As famílias costumam guardar segredos entre os mais velhos. Pode ser a inesperada riqueza de um primo, o sumiço de um tio ou o porquê de um pai silencioso. Às vezes, não se conta todo o segredo. Às vezes, os segredos se perdem. Outras vezes, não. Há os segredos leves. Mas há também os pesados. Graves.

Passei minha infância numa divertida rua de terra. As casas tinham muitas crianças e, porque sem saída, a rua era nossa. As meninas brincavam na calçada. Os meninos jogavam bola até o escurecer.

Certo dia, um menino mudou para nossa rua. Branquelo do cabelo ruivo. Mal falava português. Assim conhecemos um judeu, ninguém sabia o que era um judeu. O menino foi se aproximando aos poucos. Era sorridente. Meio tímido, claro, mas se deu bem. Entrou para a turma em pouco tempo.

Descobrimos, com ele, os horrores de um campo de concentração. Não sabíamos o que era isso. Soubemos que a mãe dele escapara de um. Era uma mulher alta e bonita, com peitos grandes. Trabalhava fora. Quem cuidava da casa era uma empregada. Não havia pai naquela casa.

Víamos com assombro o número tatuado em seu braço, A30123. Ela escapou porque falava várias línguas. Trabalhara no escritório do campo de concentração, disse o menino. Por meses, cavou com gilete um buraco no piso, abaixo do tapete. No momento certo, se escondeu no buraco. Foram dias até a chegada dos americanos. Que história! A meninada ficou assombrada.

Outra notável descoberta foi a circuncisão. Ficamos aterrados. Meu irmão mais velho, na hora, pregou um apelido no menino: manga curta. Manga. Ele subiu de status. Com essa, ficaram amigos.

E o tempo, claro, passou. E eles seguiram amigos, bem próximos. Muitos, muitos anos depois, meu irmão se foi. O Manga se aproximou mais de nossa família, mais ainda de mim. Quando tinha seus cinquenta e oito anos, me chamou. Disse que estava mal, não ia durar muito. Explicou tudo, a coisa era séria. Fiquei arrasado.

Muito tenso, ele disse que me passaria um segredo de família. A ser levado para seu filho, depois que ele e a mulher tivessem ido. Leu o pequeno papel antes de me entregar: “Querido filho, serei breve. Sua avó nunca foi intérprete. Ela atendia a casa de Arthur Liebehenschel, o segundo comandante de Auschwitz. Ele a tirou do execrável Bloco 24. Você lerá sobre esse bloco e vai entendê-la. Liebehenschel é meu pai. Fui registrado no Rio em 1948, mas nasci em Peenenmünde em 1945. Uma filha de Liebehenschel, essa sim legítima, Barbara Cherish, foi adotada por americanos. Recentemente revelou seu segredo em livro. Leia o livro, mas não a procure. Em hipótese alguma. Soube de tudo depois de casado, mas não contei para sua mãe, ela não resistiria. Como dizer a ela que seu ventre foi fecundado por um filho de Arthur Liebehenschel? Ainda mais ela, criada em Haifa, educada na Hebron. Eu jamais me perdoaria. Seja feliz.”

Como “seja feliz?”. Fiquei quieto. Absorvi o tranco, bruto danado. Calado. Abraçamo-nos. Não havia o que dizer.

Passou um tempo e ele se foi. Mais um tempo e foi a vez dela. Deixei as coisas esfriarem, criei coragem e liguei pro filho do Manga. Disse que passaria por Barretos, iria visitá-lo. Eu queria resolver logo essa parada. Levei o pequeno papel no bolso.

Cheguei lá depois do almoço. A casa era bem arrumadinha, dessas de interior com varanda de piso vermelho. Ele ali, com as crianças, meio sem graça com minha visita. Falou de sua vida de veterinário e os planos para o futuro. Ela falou das crianças, da escola e do cachorro. Eu falei umas bobagens, me preparando para a dura conversa. Mas, vendo aqueles quatro ali, começando, fui me ausentando. Calando-me, até que, absorto, me calei. Imagino que longamente. Ele me perguntou se eu estava bem. Eu disse que sim, muito bem, mas precisava partir. Foi tudo meio sem jeito.

Ele me acompanhou até o portão e me despedi: “Seja feliz!”.

* Marcos Rodrigues é engenheiro civil , professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura.


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