Os jovens são os que mais sofrem em campos de refugiados

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Os campos de refugiados, a poucos quilômetros de Mossul, crescem aceleradamente. Foto: Reinaldo Nascimento/divulgação Amigos da Arte de Educar

O brasileiro Reinaldo Nascimento, voluntário da associação alemã Freunde der Erziehungskunst Rudolf Steiner (Amigos da Arte de Educar de Rudolf Steiner), está em Zahko, no Iraque, em missão em campos de refugiados nessa cidade que fica perto de Mossul.

Capturada pelo Estado Islâmico em 2014, Mossul é a peça mais importante no califado que o grupo terrorista tenta implantar com a ocupação e consequente eliminação de fronteiras de parte da Síria e do Iraque. A tentativa de retomada do controle de Mossul por uma coalização de forças oficiais iraquianas vindas de Bagdá, de soldados do Curdistão baseados em Erbil e de milícias xiitas apoiadas pelo Irã, com o apoio aéreo e logístico norte-americano, faz da cidade o palco de uma guerra sangrenta. Um verdadeiro inferno.

Não há números exatos, mas estima-se que, antes da ocupação do Estado Islâmico, Mossul tinha uma população de mais de 2 milhões de pessoas e, segundo a ONU, 1 milhão e meio lá permanecem. Ainda segundo a ONU, 1 milhão de habitantes devem ser desalojados pela guerra e 700 mil vão necessitar de abrigo.

Campos de refugiados, a poucos quilômetros de Mossul, crescem aceleradamente. Entre as vítimas do conflito, milhares de crianças e adolescentes que sofrem opressões étnicas, vivenciam a guerra e são torturados.

Reinaldo Nascimento, 38 anos, nascido em São Paulo, é o único brasileiro dessa equipe em missão no Iraque. A associação Freunde der Erziehungskunst Rudolf Steiner atua em campos de refugiados em regiões de conflito e em locais que passaram por grandes desastres naturais.

Cofundador da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil, Nascimento hoje conta a situação dos jovens em Zahko e apresenta outros integrantes da equipe que atua no Iraque. Segue mais um relato do diário Pedagogia de Emergência.

Zahko, 10 de novembro de 2016.

Eu prometi escrever sobre os jovens e hoje de manhã, ao fazer as compras para a oficina de pintura, encontrei dois jovens de 11 e 13 anos no máximo fumando cigarros como se fossem adultos. Nunca fumei, mas para mim, eles fumavam como pessoas que fumam há muito tempo. Estavam muito seguros  no que faziam.

Um deles queria tocar os meus cabelos. Eu respondi em curdo que somente se eles parassem de fumar. Um deles tomou um susto (mais pelo meu curdo terrível!!!)  e jogou o cigarro fora! Brincou um pouco com os meus cabelos e logo foi buscar o cigarro no chão!

Nos campos onde estive, e já foram muitos (Quênia, Líbano, Iraque e também na Faixa de Gaza), os jovens parecem ser os que mais sofrem. Os menores e os mais velhos acabam sendo atendidos primeiro – e é bom assim. Muitas crianças acordam em outras cidades durante as fugas. Muitos pais entram em desespero por terem perdido tudo e, muitas vezes, essa agonia faz com que muitos abandonem seus filhos por um período. Não que os deixem largados nas ruas, não estou dizendo isso, mas não entendem as dores das crianças. Não entendem porque voltam a fazer xixi na cama, porque não dormem à noite, porque não querem comer o pouco que ainda resta.

Os jovens ficam largados e precisam da mesma ajuda. Quando estive em Gaza, me disseram que 90% dos jovens não tinham trabalho. Nos campos aqui de Zahko, não há trabalho nem para os adultos. Hoje, já existe um comércio dentro do campo. Refugiados que conseguiram salvar suas coisas tentam transformar isso num sustento.

Esses jovens, muitas vezes, são induzidos ao trabalho militar por ser a única opção. No Quênia, a quantidade de ex-crianças soldados era impressionante. Muitas delas, agora jovens, não tinham o que fazer no Campo Kakuma além de esperar o dia passar para fazer suas refeições. Muitos desistem da escola e outros tantos desistem da vida!

A verdade é que esses jovens precisam de desafios maiores. Há pouquíssimos projetos nos campos para eles. Na intervenção passada, criamos um projeto e este foi financiado. Era impressionante ver os jovens serrando, lixando, pregando, construindo as coisas. Como a maioria deles vivia nas montanhas, eles têm muitas facilidades com construções. O projeto, mesmo sendo burocrático demais, não durou muito.

Um jornalista hospedado aqui no hotel me disse que o déficit educacional na Síria já é desastroso para a próxima geração! Aqui no Iraque, muitos conseguem ir à escola. Mas elas estão superlotadas e os professores, mesmo sendo heróis de verdade, não conseguem fazer com que os jovens permaneçam até o fim do ensino médio.

Minka e eu estamos pensando em como deixar mais clara a importância desses jovens não serem largados. Sem a devida atenção, eles podem se tornar os terroristas de amanhã. Não porque querem, mas sim porque para muitos essa se apresentará como a única opção de mostrar seus valores.

Minka é minha colega no time internacional desde agosto de 2013 e minha grande amiga desde agosto de 2013, quando fomos para o Líbano. Paixão à primeira vista. Logo, estávamos trocando ideias, músicas, ritmos, livros, cartas, etc. Juntos, estivemos em sete intervenções. Além do Líbano, estivemos nas Filipinas, Faixa de Gaza, Nepal e Iraque.

Juntos, já passamos por grandes histórias. Lembro-me com carinho no Nepal, quando demos uma oficina e pedi para ela buscar uma bola. No caminho até a caixa de matérias, a terra tremeu e todas as crianças vieram para cima de mim. Ela não sentiu o terremoto de 6.3 e ainda ficou brava comigo. “Por que pede a bola, se não vai usá-la?!

Seis meses depois, no mesmo Nepal, quase todos do time ficamos doentes em algum momento, mas Minka não tinha condições de entrar no avião. Quando fizemos a nossa última reunião e ela ainda na cama, todos sabiam que eu ficaria com ela até que tivesse condições de voar. Foi o que foi feito.

Com a Minka, me sinto seguro. Tenho respostas claras. Dividimos as nossas oficinas e no final de cada dia ainda tomamos uma água juntos, enquanto ela fuma seu cigarro. Aqui, ela é a nossa chefe!

Nessa intervenção, ainda temos Alfred, um suíço que acabou de se aposentar. Um cara incrível. Coração enorme. Sempre sorrindo. Professor Waldorf e apaixonado por circo, aquarela e desenhos de forma. Charlote vem de uma pequena cidade perto de Friburgo, na Alemanha, e vive sua primeira intervenção. Elisa é alemã e o bonito é que fui seu mentor há oito anos, quando ela prestou serviço voluntário na Liga Solidária em São Paulo. Aqui ela é a nossa médica! Gabriela vem de Stuttgart, também na Alemanha, e trabalha com a ginástica Bothmer. Rafaela e Jessica, alemãs, estão vivendo no Iraque e cuidando de todo o trabalho aqui.

É muito trabalho. Muita burocracia, muita jogada política, jogos de interesse. É preciso ouvir, tomar muito chá preto e realmente não perder a paciência. 

Amanhã é o nosso dia de folga. No Curdistão-Iraque o dia de descanso é sexta-feira. Dia de lavar roupas, terminar os relatórios. Lavar os cabelos. Colocar a fisioterapia em dia (espero que o dr. Enio não esteja acompanhando este diário!).

Um forte abraço de um homem cansado, mas feliz!

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Jovens em campo de refugiados no Iraque. Foto: Reinaldo Nascimento/divulgação Amigos da Arte de Educar

 

 


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