O Braga vai sempre ao Pasquale com seu amigo Alfredo, mais moço. O lugar é agradável. Não só pela comida e bebida, mas também pelo ambiente. Alegre. Quando a casa está cheia, aguarda-se em mesa comum, grande, de mármore. Coisa de trattoria.

Alfredo, ansioso, sempre chega antes. Espera na mesa comum. Às vezes, brota uma prosa. Outras vezes nem isso, mas ele prefere assim. Sempre pede sopressata finamente fatiada. Pede também um Pinot Grigio, no balde de gelo.

Naquela sexta-feira, ele chegou às sete e pediu o de sempre. Estava ali manducando e bebericando, quando um tipo em sua frente disse: “Você não é o Alfredo, que estudou no Fernão e morava na Manduri?”. Alfredo, surpreso, disse: “Sim”. O tipo emendou: “Eu sou o Edu, lembra de mim?”. O Alfredo, recobrando a consciência, disse “sim”, vagamente.

O tal Edu, então, disse que não era mesmo fácil lembrar, afinal eram passados tantos anos. Disse ainda que se lembrava muito bem de Alfredo jogando bola, dando cambalhota em cima de poça d’água. Lembrava-se de Alfredo equilibrando no gradil da casa. Falou de umas coisas que remetiam à bravura e de outras que diziam sobre ousadia. Bravura e ousadia? O Alfredo não se reconhecia.

Conforme o tal Edu ia falando, Alfredo foi descobrindo naquele rosto traços reconhecíveis. Quando o tal Edu deu uma brecha, Alfredo perguntou se ele não tinha encarado uma tremenda briga com um irmão por causa de uma Caloi vermelha? Edu respondeu que não se lembrava de briga por bicicleta. Alfredo fez mais umas perguntas e Edu mais outras. Ficou claro que foram companheiros. Ficou também claro que Edu se lembrava de coisas do Alfredo que não eram Alfredo. Tampouco Edu se reconhecia na memória do Alfredo. Falavam de abstrações, não reconhecíveis, que um tinha do outro.

Logo o garçom chamou Edu, que se despediu e foi à mesa jantar com a mulher. Alfredo continuou ali, manducando e bebericando. Aquele, definitivamente, havia sido um encontro de fantasmas, concluiu. O primeiro que conscientemente experimentara.

Ademais, considerou que haveria muitos outros Edus por aí, levando imagens dele que, por ele, não seriam reconhecíveis. Imagens que ele não julgava fidedignas. Mas logo considerou: “O que seria uma imagem fidedigna dele?”. E assim foi.

No que Braga chegou, Alfredo serviu uma taça ao amigo e logo desfiou em detalhes o ocorrido. Considerou que, mesmo que pudesse convocar todos os que guardavam imagens dele para uma retificação de imagem – foi essa a expressão que usou –, não saberia o que dizer. “Como são essas coisas!”, suspirou.

“Como são essas coisas?”, perguntou Braga, que entende de tudo, inclusive de mulher. Ele mesmo respondeu: “São assim, você é um fantasma do que foi na infância. Já esses Alfredos que habitam as mentes dos Edus da vida são espíritos. Irremediavelmente soltos por aí. Não se pode resgatá-los. Evanescerão aos poucos. Assim, com o tempo, tanto o fantasma como os espíritos irão inexoravelmente para as picas. Não sobra nada. Absolutamente nada. O que acha?”.

Alfredo achou que deveriam pedir mais sopressata finamente fatiada e outra garrafa de Pinot. Braga concordou. Eles sempre se deram muito bem.

*PhD pela Universidade de Cambridge, foi professor titular da USP. É autor dos livros Choro de Homem (Ateliê Editorial) e O Pai de Max Bauer (Ateliê Editorial/Editora Brasileiros).

 


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