliação entre cinema e público. Dezessete anos mais tarde, nossa indústria vive outra realidade. Títulos recentes, como Tropa de Elite II, sustentam a marca de milhões de espectadores que tantos outros já experimentaram, e grandes diretores dessa geração foram parar em Hollywood, como Fernando Meirelles, Walter Salles e o próprio José Padilha, de Tropa, que acaba de ser convidado para assinar um remake de (pasmem!) RoboCop. Em 2009, partindo do êxito de Carlota Joaquina, quase 15 anos de produções brasileiras foram objeto de análise do cineasta francês Karim Akadiri Soumaïla. Pesquisa essa que resultou em A Retomada, documentário produzido para o Cinéma Séries (canal de tevê a cabo, mantido pela Orange, uma das gigantes da telefonia móvel francesa). Nos dias 16 e 17 de abril, respectivamente, às 19 horas e às 15h25, o filme será exibido na grade do Canal Brasil. Até mesmo por ser o único documentário dedicado ao tema, A Retomada merece ser visto.
Paixão e garra
Aos 44 anos, Karim tem larga experiência na produção de documentários e filmes de ficção. Com doses equivalentes de amor ao cinema e dedicação, construiu uma respeitável carreira. Poucos minutos de conversa são suficientes para chegarmos à conclusão de que se trata de alguém com grande foco e determinação. Parisiense, tinha apenas três anos quando o pai, um diplomata nigeriano, abandonou a família. A mãe, nascida na Martinica, passou maus bocados para criar Karim e os outros três irmãos, e o deixou sob a tutela de outra família que o formou até os 13 anos, quando voltou a conviver com a mãe. Três anos mais tarde, insatisfeito com o ambiente hostil do colégio no qual estudava, foi pessoalmente para outra escola, situada em um bairro próximo, e pediu para que fosse matriculado, pois teria melhores oportunidades de aprendizado. Perante o bom rendimento, atestado no boletim de notas que fez questão de levar, e a honrável iniciativa, a diretora atendeu ao pedido do adolescente. Na nova escola, ele conheceu Simon Guibert, cuja mãe, Aliette, era diretora de cinema. Tornaram-se grandes amigos, e Karim começou a frequentar os sets de filmagem de Aliette. Fascinado com o que via, passou a fazer bicos de assistente e figurante. Quando enfim reencontrou o pai, abastado e sentindo-se em dívida com o filho, Karim não hesitou: “Pois bem, se você quer mesmo, e pode me ajudar, pretendo fazer um curso de cinema na Escola Superior de Estudos Cinematográficos (ESEC)”. Curso pago, integralmente, Karim tomaria de vez as rédeas de seu destino.
Entre os mais de 20 títulos dirigidos por ele (todos inéditos no Brasil), estão documentários sobre músicos latino-americanos em Nova York (Latin Jazz in New York, 1991); uma imersão na cultura cubana (Carnet de Borde à Cuba, 1995), e Brian de Palma, L’Incorruptible (2002), que compila mais de cinco horas de entrevista com o cineasta ítalo-americano (uma fera, segundo ele). Dois longas de ficção, com roteiro original também assinado por Karim, discutem questões como a marginalização social dos jovens negros franceses (Negro, 2000) e os conflitos geracionais entre membros de uma mesma família, “separados” pela miscigenação (Ville Belle France, 2005). Sua chegada ao Brasil foi motivada pela cobertura da primeira de três edições do São Paulo Fashion Week, que veio documentar para a tevê francesa. No primeiro deles, em 2009, conheceu a estilista brasileira Monica Florêncio Fernandes – que na época trabalhava para Reinaldo Lourenço, e hoje para o filho Pedro – e os dois se apaixonaram. Vive há três anos em São Paulo e de sua união com Monica nasceu a pequena Lys, uma linda mestiça de um ano e três meses, e olhos verdes como esmeraldas.
Cinema Novo e Novo Cinema
Para as pesquisas de A Retomada, Karim mergulhou de cabeça em dois períodos muito distintos de nossa cinematografia, estabelecendo um comparativo de caráter estético e técnico entre a geração do Cinema Novo e a dos novos realizadores que surgiram depois do êxito de Carlota Joaquina. Assistiu a dezenas de filmes recentes e revela, sem hesitar, que seu preferido é justamente o filme de Carla. Dos filmes dos anos 1960, São Paulo S.A., de Luís Sérgio Person (embora não seja filiado ao Cinema Novo) está no topo de sua lista. Diz não gostar da banalização temática de filmes que vieram na esteira do sucesso de Cidade de Deus, os famigerados favela movies, e se diverte ao lembrar de que logo após a entrevista com Hector Babenco – encerrada justamente com esse tema -, o diretor, exaltado, afirmou a ele que os grandes culpados por essa estética de ultraviolência eram justamente os europeus e seu fetiche pela miséria alheia.
O documentário evidencia que houve mesmo essa obsessão por filmes violentos, mas destaca diretores como Heitor Dhalia, de O Cheiro do Ralo, como um saudável contraponto a essa polêmica. Além de Babenco e Dhalia, Karim ouviu muitos atores, outros grandes diretores, e profissionais fundamentais para a revolução técnica dessa nova safra, como os diretores de fotografia Walter Carvalho, de Central do Brasil, e César Charlone, de Cidade de Deus. Se não é um documentário definitivo sobre a ressurreição de nosso cinema, A Retomada tem méritos de sobra para ser – não só para o público estrangeiro, para quem foi produzido, mas também para nós brasileiros – um dos filmes que, futuramente, será referência para compreender o período.
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