Os longos cílios que circundam os olhos de Marina Person fazem pensar em raios solares, especialmente quando a apresentadora, diretora e agora atriz sorri. Mas eles também podem assumir um ar insondável, lunar, como em Canção da Volta, primeiro filme protagonizado por Marina, dirigido pelo seu sócio e marido, Gustavo Rosa de Moura. Na famosa definição de Machado, os olhos de Capitu “traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia”. Assim também é Julia, a personagem de Marina. Após uma tentativa de suicídio, ela traga para seu mar profundo o marido, cada vez mais obcecado em descobrir os motivos da depressão que se apossou da mãe de seus filhos. Interpretado por João Miguel, de Cinema, Aspirinas e Urubus, Eduardo é um Bentinho moderno, que conta com celulares e e-mails para alimentar seu ciúme.
Uma produção da Mira Filmes, empresa fundada em 2011 por Marina, Gustavo e Carmem Maia, Canção da Volta é um filme fragmentado, de atmosfera densa. A menção a Dom Casmurro não é à toa: o romance, um dos favoritos de Marina, foi citado pelo diretor e também roteirista como inspiração indireta. O casal já prepara um novo longa, intitulado Nós, Duas, em que Marina vai exercitar de novo seus dotes dramáticos, que devem ter surpreendido positivamente quem só a conhecia como a VJ da MTV ou a apresentadora do Metrópolis, da TV Cultura, do Papel da Vida, no Canal Brasil, ou do Marinando, no YouTube, em que ela cozinha receitas especiais.
Mas a sétima arte sempre foi seu meio natural. Marina estudou Cinema na USP (Universidade de São Paulo) e trabalhou em quase todas as funções nos sets de filmagem, em filmes de Carlos Reichenbach, André Klotzel e outros. Person, de 2007, foi sua estreia como diretora de um longa. É um documentário afetivo sobre o pai, Luiz Sergio Person (1936-76), diretor das obras-primas São Paulo S/A e O Caso dos Irmãos Naves. Já Califórnia, do ano passado, representou um salto na ficção, também com algo de autobiográfico.
Com a ressaca guardada no calor dos olhos, Marina recebeu a CULTURA!Brasileiros em seu apartamento, que serviu de locação para Canção da Volta.
Você lembra como foi seu primeiro contato com o cinema?
Lembro muito bem dos meus pais me levando pra ver o Mágico de Oz. Foi o primeiro filme que me marcou, porque começava em preto e branco e virava colorido. A gente também tinha um projetor Super 8 em que eu via vários filminhos, que eu tenho até hoje. Tinha vários pedacinhos de Cinderela, do Gordo e o Magro e de Carlitos. Meu pai também tinha um projetor 16 mm, em que o som ia junto. Às vezes ele conseguia cópias emprestadas de filmes e aí estendia um lençol na garagem lá na praia, em Ubatuba.
Eram filmes pra criança?
Não necessariamente. A gente via tudo. Tinha um filme que a gente amava, eu e minha irmã, que era A Moreninha, uma produção do meu pai, com direção do Glauco Mirko Laurelli. É o primeiro longa da Sonia Braga. E era louco porque a gente tinha os figurinos que ela usava, e depois a gente ficava brincando de fantasia. Os catatauzinhos desse tamanho com um vestido enorme e um decote que vinha parar aqui (aponta para a barriga). Eu tinha uns seis anos e minha irmã, três. E tinha também os figurinos das peças que meu pai montava no Auditório Augusta, que ele fundou em 1972. Ficavam num baú – e eu lembro até hoje do cheiro daquele baú, que era um mofo com suor, porque eram figurinos usados. Até hoje eu entro em um camarim de teatro e lembro da minha infância.
Sua primeira experiência como atriz foi justamente no palco, né?
Sim, eu fiz Os Saltimbancos. Eu era uma das crianças do coro. Eu cantava tudo, sabia todas as coreografias, era super CDF. Eu lembro direitinho dos ensaios. Aí fiz 11 anos. Foi a maior tristeza da minha vida. Lembro deles comentando “ela tá grande já, né?”, essas coisas que as pessoas falam sem achar que as crianças estão ouvindo. Mas eu sabia que ia ter que sair da peça.
E os filmes do seu pai? Você lembra do primeiro que viu?
Quando a gente era criança, ele mostrava pra gente o Panca de Valente. Era engraçado porque era um filme que ele não gostava muito. Eu lembro de um dia ele falar pra mim “Filhinha, hoje você vai ver a obra-prima do papai”, tirando sarro. E eu não entendia nada, nem de ironia nem de obra-prima. Eu achava que tinha a ver com a minha prima (risos). Depois fui assistir ao São Paulo S/A e não entendi também. Achava a história louca. Era uma estrutura muito enigmática pra mim naquela época. Só quando eu entrei na faculdade de cinema que eu entendi o que eram os filmes dele, o que aquilo queria dizer, qual a importância dele na história do cinema brasileiro.
O que você costumava assistir antes da faculdade?
Sempre vi tudo, cinema polonês, Fellini, o que estivesse passando. E era fanática pelo cinema americano, especialmente pelos filmes adolescentes dos anos 1980, Curtindo a Vida Adoidado, O Clube dos Cinco, O Selvagem da Motocicleta. Acho que vi Vidas sem Rumo umas 20 vezes. Assistia quase todos os finais de semana com minhas amigas que também amavam o Matt Dillon (risos).
E como foi o período na faculdade? Deve ter sido curioso ser filha de um cineasta que era ensinado em aula.
Sim, sempre vinha a pergunta “você é parente do Person?” Dava aquela vergonha de falar. Mas foi ali que aprendi a olhar o São Paulo S/A e O Caso dos Irmãos Naves, que são os principais filmes do meu pai. E também filmes do Ozu, Truffaut, Hitchcock. Outro dia fui assistir a um longa do Julio Bressane e estava lá o Ismail Xavier. E eu falei “Pô, Ismail, eu aprendi a ver Bressane com você”. Os professores eram excelentes! Tinha o Ismail, o Jean Claude Bernardet, a Maria Rita Galvão… Eles ensinavam coisas que estavam fora da gramática básica do cinema. O Ano Passado em Marienbad, do Resnais, por exemplo, que era o paradigma da incompreensão absoluta e até motivo de piada, mas que crescia com o tempo. Outro foi o Limite, do Mário Peixoto, que eu assisti e não entendi porra nenhuma. Mas quando procurei me aprofundar em suas camadas vi o quanto ele é fascinante, um filme que pode ser visto de um ponto de vista sensorial.
O que mais ficou da faculdade que você usa até hoje?
Acho que a experiência no set, que eu amava. Gostei de cara de filmar, me sentia superbem em acordar às cinco da manhã. O trabalho de equipe, ver aquele negócio que estava no papel virar imagem, pensar soluções e tudo. Eu gostava de tudo. E logo trabalhei em filmes profissionais. Fui assistente de direção no Alma Corsária, do Carlão Reichenbach – também fiz a produção da dublagem. Fiz o Capitalismo Selvagem, do André Klotzel, como assistente de fotografia, e O Efeito Ilha, com o Luiz Alberto Pereira, como assistente de direção. Fiz o som do Hora Mágica, do Guilherme de Almeida Prado. Estudante fazia tudo, qualquer coisa. Só produção que eu não fazia porque eu não tinha talento e eu achava que era muito gincana pra mim. A produção te tira muito do set e eu gostava de ficar perto. A fotografia, a direção e o som faziam com que eu ficasse ali onde a coisa estava rolando.
A entrada na MTV adiou sua carreira de cineasta?
Quando entrei lá, pensei “vou ficar aqui uns dois anos, até eu juntar dinheiro pra comprar um carro”, e acabei ficando 18. Tinha acabado de sair da faculdade, era a época do Plano Collor. Com o fim da Embrafilme, todas as produções que eu ia fazer foram canceladas. Já estava morando sozinha e fiquei desempregada do dia para a noite. Por acaso, encontrei a Chris Couto numa festa. A gente tinha se conhecido no Alma Corsária e ela me disse que tinha uma vaga de assistente de produção no Cine MTV, que ela apresentava. Então fui fazer uma entrevista com o Zeca Camargo, que na época era o chefe do jornalismo. Encontrei um colega de faculdade na porta, o Vitor Angelo, que disse: “Marina, aqui é muito fácil aprender as coisas, tá? Se eles perguntarem se você sabe editar, por exemplo, pode mentir e falar que você sabe, que em dois minutos você pega” (risos). Entrei no elevador e só conseguia pensar que eu ia ter que mentir na entrevista, mas, por sorte, não precisei e o Zeca me contratou. Pela primeira vez na vida eu tive carteira assinada e salário entrando todo mês.
E aí você virou outra pessoa.
Totalmente, Doctor Jeckyll e Mister Hyde! Mas não mudei o caráter. Antes eu era meio largada e não ligava para a aparência. Foi só quando eu comecei a apresentar os programas, depois de dois anos e meio na produção, que eu comecei a me ligar na minha imagem.
O que te marcou nesses anos todos na MTV?
Acho que principalmente os programas Meninas Veneno (vencedor do prêmio APCA em 2002) e o Top Top. E a entrevista com a Madonna. Foi quando as pessoas começaram a olhar pra mim de outro jeito. Era a segunda vez que a Madonna estava falando com o Brasil e era uma entrevista longa, sobre música mesmo, ela estava lançando Music.
A MTV até hoje é vista como uma exceção na TV brasileira. Tinha uma liberdade criativa que marcou muita gente.
A gente era muito despirocado lá (risos). Mas tudo dava certo. O legal é que era uma TV feita para jovens por jovens que falavam a mesma língua. A identificação foi imediata. Quem assistia à programação via que não era uma coisa feita de cima pra baixo, mas de igual pra igual. Foi uma bomba atômica, um choque. A MTV era um puta de um farol para pessoas que não tinham acesso àquele universo pop. Até hoje ouço dizerem coisas do tipo “eu ouvi David Bowie porque você falou que era legal.” Com a internet toda informação ficou à disposição, mas está tudo pulverizado. A MTV fazia uma espécie de curadoria.
E sua experiência na Cultura?
A TV Cultura foi um mundo adulto, um choque de realidade. Tudo era muito diferente, muito grande, muito burocratizado. Foi quando eu comecei a falar sobre outras coisas, não só de música e cinema. A época do Metrópolis, sobretudo, foi super legal. Eu entrevistava pessoas que eu jamais teria entrevistado na MTV, como escritores, por exemplo. Comecei a ir mais ao teatro também, que era uma coisa que tinha bem pouco na MTV.
Falando nisso, você pensa em voltar ao teatro?
Penso, mas não teatrão. Gostaria de entrar num processo criativo do tipo da Companhia Hiato, do Leonardo Moreira. Em 2012 eu fiz o CPTzinho com o Antunes Filho que também tinha esse processo investigativo, de criação, e você tinha que entregar uma cena por semana. Foi uma das coisas mais difíceis que já fiz na minha vida.
Você disse que ele era bravo, que ele gritava.
Na verdade, acho que ele treina o ator para que crie uma casca dura mesmo. É muito difícil a profissão. O ator tem de lidar com muita rejeição em teste, plateia vazia, grana incerta. Isso coloca a autoestima totalmente em xeque. Mas eu sempre gostei muito da atuação, só que não consigo me imaginar dirigindo e atuando num filme ao mesmo tempo. Ou numa peça. Pra mim não é natural ser atriz, é muito trabalhoso. Eu tenho que realmente me preparar, estudar, ensaiar. O João Miguel, por exemplo, que tem uma puta bagagem, conseguia atingir estados em três ensaios que eu talvez demorasse um mês pra atingir. Ele é um ator muito técnico, mas que também tem fogo. No Canção da Volta, naquela cena de briga no corredor, o cara do som falou “dá para ouvir o coração do João no microfone”. E você vê na cara dele, parece que ele vai explodir. Quantos takes será que ele aguenta fazer nesse grau? O Win Wenders falou numa palestra que não existem dois atores iguais. Tem ator que precisa ensaiar um milhão de vezes e ator que dá o melhor de si no primeiro take. Aí tem que rezar pros dois não estarem no mesmo filme! (risos)
E como foi sua preparação para o papel da Júlia?
O Gustavo não queria o preparador de elenco clássico. Aí o Victor Mendes veio com a ideia de trabalhar comigo coisas que ele tinha aprendido na EAD (Escola de Arte Dramática). Foi uma experiência nova tanto pra mim quanto pra ele. Deu supercerto. A gente fazia desde massagem até olhar uma sequência de fotografias e criar uma coreografia.
É um papel que já seria difícil pra uma atriz experiente… Você não ficou com medo?
Nossa, até agora!
As cenas de nudez e sexo foram uma dificuldade à parte?
No começo deu um pouco de vergonha. A equipe era a mesma do Califórnia. Às vezes é melhor filmar com pessoas que você nunca viu na vida, pois aí você diz “foda-se” e pronto. Mas depois foi até libertador. Tipo pular de paraquedas “opa, consegui!” (risos).
Como você se sente quando se vê?
Sou muito crítica, lógico. Tem cena que eu gostaria de fazer de novo. Uma cena que eu não gostava saiu do filme, por sorte. Mas aquela que eu achava que era minha melhor cena também saiu do filme. Isso você lamenta.
Mas, sendo sócia e mulher do diretor, você não teve influência na montagem final?
Nada, nem participei da montagem. Quer dizer, dava minhas opiniões, mas eu perdi completamente a noção no meio. Já não conseguia mais ter imparcialidade, não conseguia ter um olhar limpo. Eu misturava os sentimentos da atriz com o que eu conhecia do roteiro, do processo.
E como funciona a parceria?
Eu e o Gustavo colaboramos em todos os projetos da Mira. Como moramos juntos, trocamos ideias e opiniões em horários loucos, tipo na hora de dormir ou quando um tá tomando banho. Isso é legal, porque nem sempre a inspiração chega na hora em que você tá na frente do computador.
Além do João Miguel, quais são os atores que você admira?
Gosto do Lázaro Ramos e do Wagner Moura. Uma vez entrevistei o Wagner e ele me disse “olha, o ator sabe que não pode pirar e achar que é o personagem. Mesmo assim, se você está numa cena de briga, com muita raiva e tem que, de repente, entrar numa coisa física com outra pessoa, o diretor diz ‘corta’, e você vai tomar um café, sua mão tá tremendo, porque você passou aquela informação pro seu corpo. Tem que respeitar isso também.” O Kevin Spacey tem uma solução boa pra isso. Ele diz: “Todo dia, antes de chegar em casa, eu dou uma volta com o meu personagem no quarteirão, me despeço dele e falo até amanhã” (risos).
E você, conseguia se despedir da Júlia?
Às vezes eu ficava atingida. Emagreci naturalmente durante o filme, porque tinha essa coisa da depressão, do suicídio. Mas em nenhum momento eu virei aquilo. Não fiquei deprimida. Ao contrário, eu estava superfeliz de fazer o filme. Eu ficava animada de ir pro set e conseguir fazer aquilo. Era tudo muito novo pra mim.
O Canção da Volta tem um pouco do esquema independente do John
Cassevetes: é um drama intimista, em que diretor e atriz são casados, os atores são amigos ou pessoas próximas, assim como o pessoal da equipe, e a própria casa serve de locação. No Califórnia é um pouco assim também. Dados os ótimos resultados, parece uma boa alternativa, ainda mais num momento em que a cultura talvez esteja em xeque.
Acho gostoso fazer assim, filmar com um grupo pequeno de amigos em casa. Me sinto confortável. Não sei se eu me sentiria bem em fazer um filme de R$ 10 milhões, com muita coisa. Eu me sinto bem na restrição, na coisa mais simples. Talvez depois de dirigir três, quatro filmes eu queira fazer um filme com um pouco mais de equipamento. Mas pra mim o maior luxo é o tempo, que você não tem quando faz coisas muito baratas, e aí não consegue, por exemplo, refazer uma cena que poderia ter ficado melhor. A gente fez os dois filmes com muito pouco dinheiro. Se eu tivesse um pouco mais, usaria pra filmar alguma coisa que ficou faltando.
No caso do Califórnia, aconteceu isso?
Aconteceu super.
Mas você ficou feliz com o resultado.
Super, mas durante uma época fiquei me torturando “ai, eu queria tanto ter feito aquela cena…”. Depois passou.
Tanto você quanto o Gustavo têm experiência prévia com documentários. É muito diferente fazer ficção?
Totalmente. E eu sempre me vi muito mais próxima da ficção. Person aconteceu na minha vida por necessidade, eu precisava entender quem era meu pai, aquele cara de quem as pessoas falavam tanto e com quem eu convivi muito pouco.
Outro aspecto que chama a atenção no Califórnia e no Canção da Volta é o uso da música, que é uma coisa muito importante na sua vida.
Sempre foi. Tanto que pedi pra apresentar música também na MTV, não apenas cinema. Adorava o David Bowie, The Cure, pós-punk. São bandas que tão dentro do California, e não só como trilha, não só um negócio que ajuda você a encontrar a emoção do personagem. Ali a música é estrutural, inclusive ajuda a levar o filme pros anos 80. Com o pouco dinheiro que a gente tinha, não dava pra fechar a rua, fazer altos cenários e tal. E no Canção da Volta, uma das coisas que me ajudavam a chegar em certos estados era a música. Tinha lá minhas favoritas, tipo o Antony, que era o meu cantor da depressão.
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