É comum ler nos manuais de Economia que o governo só deve entrar em atividades econômicas que não possam ser bem desempenhadas pelo setor privado, porque os investimentos são muito altos, porque os custos são reduzidos quando a produção se faz em grande escala, ou ainda porque nem todos os participantes do mercado têm todas as informações para operar satisfatoriamente. Nesses casos, a ação estatal serviria para sanar as chamadas falhas de mercado.
No setor financeiro, as falhas de mercado estão presentes, sobretudo em economias menos desenvolvidas nas quais estão ausentes ou existem poucas e fracas instituições financeiras capazes de emprestar o necessário para a economia deslanchar. Nessas situações, os bancos ou os intermediários financeiros atendem uma parcela relativamente pequena da população e das empresas, sua rentabilidade é baixa, o risco é alto, em especial no financiamento de atividades novas que demandam muito crédito, por prazos longos.
Esse não é o caso do Brasil há muito tempo. Nosso sistema financeiro é bastante desenvolvido, moderno e muito rentável, apesar de ainda haver grande espaço para o crédito aumentar. Em consequência dos longos anos de altíssima inflação, a informatização bancária se desenvolveu de forma notável, ao mesmo tempo que o crédito privado caía e os ganhos com inflação e títulos públicos cresciam para os bancos. Bancos privados e públicos viveram igualmente esse processo.
O Brasil tem grandes bancos públicos desde o século XIX. O primeiro Banco do Brasil foi fundado em 1808 e a Caixa Econômica Federal foi criada como Caixa Econômica e Monte de Socorro em 1861. Naquela época, o Brasil era um “outro mundo” e a configuração, os objetivos e tarefas dessas instituições financeiras também foram bastante específicos ao longo do tempo, atendendo a necessidades econômicas e diretrizes políticas que não cabem aqui rememorar.
Importa agora discutir por que os bancos federais brasileiros povoaram as manchetes econômicas nas últimas semanas. Mas, antes de tudo, é preciso qualificar melhor. No Brasil, existem cinco bancos cujo maior controlador é o governo federal. Além dos dois grandes já mencionados, há o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), criado em 1952 e peça-chave da industrialização. E ainda dois bancos de desenvolvimento regional, o Banco da Amazônia (Basa) e o Banco do Nordeste do Brasil (BNB).
O Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal são instituições muito particulares. Junto a atribuições precisas – e distintas das desempenhadas por bancos privados – em segmentos específicos do mercado de crédito, esses dois bancos operam como os demais bancos de grande porte privados. A Caixa, por exemplo, ao mesmo tempo que é a principal instituição que opera o crédito imobiliário, realiza os repasses do programa Bolsa Família, administra os recursos do FGTS, e também funciona como um banco comercial. Já o Banco do Brasil, como maior banco do país, sempre teve uma atuação fundamental para a economia, no centro de implementação de políticas de crédito e desenvolvimento. Foi, ainda, executor da política monetária até a criação do Banco Central em 1964. O Banco do Brasil também responde pelo essencial do crédito agrícola, tem linhas especiais para pequenas e médias empresas, entrou há pouco tempo no crédito imobiliário e tem ampliado em muito os empréstimos para pessoas físicas. A longa e complexa história do Banco do Brasil acabou fazendo dele um ícone e, das eventuais propostas para sua privatização, nas vezes em que foram aventadas, ideias heréticas de tênue sustentação política. Mas é preciso lembrar que o BB tem ações negociadas em bolsa de valores e que, portanto, é uma instituição financeira de economia mista.
Assim, os dois grandes bancos federais devem conciliar suas funções nas políticas públicas com operações no setor financeiro, similares às de outros bancos. E devem ser rentáveis nas atividades mais “de mercado” das quais participam. Como prova de sua forte orientação ao mercado, o Banco do Brasil aderiu, em 2006, ao Novo Mercado, segmento da Bolsa de Valores de São Paulo composto por empresas comprometidas com um código de governança corporativa bastante mais estrito que as demais empresas. Além disso, adotou princípios de administração do risco de crédito de acordo com as diretrizes estabelecidas junto ao Banco de Compensações Internacionais (em inglês, BIS – Bank of International Settlements), conhecidas como as diretrizes de Basileia, cidade suíça onde está sediado o banco.
O agravamento da crise econômica internacional, ocorrida no segundo semestre de 2008, teve como efeito mais imediato a restrição generalizada do crédito. Com as torneiras fechadas, o risco em alta, as políticas econômicas mundiais tiveram como alvo principal a sustentação de instituições financeiras e a volta do crédito. No Brasil, as iniciativas do governo foram na mesma direção, mas, para os bancos públicos esperava-se uma contribuição maior. Para além das medidas de ampliação da liquidez, ficaram evidentes pressões políticas para uma política mais agressiva no crédito por parte do Banco do Brasil. Para a Caixa, o ritmo acelerado do crédito imobiliário antes da crise, conjugado à nova política habitacional, representou demanda mais que suficiente por empréstimos. Nos dois casos, ficou evidente o desejo de o governo fazer de seus bancos polos de estímulo à retomada da atividade econômica abatida pela crise.
Os bancos federais reduziram as taxas de juros mais que os privados e ampliaram a concessão de crédito. Esse comportamento anticíclico foi de grande importância em meio à crise. Os resultados dessa política foram anunciados em agosto, com o Banco do Brasil voltando ao posto de maior banco nacional – perdido para Itaú Unibanco após a fusão, em novembro de 2008 -, tanto no tamanho dos ativos, como no crédito.
Do lado do setor privado, diversos argumentos denunciam o que seria uma atuação desigual das instituições federais. As próprias atividades originadas pelas políticas públicas seriam fonte de vantagens comparativas perante as outras instituições financeiras. A rede de agências, os repasses de recursos e, no caso da Caixa, a posição extremamente privilegiada no crédito imobiliário. Ao mesmo tempo, os bancos privados resistem mais à redução dos juros e veem como insustentável a política dos bancos públicos. A grita generalizada contra as instituições públicas aponta os efeitos nefastos de sua utilização política, que nem sempre é orientada pela busca da eficiência econômica e que pode ser capaz de produzir distorções no mercado.
Dado o tamanho desses dois bancos, é muito provável que sua atuação venha contribuir para “puxar para baixo” o custo do crédito nas instituições privadas. No entanto, é importante ver com cautela os próximos movimentos no setor financeiro. A concorrência entre instituições cada vez maiores se, por um lado, pode trazer benefícios para os tomadores de crédito, por outro, pode dar origem a posições mais arriscadas e a certo comprometimento da saúde financeira das mesmas. Provisões contra riscos maiores devem ser feitas quando necessárias e nem sempre são uma forma indireta de aumentar a rentabilidade. Ainda vivemos tempos que demandam cautela.
A existência ou não de bancos estatais e o papel a ser desempenhado por eles é um assunto que desperta paixões. Têm sido inegáveis os efeitos anticíclicos da atuação dos bancos federais brasileiros nessa crise, da mesma forma que seria indesejável a utilização deles de forma indiscriminada. Instituições centenárias merecem respeito e não devem ser pau para toda obra.
*Economista, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.
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