O boi chegou ao Brasil por volta de 1534, trazido por senhores de engenho interessados em sua força motriz e capacidade de carga. Veio das ilhas de Cabo Verde, colônia portuguesa na costa da África Ocidental. Do gado se aproveitavam a carne e o couro, mas seu principal valor era servir como tração animal para os engenhos de cana-de-açúcar, a primeira monocultura brasileira de exportação. De lá para cá, as mudanças foram tamanhas que a pecuária se tornou um dos mais rentáveis setores da economia nacional. A carne bovina, junto com a suína e a do frango, é o terceiro produto de exportação do Brasil, atrás apenas do minério de ferro e da soja. E conseguiu entrar para valer no mercado americano. Ao final de quase duas décadas de negociação, o Brasil obteve em 2016 sinal verde para vender carne bovina in natura para os Estados Unidos, com quem compete no mercado internacional.
Especializado no setor, o site GlobalMeatNews, com sede na Inglaterra, alertava desde o ano passado que “o Brasil continua a desafiar os Estados Unidos pela posição de maior produtor e exportador de carne na próxima década”. Da noite para o dia, o cenário mudou. Entrou em cartaz uma intervenção que poderia ser batizada como Operação Desmonte. Depois da degringolada dos setores do petróleo e da construção civil, chegou a vez da carne, atingida por uma investida predatória da Polícia Federal. A Operação Carne Fraca colocou 1.100 policiais federais para cumprir 309 mandados judiciais ao amanhecer da sexta-feira 17 de março. Oficialmente, tinha como objetivo desarticular um esquema de corrupção envolvendo fiscais agropecuários vinculados ao Ministério da Agricultura e frigoríficos dos estado do Paraná, Minas Gerais e Goiás. Eram 21 frigoríficos investigados, no total de 4.837 existentes no Brasil.
Anunciada com estardalhaço, a operação repercutiu de imediato – no Brasil e no resto do mundo. A reverberação aumentou com a entrevista coletiva concedida em Curitiba pelo delegado federal Maurício Moscardi Grillo, coordenador da Carne Fraca. Sem esclarecer que a investigação dizia respeito a um reduzido número de frigoríficos, o delegado colocou sob forte suspeita todo o setor. No campo da política, contou que parte do dinheiro arrecadado pelo esquema de corrupção abastecia o PMDB e o PP. No âmbito da produção, o delegado traçou um quadro assustador. Disse que os grandes frigoríficos não se preocupavam com a saúde pública, que papelão era incluído na fabricação de embutidos e que, para mascarar produtos deteriorados, algumas empresas usavam produtos, como ácido ascórbico, muito acima do permitido por lei: “Alguns são cancerígenos”.
Nos dias seguintes, houve uma queda brutal das exportações do setor. A média diária de exportação de cortes bovinos, suínos e de aves despencou de US$ 63 milhões para assustadores US$ 74 mil. O ministro da Agricultura, Blairo Maggi, chegou a estimar um prejuízo total de R$ 1,5 bilhão. A previsão não se confirmou, graças inclusive à fragilidade das investigações, mas ninguém se arrisca a calcular as consequências da ação em toda a cadeia produtiva. Quanto ao impacto da carne na saúde humana, as afirmações do delegado Moscardi Grillo se revelaram absurdas, a começar pelo uso do “cancerígeno” ácido ascórbico. Trata-se, na verdade, da popular vitamina C, que só provocaria males, como distúrbios intestinais, se fosse ingerida em quantidades estratosféricas.
Outra ilação descabida do delegado está relacionada ao uso de papelão, citado em um telefonema grampeado entre empregados de um dos frigoríficos investigados. A transcrição da conversa, anexada ao inquérito, mostra que não se tratava de “engordar” frangos e embutidos com papelão e sim de trocar a embalagem. Em vez de empacotar com plástico, usar papelão. Apontar os equívocos da Carne Fraca, no entanto, não significa ignorar os problemas que marcam o setor. Eles começaram ainda no Brasil colônia, com embates violentos entre criadores de gado e populações indígenas, à medida que o gado avançava para o interior do País. Foram ampliados em meados da década de 1940, quando Juan Domingo Perón assumiu o poder na Argentina e multinacionais, como a americana Swift e a inglesa Anglo, temendo o intervencionismo peronista, passaram a se instalar no Brasil.
Naquela altura, o projeto de industrialização idealizado por Getúlio Vargas começava a engatinhar, com a instalação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em Volta Redonda (RJ). Ganhava as ruas a campanha “O petróleo é nosso”, que culminou na criação da Petrobras, em outubro de 1953. Seis décadas depois, a companhia foi o primeiro alvo do desmonte que se generalizou a partir da instalação e dos sucessivos desmembramentos da Operação Lava Jato, deflagrada em março de 2014. Um dos resultados da iniciativa que transformou Curitiba em “república” pôde ser observado na recente licitação para a retomada das obras da unidade de processamento de gás natural do Comperj, o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro: apenas empresas estrangeiras foram convidadas.
A justificativa para não chamar empresas nacionais de construção civil para participar daquela e de outras licitações é simples: estão todas comprometidas na Lava Jato e com a prática de caixa 2. Em depoimento ao juiz Sergio Moro, o empresário Emílio Odebrecht, patriarca da construtora que leva o seu sobrenome, explicou o motivo. “Sempre foi o modelo reinante no País”, declarou Emílio, lembrando que a prática de caixa 2 vem dos tempos de seu pai, Norberto Odebrecht (1920-2014), fundador da empresa.
Da Bahia, onde Norberto começou seu negócio, vem outro sinal de que os tempos mudaram: a empresa francesa Vinci levou a concessão do aeroporto de Salvador em leilão realizado na véspera da deflagração da Carne Fraca. Pelo mesmo leilão, três outros aeroportos brasileiros passarão a ser administrados por empresas estrangeiras. A alemã Fraport levou Fortaleza e Porto Alegre. A suíça Zurich ficou com Florianópolis. Detalhe: pela primeira vez, a empresa pública Infraero não entrou como sócia, o que representa uma guinada na governança das concessionárias. O governo Temer, como não poderia deixar de ser, comemorou o resultado da “primeira rodada” de concessões do seu modelo de privatização. O predomínio de empresas estrangeiras no leilão, como também não poderia deixar de ser, está vinculado à Lava Jato. As grandes construtoras do País, que dominaram os leilões anteriores, estão paralisadas devido às investigações e processos.
Só a Odebrecht perdeu US$ 4,3 bilhões em contratos nos últimos três meses de 2016, ano em que fechou a contabilidade com US$ 17 bilhões em contratos. É a metade do valor em contratos que registrava dois anos antes, no final de 2014. Isso não significa que a corrupção não deva ser combatida em todos os setores da economia. Trata-se de um mal que assola o Brasil desde os tempos da colônia, como enfatizou o padre Antônio Vieira em 1655, no Sermão do Bom Ladrão, no qual faz referência a São Basílio Magno: “Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que vão banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões ou o governo das províncias, ou a administração de cidades e reinos”.
O imprescindível combate à corrupção não pode, no entanto, inviabilizar o funcionamento de empresas, contribuir para o aumento da legião de desempregados e nem muito menos privilegiar companhias estrangeiras. Nesse aspecto, não há dúvida de que a Lava Jato aprofundou de forma radical a crise econômica que ameaçava o País, até porque falta ao Brasil instrumentos que preservem as empresas, ao mesmo tempo que punam as pessoas físicas responsáveis pelos atos de corrupção. Na prática, os mais importantes desses instrumentos são os acordos de leniência, previstos na Lei Anticorrupção, em vigor desde agosto de 2013. O problema é que eles não saíram do papel. Enquanto os acordos não forem homologados, empresas investigadas ficam proibidas de assinar contratos com o poder público.
Na Alemanha, a Siemens enfrentou um dos maiores escândalos do mundo corporativo sem ter sua existência ameaçada. Foi em 2006, quando a Justiça alemã descobriu que a empresa tinha uma rede internacional de distribuição de subornos. Isso porque uma investigação começada nos Estados Unidos tinha revelado que a Siemens havia pago o equivalente a US$ 1,4 bilhão em propina a autoridades de diversos países. Foram, no total, 4,3 mil pagamentos ilegais, relativos a 330 obras. Poucos meses depois de o escândalo estourar, a Siemens substituiu 80% de seus executivos do mais alto escalão, 70% do segundo e 40% do terceiro. Pagou multas e precisou mecanismos internos de controle de irregularidades, mas não deixou de funcionar nenhum dia.
No Brasil, a existência de gigantes do mundo empresarial está ameaçada pela forma como as investigações relativas à corrupção vêm sendo conduzidas (ou divulgadas, como no episódio da carne). Para o historiador Marcos Napolitano, não há dúvida de que o cerco às empresas brasileiras está servindo a interesses, internos e externos. “Trata-se de uma janela de oportunidade para os tubarões do capitalismo agirem, aproveitando-se da política de condomínio treme-treme que tomou conta do Brasil”, compara o historiador. Enquanto isso, o desemprego avança. Atingiu a marca de 13,2% em fevereiro. Em sintonia, a taxa de ocupação despenca, atingindo no mesmo mês o menor patamar desde 2012, quando o IBGE começou a pesquisar o índice. Atualmente, apenas 89,3 milhões dos 167,4 milhões de brasileiros aptos a trabalhar estão empregados.
Na prática, houve uma reversão da agenda vitoriosa nas urnas em 2014. Essa reversão começa pela ideia de privatizar tudo o que for possível, a começar por ativos da Petrobras; passa por alterações nas políticas públicas que permitiram a ascensão social de pobres e miseráveis, e tem como atual ponto de destaque a reforma da Previdência. Se for aprovada da forma como está sendo proposta, essa reforma vai penalizar o conjunto dos trabalhadores, mas terá impacto ainda mais nocivo entre aqueles de menor renda, que, pelas circunstâncias da vida, começam a trabalhar ainda na adolescência. Há ainda a reforma trabalhista, que tem potencial para completar o assalto final a direitos duramente conquistados.
Em sua jornada rumo ao retrocesso, o presidente Michel Temer sancionou na noite da terça-feira 31 de março o projeto de lei que permite a terceirização em todas as atividades de uma empresa. Na mesma data, marcada pela triste lembrança dos 53 anos do golpe civil-militar de 1964, movimentos sociais e sindicatos realizavam em capitais brasileiras atos de protesto contra a reforma da Previdência e o projeto de lei que regulamenta a terceirização. Os manifestantes ainda estavam nas ruas quando o projeto se transformou em lei.
Para Pedro Celestino, presidente do Clube de Engenharia, o projeto que está em curso representa a destruição de tudo o que se construiu no Brasil nos anos 1950, uma década marcada pelo modelo nacional-desenvolvimentista de industrialização e pela criação da Petrobras. “Busca-se atingir todos os elementos que possibilitam que o País se desenvolva. É a destruição do BNDES, da Petrobras, da indústria da carne”, afirma Celestino. O presidente do Clube de Engenharia integra um grupo de representantes da sociedade civil, de entidades sindicais e empresariais, com diferentes perspectivas políticas, que acaba de lançar um manifesto de resistência ao desmonte “do Estado, da economia e da política” do País.
“Impõe-se defender a democracia e, sobretudo, as eleições de 2018, para impedir quaisquer formas de perseguição política, cerceamento de liberdade de opinião ou mudança no sistema de governo que não passe pelo crivo das urnas”, destaca o manifesto do grupo, elaborado em recente reunião na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. O local não poderia ser mais coerente com a iniciativa. Criada em maio de 1933, a Escola de Sociologia e Política é pioneira no estudo da realidade brasileira e no debate sobre os destinos do País. Um dos pontos debatidos no encontro foi justamente a pressa do atual governo em implantar um programa que “não fez parte de qualquer candidatura vitoriosa nas eleições de 2014”.
Antes de Temer adotar a agenda à moda Aécio Neves, o candidato derrotado em 2014, o mais evidente reflexo do retrocesso na política brasileira era o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. O recuo no campo da democracia pode, no entanto, aumentar. Fantasmas do passado ameaçam o presente e o futuro do País, com a possibilidade de uma eleição indireta para presidente ainda este ano. Se Temer, que não deveria sequer ter ocupado a Presidência, for cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral no julgamento da chapa encabeçada por Dilma, o Congresso Nacional escolherá o próximo presidente. Como acontecia na ditadura militar. Há ainda a possibilidade de o julgamento, como aconteceu em sua primeira sessão, ser adiado sucessivas vezes e Temer se arrastar, como um personagem de filme de terror, até 2018.
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