Os cristos da democracia

José Dirceu e José Genoino

No último dia 10 de outubro, a capa da Folha de S. Paulo estampou uma fotografia de José Dirceu com uma luz carcerária na parte inferior do rosto e um fundo escuro, tipicamente sombrio. No canto superior esquerdo estava escrito: mensalão o julgamento. Embaixo da lúgubre foto, com uma letra desproporcional ao estilo Folha, rasgando o centro da capa, o enunciado: CULPADOS. Nos ombros daquele corpo observavam-se duas mãos evidentemente amigas.

A desfocada fotografia fez-me lembrar de outra, exposta na capa de um semanário argentino há mais de 40 anos. A chamada de capa rezava: “José Cristo Dirceu” e a foto colorida e bem focada – apesar da inexistência do Photoshop – mostrava um jovem belo, que exalava a estética dos comunistas dos anos 60 e 70. Cabelos longos, brilho não da luz do fotógrafo, mas nos olhos.

O diretor chamou assim o dirigente estudantil, pelas “líneas espigadas” e a “mirada visionária”. Ele leu esse corpo e o denominou Cristo. Mal sabia o editor daquela revista que o título daquela matéria estava preanunciando uma crucificação política de proporção ainda não compreendida. Sem entrar no mérito do uso do indício como prova para condenação – o que assenta grave precedente, como chamou atenção Jânio de Freitas na mesma Folha de S. Paulo dias depois. Se Delúbio, Genoino e Dirceu compraram políticos, não fizeram outra coisa que continuar a uma maquinaria política que assim funciona estrutural e tradicionalmente.

Desde que a esquerda optou pela via democrática sabia que, se não jogasse o jogo ou não transitasse pelos seus meandros, o governo Lula não teria sobrevido, como tantas experiências populares abortadas de maneiras mais ou menos tenebrosas. O PT, como observou Breno Altman, diretor da revista Samuel, ganhou as eleições num momento de queda da luta popular e não na crista da luta social, como aconteceu com o peronismo de esquerda na Argentina, no caso de Allende no Chile ou, recentemente, na Bolívia e na Venezuela.

Neste País se praticou todo tipo de crimes políticos como torturas e assassinatos e outros de caráter econômico, racial…, alguns de lesa humanidade. Bem mais graves que comprar votos de políticos que assim funcionam. Crimes que não foram julgados nem condenados. Mas, ironia da história, dois dirigentes históricos da luta social foram condenados.

A foto da Folha lembrou também o vídeo desfocado de Miriam Cordeiro, tão certeiro no final da eleição de 1989. Nesse caso também um jovem querendo se responsabilizar por uma gravidez, caso incomum num país machista que homens abandonam mulheres grávidas à própria sorte, foi exposto como criminoso numa das manifestações do social-sinistro: um fenômeno ao mesmo tempo estranho e familiar atingindo de cheio a zona obscura da subjetividade dominante.

Ironia e pornô-tragédia puramente brasileiras, como puramente brasileiro é o fato de que sujeitos que torturaram e devastaram a nação gozem dos benefícios do silêncio. Em escala infinitamente menor, comandantes do terror urbano de ambos os lados: as organizações à margem da lei e as aplicadoras da lei, gozam também do benefício do silêncio, mostrando a inevitável continuidade da metamorfose da violência. Muito se disse a respeito dos países que não revelam suas verdades, não expõem nem julgam seus crimes pois tendem a repeti-los.

Mas também por cordialidade nacional não se pergunta acerca da relação entre essas páginas negadas da história e o fato de que líderes da luta que enfim nos levou a alguma forma de cidadania venham a ser crucificados politicamente. Observemos que a própria comissão que investiga essas partes omitidas da história não tem a palavra justiça no seu nome: é apenas uma comissão da verdade. Não se chama, como em outras latitudes, comissão de verdade e justiça.

Talvez a história venha a venerar no futuro esses mártires da construção da democracia. Só restará saber se suas lutas para surfar e para resistir ética e politicamente na construção da democracia, expostos à obscenidade midiática e aos porões persistentes do capitalismo mundial integrado terá valido a pena.

*Psicanalista, autor de Clínica Peripatética (Editora Hucitec)


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