Antes das primeiras lições de vôo, um piloto aprende as leis da física e passa a entender como um avião é capaz de sair do chão, voar e pousar com segurança. Conforme vai acumulando horas de vôo, percebe que sem um capital para bancar os preços de combustível, taxas e os mais diversos impostos, nenhum avião sai do chão, por mais aerodinamicamente perfeito que seja. Houve um tempo em que as únicas preocupações de um passageiro eram escolher um destino, comprar a passagem e apresentar-se no balcão do check-in na hora certa. Podia marcar compromissos. Hoje todo mundo sabe que, para voar, não adianta ter as leis aerodinâmicas a seu favor ou dinheiro para investir se a estrutura que garante as operações não funcionar adequadamente.
Acidentes aeronáuticos chamam a atenção. Quando se trata de uma grande tragédia em que um triste recorde foi suplantado por outro ainda mais triste num prazo muito pequeno, a coisa é pior. Nem bem passou um trauma, vem outro.
A crise é tão falada que já ganhou até um nome: Apagão Aéreo. A seriedade do problema é tamanha que a Polícia Federal foi acionada para o caso . E tem até Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Não gosto de CPI por causa do cheiro do orégano, mas vamos ver no que vai dar. Nos últimos meses o ar esteve confuso e ficou difícil definir com exatidão a direção e a intensidade do vento, fundamental para a operação segura de qualquer aeronave.
O pessoal que entende de tudo
Os primeiros momentos depois do acidente foram marcados por um preocupante descompasso, sugerindo que os radiocomunicadores podem estar sintonizados em freqüências diferentes. Nesse clima turbulento apareceram figuras bem-intencionadas para tentar botar a casa em ordem, a maioria com pouquíssimas horas de vôo, muitas delas, senão a totalidade, acumuladas enquanto estiveram sentados na poltrona 32-E, 5-C ou 14-D. Essas figuras, de tanto voarem, nem fazem mais tanta questão de sentar na janelinha. Pela forma como se expressam, supostamente entendem de tudo e conhecem em profundidade como funciona a dinâmica da aviação. Não têm, no entanto, a visão proporcionada pelas imensas janelas que estão à frente dos assentos 1P e 2P. Os bilhetes para esses assentos não são comprados pela internet para serem transformados em e-tickets. São destinados ao primeiro e ao segundo pilotos. Se preferir, comandante e co-piloto. São comercializados em uma moeda mais forte que o dólar ou o euro, mas corrente em qualquer país: a experiência. Os que tomam esses assentos têm a função de levar tudo o que existe atrás deles – pessoas ou carga – de um aeroporto a outro. Aparentemente muito simples.
Confie nesses caras
Existe um segredo muito interessante dessa classe de trabalhadores que ninguém revela. Não fique chocado(a), mas no íntimo eles não estão muito preocupados com o que existe atrás da cabine de comando, seja você, seja algum de seus amigos ou parentes. Conduzem suas atividades profissionais de forma a garantir conforto aos passageiros, mas o maior objetivo deles é ter a certeza de sempre voltar para casa.
Agora uma dica: sempre confie nesses caras.
Depois desses meses turbulentos na aviação, quem não gostava de voar passou a ter medo, quem tinha medo passou a ter pavor. Algumas personalidades expressaram seu temor. A mídia e as cotações das empresas aéreas na Bolsa de Valores reforçam esse sentimento exagerado.
Em função do acidente, palavras como “reverso” e “arremetida” estão na boca do povo. Tem gente que até voa, mas se arrepia ao ouvir essas palavras. O reverso, ou reversor, tem a função de ajudar os freios de roda a parar o avião na pista, após o pouso. Esse dispositivo “reverte” o fluxo de ar que sai da turbina.
O ar que saía para trás passa a ser direcionado para a frente. Importante, mas não é fundamental. O pouso sem reverso pode ser feito com tranqüilidade.
Outros recursos são muito mais importantes para parar um avião após o pouso. Logo que se dá o toque da aeronave no solo, um sensor no trem de pouso percebe essa informação e permite que os spoilers nas asas sejam abertos. Spoilers são superfícies que estão lá para diminuir a eficiência aerodinâmica das asas. As asas, tão importantes para manter o avião voando, no chão têm bem pouca utilidade. Quando os spoilers entram em ação, causam um aumento de arrasto e o peso da aeronave vai para os trens de pouso, incrementando a eficiência da frenagem.
Já o inconveniente da arremetida é apenas um: aumentar o tempo para chegar em casa. Só. O problema maior está em não fazê-la quando necessário. Poucos dias depois do acidente, ouvi pelo rádio do carro uma notícia que, pelo tom, me pareceu que alguém a tratou como um grande furo de reportagem: “Um avião da TAM arremeteu em Congonhas!”. Esperei por um complemento interessante, mas veio a resposta de alguma autoridade dizendo que seria um procedimento normal. Nada de perigo no ar. A voz saiu audível pelo rádio, mas o tom foi de que alguém estaria encobrindo alguma coisa.
Enquanto você está sentado em sua poltrona e a aeromoça passa para pedir que o encosto do seu assento seja levado para a posição vertical e seu cinto afivelado, a tripulação está fazendo os últimos ajustes para o pouso. Dentre os procedimentos prontos para serem executados está a arremetida. A arremetida faz parte do planejamento, não acontece no susto. Fazer novamente é algo que, em geral, a mente humana não aceita muito bem. O ideal é que tudo dê certo na primeira tentativa. A arremetida, no entanto, é um excelente recurso para garantir a segurança. Um outro avião que ainda não tenha saído da pista, turbulência excessiva ou aproximação não estabilizada abaixo de 500 pés podem ser motivos para a arremetida.
Cadê o especialista?
O termo da vez é a manete. Embora os dicionários insistam em classificá-la como substantivo masculino, no jargão aeronáutico é feminino e serve para acelerar os motores. De forma surpreendente, os diálogos da caixa-preta já estão aí, em tempo recorde, para que todos possam ver e analisar. O pessoal das poltronas 32-E, 5-C ou 14-D, que não está familiarizado com esses e outros termos e procedimentos, consulta algum piloto para “traduzi-los”. Logo percebem que precisam de alguém com mais conhecimento e requisitam um especialista em segurança de vôo. Conforme avançam em suas investigações, percebem que a coisa é um pouco mais complexa e procuram ajuda mais especializada. Mas quem? Ah, sim! Tem um órgão no governo que existe justamente para isso, com pessoas que dedicaram toda a carreira em investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos e que trazem consigo a experiência adquirida nessa prática, além de absorverem conhecimentos em bancos escolares daqui e de outros países. Só que eles não emitem pareceres enquanto absolutamente tudo o que envolve um acidente não for exaustivamente checado e rechecado. Depois, como sempre, divulgam tudo na esperança de evitar outros acidentes. Enquanto isso, nós presenciamos os mais diversos personagens como sendo os vilões da vez: a pista, os pilotos, o fabricante do avião…
A sorte e o azar
Nos últimos dias, muita gente me ligou para discutir detalhes e fazer uma espécie de brainstorm e tentar chegar a uma resposta que explicasse como um avião da TAM sai no final da pista com velocidade suficiente para “pular” sobre a Avenida Washington Luís e bater no terminal de cargas da própria TAM. Não sei. Só o Relatório Final de Acidentes que o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes (Cenipa) do Ministério da Defesa vai produzir poderá indicar a resposta. Os telefonemas mais interessantes, porém, trataram o problema de forma mais abrangente. O que está acontecendo na aviação? Não sei também, mas tenho uma idéia.
Penso que é interessante responder com uma pergunta: o que aconteceu nos últimos anos para que essa bagunça se formasse? A aviação brasileira ostentava os menores índices de acidente em todo o mundo. Estávamos equiparados à Europa e aos Estados Unidos. Pouco abaixo deles, claro, mas muito melhores, por exemplo, que nossos hermanos sudamericanos. Dois grandes acidentes marcaram a história da aviação em menos de dez meses. Muito azar! Só que azar é como sorte: não dá para confiar 100% em nenhum dos dois.
O assunto “investimento” já foi tratado pela mídia e ficou claro que a falta dele já vem de vários anos. Talvez a aviação funcionasse tão bem que esses detalhes mostraram-se não ser prioridade. Só que o tempo foi passando na mesma medida em que recursos eram transferidos para outros setores. A euforia do crescimento espetacular da aviação nos últimos anos era, na verdade, um sinal claro de que a infra-estrutura teria de acelerar para acompanhar a velocidade dos jatos. Fala-se outra vez em novas pistas de pouso e decolagem e em ligações terrestres eficientes entre aeroportos.
Abismo curricular
Tem um detalhe bem interessante que já começou a ser discutido: quem está à frente da aviação civil? Antigamente a resposta era clara: DAC, o extinto Departamento de Aviação Civil. Foi substituído pela Anac, a Agência Nacional de Aviação Civil. Quem está à frente da Anac? Esse assunto já está na pauta da Flight Safety Foundation, uma das mais renomadas instituições internacionais voltadas para a segurança da aviação. Em nota, seu presidente, Bill Voss, deixa clara a sua preocupação em ver pessoas com perfis eminentemente políticos, sem qualquer afinidade com a aviação, tratando de assuntos que envolvem a segurança de vôo. Se compararmos o perfil de quem manda na agência daqui e seus correlatos nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, vamos perceber que existe um abismo curricular impressionante.
Definitivamente não gosto do papo de “que nem lá”, mas já que fizemos uma agência, “que nem lá”, que colocássemos gente especializada em aviação, “que nem lá”. Será que a receita que adotamos está correta? Sinceramente torço para que a resposta seja sim.
A recente troca do ministro da Defesa promete o restabelecimento das comunicações e, o mais importante, fazer a aviação voltar a funcionar como um sistema, onde as engrenagens devem se encaixar perfeitamente.
Como se diz em segurança de vôo, as únicas coisas boas que podemos tirar de um acidente aeronáutico são a experiência e as lições. Elas não têm nenhum valor se nada for aprendido e, principalmente, se mudanças não forem implementadas. Depois de um triste recorde, veio outro e pouco do que foi feito se fez sentir. Estamos enfrentando um Apagão Aéreo que não tem data nem hora para acabar, embora nosso presidente já tenha determinado isso em outra ocasião.
OK. As coisas vão se ajustar. Só espero que não demore demais. Afinal, não importa qual assento ocupemos, 32-E, 5-C, 14-D, 1P ou 2P. Nosso objetivo é sempre voltar para casa.
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