É raro, mas às vezes crítica e escritor concordam. As análises a respeito do mais recente romance de Cristovão Tezza, O Professor, são unânimes em apontar a habilidosa narrativa do livro como reflexo da maturidade literária do autor.
Desde o estrondo que causou na literatura brasileira com a publicação de O Filho Eterno (2007), Tezza já anunciava que o sucessor do best-seller seria sua melhor obra. Para o escritor, o romance mais recente é um ponto de confluência e maturidade de sua literatura, “em estilo, temática, foco e linguagem, em todos os seus aspectos”.
O mote é simples: Heliseu, um professor de filologia românica rememora sua trajetória profissional e pessoal, enquanto se prepara para receber uma homenagem da universidade em que trabalhou por 30 anos. Em poucas horas, revisita momentos alegres e uma série de percalços que viveu: a relação conflituosa com o filho gay, o casamento morno com uma bancária limitada intelectualmente e a situação mal resolvida com a amante Therèze. O tom memorialista e a subversão da noção de tempo-espaço remetem à narrativa proustiana e tornam a linguagem do livro tão atraente quanto os conflitos vividos pelo personagem principal.
Além de explicar como concebeu seu mais recente romance, nesta entrevista à Brasileiros, Tezza revê sua carreira, fala sobre literatura confessional, comenta as características mais marcantes da novíssima geração de prosadores brasileiros e diz a quantas anda a cena literária de Curitiba, a cidade que deixou de ser “um orgulhoso gueto provinciano”.
Brasileiros – O que faz deste romance o seu melhor trabalho na ficção, como o senhor declarou?
Cristovão Tezza: É apenas uma impressão de escritor, que, ao falar de si mesmo, é sempre pouco confiável. Mas tenho algumas razões objetivas para dizer que O Professor é o meu melhor livro, que podem ser resumidas numa só: maturidade. Tanto do ponto de vista técnico, quanto de visão de mundo. Mas, é claro, isso é relativo. Já ouvi leitores dizendo que O Fotógrafo é o meu melhor romance; outros, em geral mais jovens, dizem que jamais superei Trapo. E quase todo mundo que me lê diz que O Filho Eterno é imbatível, o que me despertou secretamente um espírito de competição.
Desde que se desligou da Universidade Federal do Paraná (UFPR), esta é a primeira vez que fala de forma mais profunda sobre o trabalho como professor acadêmico. Porém, o romance traz uma visão bastante crítica da academia e faz um retrato cômico do personagem principal. Teve algum receio quando estava escrevendo a obra?
Eu inventei alguns personagens professores, nos quais usava minha própria experiência como moldura profissional, por assim dizer: o Manuel, de Trapo; o Matozo, de A Suavidade do Vento, e Frederico Rennon, de Uma Noite em Curitiba. Mas são figuras humanas bastante distintas, vivendo momentos culturais e situações históricas e romanescas diferentes. No caso de Heliseu, o personagem central de O Professor, a vida acadêmica brasileira dos últimos 50 anos é de fato o pano de fundo do texto, mas o romance não é, nem de longe, um livro sobre a universidade. É um livro sobre Heliseu, e sobre como ele vê o mundo, o Brasil, a vida, a família e seu emprego. Não acho, sinceramente, que seja um retrato “cômico”, embora haja momentos engraçados ou discretamente irônicos. Como todo personagem literário, ele incorpora alguns aspectos comuns de seus pares sociais e profissionais, o que cria empatia, elemento central da prosa. A diferença deste livro para os outros que eu escrevi com personagens professores, é que agora a narrativa inteira se estrutura em boa medida também em torno de questões de linguagem – até pela “tese” da personagem Therèze sobre a fala brasileira, que tem um papel central no romance. O meu único receio – se houve algum – era não escrever um bom livro, um receio, aliás, que me acompanha sempre. Sou um escritor que sempre avança pelo texto meio às cegas.
O senhor costuma dizer que relutou muito a entrar no universo acadêmico. Depois, passou décadas lecionando e escreveu livros de teoria. E agora, larga a UFPR para se dedicar novamente só à escrita de romances. Temos aí uma relação passional?
É uma observação engraçada. Olhando para trás, sinto que desde os 12 ou 13 anos sempre soube exatamente o que quis na vida – escrever. Para isso, fui sobrevivendo como deu e tirando leite de pedra. A minha reação juvenil à universidade era uma marca rebelde do tempo. Quando o sonho acabou, no final dos anos 1970, descobri na universidade, meio a contragosto, um caminho de renovação da minha cabeça, principalmente nos estudos linguísticos, área pela qual me apaixonei durante anos, produzindo material teórico e didático. Além disso, descobri que era um bom professor e gostava de dar aulas. E ainda tinha energia e condições para escrever meus livros, administrando meu tempo e jamais aceitando cargos burocráticos na universidade, o que foi crucial para a minha sobrevivência. Quando meu projeto acadêmico se esgotou e a literatura passou a ocupar inteiramente a minha vida, pedi demissão, numa atitude bem pensada e medida, e não passional. Estou muito feliz assumindo integralmente meu trabalho de escritor. Em suma: sempre procurei viver equilibrando necessidade e desejo com, digamos, uma pitada de sabedoria. Hoje, só sou realmente passional quando assisto aos jogos do Atlético Paranaense. Todo o meu lado irracional se concentra perigosamente ali.
Uma das características mais marcantes da narrativa de O Professor é a alternância, às vezes na mesma frase, entre a primeira e a terceira pessoas. Além disso, há trechos em itálico que seriam parte do discurso de agradecimento à universidade que Heliseu formula na cabeça. Qual o resultado que pensou para o leitor ao adotar esse estilo?
Eu não pensei no resultado, ou no leitor externo. Ao escrever, sou muito mais intuitivo, ou mesmo “instintivo”, do que pode parecer pelo resultado. Tenho uma obsessão pelos modos de representação da realidade, mas, como toda obsessão, não é um impulso racional, controlado com régua e compasso. Vou escrevendo. Mas é preciso não concluir daí que escrevo por lances de inspiração iluminada, nada disso. Na verdade, minha intuição foi se fazendo e se aprimorando depois de mais de dez romances e de 40 anos de literatura. A fusão de pontos de vista, por exemplo, é um recurso sintático que foi se tornando minha marca desde Breve Espaço, de 1998. No caso de O Filho Eterno, foi um recurso fundamental para eu dar conta do tema do livro, permitindo-me “entrar” na cabeça do pai e ao mesmo tempo vê-lo de longe, no mesmo impulso sintático, como alguém que pensa em si, vendo um outro. O que, aliás, todo mundo faz o tempo todo.
Um de seus livros da primeira década dos anos 2000, O Fotógrafo, já discutia temas referentes à recente história política do Brasil. Em O Professor esse tema é ainda mais presente, com especial destaque para a redemocratização do País a partir dos anos 1980. Acha que a literatura brasileira ainda explora pouco esses assuntos?
Uma consequência lógica da estrutura realista dos meus livros, que foi crescendo desde Trapo, foi a incorporação ao texto das variáveis políticas do mundo em torno. Não como tema de “doutrinação” narrativa, como se eu fosse um escritor panfletário com verdades a dizer ao leitor; mas como pano de fundo significativo do olhar do personagem, de sua composição mental. Em alguns momentos, a vida política aparece claramente nos meus livros, como em O Fantasma da Infância, sobre o período Collor, ou em Uma Noite em Curitiba, em que o personagem é assaltado pela memória pessoal marcante das passeatas de 1968. Às vezes, há referências indiretas, mas funcionais: em A Suavidade do Vento, que se passa no oeste paranaense no início dos anos 1970, o peso da ditadura é visível. Em O Fotógrafo, há referências diretas à eleição do momento, entre Lula e Serra. O Filho Eterno percorre a história recente do Brasil, assim como O Professor. Não tenho nenhum problema em incorporar ao texto esses dados supostamente voláteis ou datados; eu sinto que eles dão uma consistência muito importante aos personagens. No caso de O Professor, a história política como pano de fundo é mesmo fundamental. E o romance é o gênero por excelência para absorver esses “contatos imediatos” da vida diária. Mas quero deixar claro o seguinte: essa é a minha literatura, o caminho que eu percorri estilisticamente e as opções que fiz, ou que me fizeram. Não tenho nenhuma bula literária, nenhuma receita sobre o que o escritor brasileiro deve ou não fazer. Quanto mais diversificada, melhor será nossa literatura. Sobre a presença da vida política brasileira na literatura, podemos dizer que, a partir dos anos 1970, por um conjunto bastante forte de razões (entre eles o fato de a literatura brasileira se refugiar na universidade, num momento em que os estudos formais abstratos se tornaram a moda mundial da teoria literária), a nossa prosa perdeu visibilidade e de certo modo deixou de “conversar” com o País. Mas acho que isso, hoje, está rapidamente mudando.
Assim como em O Filho Eterno, O Professor tem um tom confessional. O senhor é um escritor confessional?
Depende do que você quer dizer com a expressão “confessional”. Veja bem, até eu publicar O Filho Eterno, em 2007, que é um romance escancaradamente baseado em fatos da minha vida, ninguém jamais me chamou de “escritor confessional”, ou de escritor que só falasse de si, só escrevesse em primeira pessoa, etc. O engraçado é que, ao mesmo tempo, entrou em circulação a expressão “autoficção”, importada recentemente da teoria literária francesa. É um conceito interessante, um bom instrumental didático de análise, para estudos localizados aqui e ali. Mas, imediatamente, parte da crítica acadêmica brasileira passou a ver autoficção em tudo. Em tom apocalíptico, críticos de dedo em riste viam a literatura brasileira soçobrar debaixo do império do ego dos escritores. Isso é uma tolice completa. O gênero confessional, de natureza diretamente biográfica ou sob armadura ficcional, é um dos mais importantes e recorrentes da história da literatura. Não nasceu ontem. Paralelamente, é preciso lembrar que vivemos em uma época profundamente narcísica e confessional, em escala verdadeiramente global, o que decorre diretamente da natureza da revolução tecnológica que estamos vivendo. Ora, toda literatura absorve, queira ou não, a alma de seu tempo. Ao mesmo tempo, para clarificar do que estamos falando, é preciso delimitar o conceito de “confessional”. O confessional é um modo de apropriação da linguagem que não tem nada a ver, necessariamente, com a intenção biográfica. No meu caso, romances como Uma Noite em Curitiba ou Juliano Pavollini são “confessionais”, estruturados como confissões pessoais, mas não têm relação biográfica nenhuma com a minha vida. Assim como O Professor – absolutamente nada ali tem a ver com fatos objetivos da minha vida. É a confissão de um personagem, não de um autor.
Após o estouro de O Filho Eterno, seus outros livros voltaram a despertar interesse. Houve alguma leitura tardia de algum deles que tenha lhe chamado a atenção?
Sim, o que é interessante. Frequentemente dou com algum blog de leitores comentando meus livros dos anos 1980 e 1990. Alguns deles sempre tiveram leitores fiéis, como A Suavidade do Vento (hoje, só disponível em versão digital, mas que em breve será relançado pela Record) e Trapo. E pelo menos uma vez essa leitura tardia foi realmente especial: Caio Blat leu Juliano Pavollini, publicado em 1990, apaixonou-se pelo romance, escreveu um ótimo roteiro de filme, como ponto de partida de um projeto maior, e me propôs levar em frente a adaptação. Ele já está com o elenco quase todo fechado e deve começar as filmagens no ano que vem.
Em sua autobiografia literária, O Espírito da Prosa, o senhor faz uma defesa do Realismo. Mas sua carreira inicia no fim dos anos 1970, quando a literatura latino-americana pregava justamente o contrário. Quando houve – se é que houve – essa ruptura em sua literatura?
De fato, nos anos 1960 e 1970 a literatura latino-americana exerceu um impacto grande aqui e no mundo, e um dos traços principais era o Realismo Fantástico, ou, de forma genérica, uma certa primazia da fantasia e da imaginação sobre a observação realista. O que é, praticamente, o caso de Cem Anos de Solidão, obra-prima absoluta de García Márquez. Há exemplos isolados entre nós de não realismo (para escapar de uma tentativa de definição), como as obras de Murilo Rubião, Campos de Carvalho e José J. Veiga, mas não foram realmente vertentes dominantes da nossa alma literária. Tenho a impressão de que temos o olhar classicamente “naturalista”, embora todo prosador brasileiro viva em segredo uma certa compulsão poética, uma nostalgia mítica – o grande patrono aqui seria Guimarães Rosa. Não sei. É um tema fascinante. Comecei poeta aos 13 anos, fui me tornando um prosador “poético”, vivendo um certo mundo da fantasia mesmo quando supostamente realista (os contos de A Cidade Inventada, meu primeiro livro; O Terrorista Lírico, o primeiro romance), e aos poucos fui pondo realmente o pé no chão, por assim dizer. O momento de passagem foi Ensaio da Paixão, que escrevi em 1981, ainda sob os eflúvios do Realismo Mágico. Em seguida, escrevi Trapo, que de certa forma definiu a direção da minha literatura.
Dos livros de sua primeira fase como escritor, até final dos anos 1980, Trapo certamente é o mais importante. Como o vê hoje?
Foi um livro escrito em um momento marcante da minha vida, quando eu começava a mergulhar na vida acadêmica. Acho até, fazendo uma autoanálise, que a oposição Trapo-professor Manuel refletia inconscientemente uma crise existencial minha. Estava matando o “poeta” em mim e entrando no “sistema”. Se essa teoria está certa, o romance formalizou esteticamente a minha crise, dando-lhe algum sentido. Do ponto de vista prático, foi o livro que, seis anos depois de escrito, publicado por uma grande editora, a Brasiliense da época, me arrancou da província e começou a me colocar no cenário do País. Tenho uma relação afetiva com ele. É uma narrativa ainda de fundo romântico, com alguma graça e leveza. Em todos esses anos teve leitores, já passou por três editoras e mais de dez edições.
O senhor também foi um dos jurados da revista Granta, que selecionou promessas da nossa literatura. Consegue apontar uma característica que marque esse grupo de escritores?
Foi uma ótima experiência, que me permitiu mergulhar na produção contemporânea de jovens escritores. De modo geral, percebi a intensa urbanização da cultura brasileira, praticamente não havia narrativas regionais, que sempre foram fortes na tradição literária brasileira. A cidade tomou conta de tudo. Outro aspecto é uma clara internacionalização temática, reflexo direto, talvez, do fenômeno da internet. E um certo esvaziamento literário da polarização política que marcou profundamente a geração dos anos 1970, de onde eu venho.
Nos últimos anos, Curitiba voltou a ser comentada nacionalmente por conta de um movimento literário intenso. O senhor fez parte de uma geração de escritores da cidade que hoje é reverenciada. Falo de Manoel Carlos Karam, Wilson Bueno e Jamil Snege, entre outros. Como avalia esses dois momentos?
A imagem literária moderna de Curitiba criou-se a partir da revista Joaquim (de 1946 a 1948), que congregava alguns dos mais importantes escritores do País. Depois dela, a cidade retomou seu costumeiro isolamento. Literariamente, até os anos 1990, Curitiba era um orgulhoso gueto provinciano, girando em torno de Dalton Trevisan ou Paulo Leminski, com algumas incursões avulsas no eixo Rio-São Paulo. A “virada” da cidade aconteceu no Brasil todo, a partir da disseminação da internet e das políticas de renúncia fiscal para eventos de cultura, que proliferaram no País desde a estabilidade econômica do Plano Real. Na entrada do século 21, a cidade começou a participar mais ativamente da roda literária brasileira, quase sempre em torno das iniciativas do jornal Rascunho e eventos correlatos, como os projetos Um Escritor na Biblioteca, Paiol literário, Litercultura, Rodas de leitura, etc.
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