Olhares deslocados para o mundo

"Portage", do artista sul-africano William Kentridge
“Portage”, do artista sul-africano William Kentridge

Foi no final de 2001, quando viajou para participar de uma residência artística em Joanesburgo, na África do Sul, que a artista e escritora brasileira Marie Ange Bordas deu início ao projeto Deslocamentos. A partir dali, foram dez anos de uma vida nômade, durante os quais investigou, por meio da própria experiência, conceitos de identidade, enraizamento, deslocamento e mobilidade. Marie teve “casas temporárias” na França, Quênia, Sri Lanka, Inglaterra e outros países. Neles, conviveu sempre em meio a populações de refugiados ou desabrigados – pessoas que deixaram suas casas por causa de guerras ou pobreza. Nos locais, desenvolveu práticas artísticas (oficinas e workshops), aprofundou pesquisas teóricas e fez da ideia de “estar no mundo em movimento” a chave do projeto.

O Caderno Sesc_Videobrasil 09, que sai agora com o título Geografias em Movimento, é de certo modo a conclusão de Deslocamentos, como explica a própria Marie. Com o convite recebido para editar a publicação – vinculada às atividades do 18Festival SESC Videobrasil, com curadoria de Solange Farkas, que acontece em São Paulo até o dia 2 de fevereiro –, a artista viu a oportunidade de encerrar um ciclo e “dar corpo aos testemunhos” de uma década de vivências. Desse modo, a escolha dos colaboradores da luxuosa publicação esteve mais relacionada à experiência subjetiva de Marie do que a uma linha teórica.

O caderno, um híbrido de livro de artista e publicação de ensaios, conta com a colaboração de nomes que, de algum modo, foram importantes para as reflexões durante o projeto: os artistas William Kentridge (África do Sul), Maria Magdalena Campos-Pons (Cuba) e o suíço-camaronês Simon Njami, além do filósofo camaronês Achille Mbembe, da urbanista paulistana Ana Paula do Val e do geógrafo gaúcho Rogério Haesbaert.

O resultado mostra que as escolhas subjetivas e particulares da artista produziram um rico material de interesse mais amplo, público, ao lançar debates e reflexões fundamentais para o mundo de hoje. Além de investigar a capacidade humana de redesenhar mapas próprios, o livro marca uma posição política ao questionar o etnocentrismo e privilegiar o que é chamado perspectiva do “sul” geopolítico. Sul, este, que não se refere à divisão entre hemisférios, mas a uma balança de poder do globo, dividido entre países centrais e periféricos.

Composição de nove fotos feita pela artista cubana Maria Magdalena Campos-Pons
Composição de fotos feita pela cubana Maria Magdalena Campos-Pons

O uso dessas categorias, no entanto, não diz respeito apenas a aspectos econômicos, como afirmou Danilo Miranda, diretor do SESC, na abertura do festival: “O pensamento do Sul é também aquele que procura refletir sobre a satisfação do ser humano, sobre o prazer, a felicidade. O Norte tende a discutir a eficácia, o resultado, o ganhar dinheiro e poder, o que tem sua importância, mas que é relativizada por qualquer pessoa que pense de maneira mais ampla sobre o ser humano”.

Com ensaios permeados por fotos, desenhos e mapas não convencionais – e acompanhado de um flipbook concebido por Kentridge –, o caderno adota esse ponto de vista “periférico” para falar de outros modos possíveis de ver e viver o mundo. Ana Paula do Val, por exemplo, critica a cartografia usada como arma de dominação e propõe mapas pessoais, enquanto Haesbaert diz que é preciso “transterritorializar” o mundo. Mbembe, por sua vez, questiona a visão eurocêntrica e o etnocentrismo, como explica Marie: “Como ele diz, o pensamento europeu abordou a questão da identidade não tanto em termos de pertencimento mútuo, mas da ideia de alteridade. Ou seja, a partir não da semelhança, mas da diferença. (…) A ideia de raça é uma construção impositiva que até os pós-coloniais mantiveram, e Mbembe quer quebrar”.

Caderno Sesc_Videobrasil 09 – Geografias em Movimento 
Marie Ange Bordas (organização), Edições SESC e Associação Cultural Videobrasil, 142 páginas


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